Na mitologia grega, o deus Chronos detém o poder de controlar o tempo. Receoso de perder esse dom, ele engole tudo, até os próprios filhos. Em Aquele que tudo devora – novo título de poesias de Philippe Wollney editado pela da Cepe -, o poeta faz alusão ao mito a partir do viés antropofágico que caracterizou a arte moderna brasileira: digere referências culturais e as regurgita criativamente, em forma de poesia, na busca incessante por atravessar a colonialidade e aprofundar a estética afro-ameríndia. O livro foi lançado na XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, no último dia 12 de outubro.
Ao devorar, digerir e vomitar, Wollney nos presenteia com 78 páginas de uma pulsante poética de fartas referências às culturas africana, pop e literária, em forma de versos emparedados ou nos escombros da paisagem. “Desde 2012, faço uso, de forma sistemática, de procedimentos de colagens surrealistas, antropofagia modernista e da cultura do sampler, tanto nos livros como nas mídias que produzo”, explica o poeta, descrito como um dos mais atentos e coerentes da recente geração pernambucana.
Em um diálogo com o tempo e a morte, Aquele que tudo devora narra uma visita aos mortos, passando por cenários como o da cadeia e de outros infernos. Neste livro, o autor também dialoga com a figura de Exu. Do ponto de vista formal, os textos exploram o espaço da página, possibilidades de quebra dos versos e o uso de sinais gráficos de forma marcante. Além disso, também apresenta um fluxo poético voraz. Um aspecto significativo é a grande quantidade de citações integradas no texto, que são indicadas ao final da publicação.
A obra possui três partes, Baque de Luanda, Kalunga e Sambas sobre escombros. Phillipe conta que elas são também gestos, imagens e travessias por situações dramáticas das culturas periféricas contemporâneas que, no passado, atravessaram sofregamente um oceano. “O poeta, como esse caminhante, foge dos escombros das falácias do eurocentrismo e busca, através de outros lugares, referências e visões de mundo, a possibilidade de construir novos gestos estéticos, novos ritmos e cantos”, declara o autor.
No rastro de um possível caminho para a escrita negra no Brasil, Wollney segue os passos do poeta e pesquisador de religiosidades afro-brasileiras Edimilson de Almeida Pereira. O mineiro defende o método Exu Nouveau para entender as diversas variantes da poesia e da literatura brasileira. Ao mesclar Exu e elementos da cultura europeia, Pereira “retrabalha uma negritude diante dos problemas e questões das artes contemporâneas ocidentais, fazendo uso de procedimentos e processos de criação que possibilitam que as tradições negras ressurjam, implodindo por dentro as estéticas contemporâneas”, justifica o escritor.
As imagens criadas pelos versos de Philippe apresentam um ambiente sombrio na travessia pelo mundo dos mortos, das prisões e das cidades destroçadas, dos refugiados e de outras mazelas da contemporaneidade. “Penso o livro como a minha resposta a questões como conservadorismo religioso, perseguições a religiões afro-indígenas, a violência crescente contra populações periféricas e exploradas e contra a população negra. Enfim, acho que são temas e problemas profundos e atuais da sociedade brasileira”, afirma Wollney.
TRECHOS DO LIVRO:
a turba ao redor da fossa, guajupiás,
em inumeráveis récitas invernais
que vinham em cortejo com lanças, flechas e punhais
— o poeta não inventa,
ele ouve e dança no baque da viração
— o poeta põe é o encruzo no coração
— a poesia é fogo no mato, é ponto riscado na criação
— o primeiro verso é facilitado pelo orum,
o restante é trabalho de vodum
— a indignação faz versos, e ficar de butuca faz mais
— poesia é a pedra miúda que mais alumeia
e que na calada do absurdo clareia
um texto dobrando a esquina
dando as costas, cerrando as cortinas
rede de embalar na alegórica voz do oculto
nesse vulto esquivo drenado pelos olhos
hipermetrópicos, vertiginosos, miopíticos
que tantos chamam de mal olhado
e outros acreditam em malassombro
fantasmagoria
acesso ao passado
que insiste em não calar
continuo incapaz
inconcluso persisto
porque a poesia não está para a perfeição
e sim para o delito, e eu insisto
no erro de contar qualquer história que seja
fazendo elipse, chiste, luz curvada e atraída
pelo buraco oculto que é todo poema
dizer já não dizendo que fui preso
pelo motivo assim assado
que me levaram ofertas de funeral
porque pensaram que eu nunca pudesse voltar
que não só a morte iguala as gentes
mas o crime, a doença e a loucura
acabam com as diferenças que inventamos
dizer que eu tenho trinta e três anos
e muitas contas não pagas
que a minha boca se tornou escumada
e a voz do destino quase a fez calada
e que por isso vim a essa encruzilhada
entre macondo e comala
levando vela e comida e bebida
porque os mortos têm frio e sede e fome
levando tinta e papel e caneta
porque os mortos, deste lado
escrevem e dançam no próprio nome
Sobre o autor:
Philippe Wollney é poeta, editor, pesquisador e produtor cultural. Nasceu em 1987 na cidade de Goiana (PE). Recebeu o Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura 2017 com o livro Ruinosas ruminâncias. Tem poemas publicados em coletâneas como Antologia Poética Goiana Revisitada (Silêncio Interrompido, 2012) e Cem Poetas Sem Livros (2009), além dos livros Amor librorum nos unit (2022), Trago é guerra dentro de mim (2019); Poemas para desastres sentimentais (2016), Caosnavial (2015), Mas esse ano eu não morro (2015), todos pela sua editora independente Porta Aberta.
Serviço:
Site da Cepe Editora:
https://www.cepe.com.br/lojacepe/aquele-que-tudo-devora?search=philippe
Preço do livro: R$ 35,00 e R$ 14,00 (E-book)
LOJAS FÍSICAS:
Serviço:
Mercado Eufrásio Barbosa, Av. Doutor Joaquim Nabuco, Varadouro, Olinda, aberta de terça a domingo, das 9h às 17h;
Livrarias Cepe – Santo Amaro, Rua Coelho Leite, 530, aberta de segunda a sexta, das 8h às 17h;
Museu do Estado de Pernambuco, Av. Rui Barbosa, 960 – Graças, aberta de terça a domingo, das 14h às 17h;
Cais do Sertão, Armazém 10, Av. Alfredo Lisboa, S/N, aberta de terça a sexta de 9h às 17h e aos sábados e domingos de 13h às 17h.