A elegância poética de Dora Ferreira da Silva DOCUMENTA – memória da poesia brasileira

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Por Floriano Martins

Nota de abertura: As duas primeiras partes deste texto foram escritas como resenhas a livros de Dora Ferreira da Silva (1918-2006), e publicadas no jornal O Povo (Ceará), respectivamente em 1998 e 1999. A parte conclusiva é uma entrevista que sugeri ao poeta Donizete a fizéssemos com a poeta por ocasião da publicação de Dialéctica das consciências e outros ensaios (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002), largo volume que reúne parte considerável da obra filosófica de Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), de quem foi esposa e parceira em inúmeros projetos. A entrevista foi publicada na Agulha Revista de Cultura, no mesmo ano de sua realização, em 2003.

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1. De passagem pelas páginas dos raros suplementos literários brasileiros, dá-nos a impressão de uma debandada geral de nossos grandes poetas. Já não me refiro à obra poética em si, pois há muito cultuamos as impressões sobre o poema como algo mais essencial do que o poema em si. Também não me refiro àqueles que já não estão entre nós – Jorge de Lima, Murilo Mendes, Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo –, porque acabam retornando em forma de edições comemorativas ou frágeis pontuações da pena de algum crítico.

Penso em vozes expressivas e renovadoras, a exemplo de Gerardo Mello Mourão, Ferreira Gullar, José Santiago Naud, Hilda Hilst, Francisco Carvalho. Certamente ainda estão vivos graças a um estoicismo a toda prova, visto que raramente são mencionados na imprensa. E aqui me refiro que a menção que saliento é de ordem estética, referência indispensável em face dos arremedos de escândalo que tanto agradam à nossa cultura “Sétimo Céu”.

O cuidado de enumerar nomes é algo imperativo em um país que tem o hábito de generalizar para não se comprometer. Ao longo da precaríssima história de nossa poesia, fomos deixando alguns nomes inteiramente à margem, a exemplo de Pedro Kilkerry, Dante Milano, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa. Não importa que a posteridade tenha recuperado alguns. Refiro-me ao pouco apreço que temos por nossa identidade poética, pela falta de respeito próprio que expomos quando está em discussão a salvaguarda de nosso patrimônio cultural.

Faço essas anotações em face do recentíssimo lançamento de Poemas em fuga (São Paulo: Massao Ohno Editor, 1997), de Dora Ferreira da Silva. Pela grandeza estética de sua poesia, ainda renovada e pulsante a despeito de seus 80 anos de idade, este livro requer uma recepção especial, quando menos porque põe em xeque-mate uma tradição brasileira que torna algo esclerótico qualquer autor sexagenário. Não há repetição ou diluição nos poemas de Dora Ferreira da Silva que agora lemos. Ao contrário, latejam com uma vibração contagiante de seus postulados estéticos. Trata-se de uma visceralidade consubstanciada e não de um recolhimento ao hábito poético.

Não posso deixar de pensar em um poeta contemporâneo seu, o chileno Gonzalo Rojas. Nos dois casos, há uma firmeza estética sendo lapidada a cada resplendor do instante, uma convicção na vida como renovação constante, que os impede de qualquer recurso acomodatício. Na cena brasileira, podemos pensar em Manoel de Barros ou principalmente Gerardo Mello Mourão, seus contemporâneos. Sobre os dois casos destaca-se a poesia de Dora Ferreira da Silva, pelo apetite insaciável e a inquietude contagiante com que o verbo conduz ao encantamento, à degustação essencial da poesia.

Antes de Poemas em fuga, tivemos Andanças (1970) Talhamar (1978) e Retratos da origem (1988), entre outros. Entre os raros nomes da crítica que escreveram a seu respeito, encontra-se José Paulo Paes, cuja observação fundamental destaco: “Na lírica órfica de Dora Ferreira da Silva – um dos mais altos momentos da poesia brasileira de hoje –, signo e coisa são consubstanciais e, como tal, intercambiáveis, pelo que é dado às garças fazerem-se hieróglifos de ar, a conchas convizinhar com Delfos, às pedras de Itatiaia voar com os pássaros e florir com as flores, aos semáforos de rua acender as luzes do destino, aos amigos mortos sentar-se conosco à mesa do almoço, e ao prosaico virabrequim mudar-se numa máquina de espantos.”

Demoro-me na citação por sua precisão sagaz, pelo que nos permite entender da espontaneidade e da intenção da poesia de Dora Ferreira da Silva. Quer dar sentido ao que toca, ao mesmo tempo em que busca ser tocada pelo sentido das coisas. Frui uma fascinação estética, porém fundamenta-se em uma expressão religiosa. Seu entendimento da palavra poética como forma de preservar a sensibilidade humana já o atesta. Entre seus contemporâneos na América Hispânica não posso deixar de citar o venezuelano Juan Liscano, o equatoriano César Dávila Andrade e o boliviano Jaime Sáenz. Poetas de aspiração dialética, cuja obra opera entre o espírito e o logos.

A publicação de Poemas em fuga, contudo, nos chama a atenção para um aspecto mórbido: logo morrerá Dora Ferreira da Silva e a enterraremos no velho cemitério dos poetas. Não há nada ali: carne morta, letra morta. Não há ressurreição possível para a vala comum. Assim são tratados os poetas no Brasil. Assim são tratados os poemas. Ser e linguagem, alimento destinado ao mais completo esquecimento.

Agora que ainda está viva, pediu ao poeta Donizete Galvão que cuidasse da edição de sua Poesia Reunida. Como fazê-lo? Que espécie de respeito imprime a obra de um poeta em um país que adia sistemática e indisfarçadamente qualquer negociação que envolva seu comprometimento como nação? Somos uma cultura rendida pelo mercado. Nenhuma editora no país publicará a poesia reunida de Dora Ferreira da Silva. Nas redações de jornal diz-se assim: dá-me uma data e cuidaremos dela. Da data, claro está, jamais da vítima. Dos poetas cuidarão apenas os próprios poetas.

2. A obra poética de Dora Ferreira da Silva vinha já de muito necessitada de uma difusão mais ampla, uma vez que a mesma somente circulava em São Paulo, em livros como Menina seu mundo (1976), Talhamar (1982), Retratos da origem (1988), Poemas da estrangeira (1992) e Poemas em fuga (1997).

Temos finalmente a edição de sua Poesia reunida, que recolhe, além dos livros mencionados, Andanças (1970), Uma via de ver as coisas (1973) e Jardins (1979), além de poemas traduzidos para o alemão pelo amigo e exegeta Vilém Flusser que ao estudo de sua poética dedica capítulo do livro Bodenlos: eine philosophische Autobiographie (Dullseldorf, 1992).

O nome de Dora Ferreira da Silva é bastante conhecido graças à sua incansável atividade tradutória, cujos exemplos de maior fôlego constituem a Obra Completa de Carl Gustav Jung e a poesia de Rainer Marie Rilke, mas onde se incluem traduções de San Juan de la Cruz, Angelus Silesius e Saint-John Perse.

Contudo, outra particularidade de seu envolvimento com a poesia a ser mencionada é o fato de haver fundado e dirigido duas importantes revistas: Diálogo, nos anos 1950, ao lado do marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva, e Cavalo Azul, nos anos 1980 – publicações já esquecidas, mas que representaram, em seu tempo, essencial repositório da criação e sua reflexão.

Um enorme entusiasmo pela vida tem sido a característica principal de Dora Ferreira da Silva. Em entrevista concedida a Gilberto Kujawski e Hermes Nery, em 1989, sintetiza: “Nós é que damos sentido ao tempo, e buscamos fazer o melhor nesta fração de tempo que é a nossa vida aqui”, isto a partir de uma anotação de seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva, que havia encontrado em um livro: “Entramos na história quando ela já começou, e saímos antes de ela terminar”. Corroboração imediata com uma leitura de sua poética sugerida por Euryalo Cannabrava, quando ali destaca “a busca obstinada de um rigor que, violentando todos os cânones da linguagem prosaica, instaura sobre as suas ruínas a sintaxe lírica do poema absoluto, sem condições restritivas”.

Abordagens complementares: Cassiano Ricardo sublinhava a presença de um misticismo, “tendendo sempre para o mistério”; Ivan Junqueira salienta o convívio perfeito de ambientações “a um tempo cósmica e celebratória” em suas imagens; tudo indo desaguar em uma “expressão religiosa” percebida por Vilém Flusser. É ele quem nos dá sua melhor tradução, ao observar que na poética de Dora “o símbolo não é mediação primeira entre o sujeito e coisa concreta, mas entre o sujeito e o transcendente”, concluindo que “o significado último do símbolo não é uma coisa no mundo vivo, mas o que está do outro lado dos limites do mundo vivo”.

Simbolismo e romantismo, tanto quanto a vertente enriquecida pelo surrealismo, são acentos indispensáveis à compreensão da poesia de Dora Ferreira da Silva, o mesmo valendo para muitos poetas de sua geração, que é a mesma de Vinicius de Moraes, Gerardo Mello Mourão e Manoel de Barros, onde merecem ainda ser recuperadas as obras de Dantas Mota e Manuel Cavalcânti.

Nos versos finais de um poema dedicado a Anaïs Nin reflete: “musa da ventania amiga dos gélidos / consumiu-te o fogo em que ardias”, sugerindo entendimento de que devemos ser iluminados e não queimados pelo fogo que nos conduz através da escuridão perene que funda todas as coisas à nossa volta. Mergulho no risco, mas não descompasso ante os deslizes eventuais. Aí radica a “lírica órfica” apontada por Ivan Junqueira ou a busca de um “poema perfeito” que destaca Euryalo Cannabrava. Melhor dirá a própria Dora ao evidenciar que “há todo um mito da noite, este anoitecer que impregna em você, e anoitece junto com você, e você sente-se em estado de graça por participar da noite no que ela tem de poético e impregnante”. A noite aludida não é senão nossa intimidade com o abismo, a revelação essencial da natureza humana, a restauração do sagrado, um risco.

Todos esses símbolos preciosos encontram-se na obra de Dora Ferreira da Silva, cujo princípio poético aponta para uma meditação constante sobre a condição humana, não sem compreendê-la como indissociável da natureza como um todo. Não se trata de uma solitária na tradição poética brasileira, desde que recuperemos muitos nomes soterrados por intenção ou displicência.

Tratemos de lê-la. A densidade de uma poética, não se diluindo ao plano das consternações ou das máximas de efeito, impõe o recolhimento natural à compreensão de toda grande poesia, cujo exemplo temos em poemas como “Garças”, “Ciclo de Teseu” e “Retratos da alma”. Dora Ferreira da Silva teve suficiente paciência para ser lida pelos brasileiros somente aos 80 anos de idade. Que os brasileiros saibam dignar-se diante de tamanha honra.

>>> Entrevista <<<

FM | Em que circunstâncias conheces o Vicente Ferreira da Silva e quais identificações os levariam a compartilhar toda uma vida, não apenas no plano amoroso mas no que diz respeito a cumplicidades éticas e estéticas?

DFS | A pergunta é de cunho bastante pessoal, mas ao mesmo tempo significativa e importante. Você indaga a cerca das cumplicidades éticas e estéticas entre mim e o Vicente. Conhecemo-nos muito jovens. Eu com 15 anos e ele com 18 em um baile de formatura. Eu num vestido branco longo, usava batom pela primeira vez. Vicente, muito elegante, em seu smoking, cabelos queimados de sol, pele dourada. Fomos apresentados por Milton Vargas que disse: Quero apresentar um gênio para outro gênio. Nessa época de juventude não poderíamos ser menos do que “gênios”. Líamos Assim falava Zaratustra, Dostoievski, nos identificávamos com os personagens. Principalmente eu, que era quase uma criança e meio tola. Vicente cursava Direito e estudava matemática com Fantappié. Tivemos um diálogo surrealista nesse primeiro encontro. As perguntas eram respostas e as respostas eram perguntas. Reconhecemo-nos parceiros e o amor veio ao mesmo tempo. Casamo-nos cedo. Eu estava com 19 anos, já formada pelo Instituto de Educação, e ele com 22, Bacharel em Direito e estudante de Lógica Matemática.

Ficamos casados 23 anos. Nossa vida foi a de dois seres voltados para a cultura. Embora já escrevesse poesia, que só publicaria bem mais tarde, estava identificada com Vicente. Eu era sua secretária e aluna. Ouvíamos música e ele gostava de me ouvir lendo poesia. Lemos juntos a obra de Rilke. Em 1939, Vicente fez sua primeira conferência no Brasil sobre Lógica Matemática no Instituto de Engenharia. Em 1940, publicou seu primeiro livro, Elementos de Lógica Matemática. Willard van Orman Quine, filósofo americano, professor de Lógica Matemática, veio para o Brasil em 1942. Convidou Vicente para ser seu assistente no curso que ministrou na Escola de Sociologia e Política. Pouco depois, Vicente foi nomeado assistente de Lógica na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, na recente Universidade de São Paulo (USP), na rua Maria Antônia.

DG | | Como foi que o Vicente Ferreira da Silva partiu da Lógica Matemática para chegar a Heidegger?

DFS | O itinerário do pensamento de um filósofo não é algo que possa ser explicado. Vicente sempre se interessou por Lógica Matemática, mesmo ao cursar Direito. O encontro de um livro de Willard van Orman Quine interessou-o vivamente. Ele já começara a escrever Elementos de Lógica Matemática. O percurso de Vicente da Lógica Matemática até Heidegger consta de várias etapas que só podem ser devidamente compreendidas através da leitura do seu livro Dialéctica das Consciências e Outros Ensaios. Como assina com justeza António Braz Teixeira, a reflexão de Vicente se encaminha da Lógica Matemática para o domínio antropológico. Primeiro, de cunho existencial, profundamente humanista, sem desatender o profundo sentido e valor do mito e do sagrado. Na última fase do seu pensamento, infelizmente inconclusa por causa da morte prematura de Vicente, ele se concentrou na filosofia da mitologia sugerindo um neopaganismo ou um politeísmo originário. Inaugura assim um caminho reflexivo inovador e original. Dotado de grande força e alta qualidade literária, o livro de Vicente interessa, certamente, às novas gerações de amantes de filosofia e de poesia. Foi esse o motivo propulsor que me levou ao duro embate da reedição de sua obra. Se não fosse o encontro feliz com o filósofo António Braz Teixeira, a obra importante de Vicente tornar-se-ia uma busca arqueológica ou, então, ficaria restrita a gabinetes acadêmicos ou bibliotecas particulares.

FM | O Vicente publicou com frequência suas reflexões na Revista Brasileira de Filosofia e Diálogo. Qual a importância dessas duas publicações na época? E com o que pode contar hoje no Brasil esta área essencial do conhecimento humano?

DFS | Vicente publicou muitos de seus artigos na Revista Brasileira de Filosofia, na qual foi cofundador com Miguel Reale. Em 1955, fundou com Dora Ferreira da Silva e Milton Vargas a revista Diálogo, considerada uma das mais instigantes do Brasil. Com a morte precoce de Vicente em um acidente de carro, a revista Diálogo publicou um último número e cessou. Dois anos depois, resolvi editar a revista Cavalo Azul mais voltada para a poesia e a literatura.

A revista Diálogo teve uma grande repercussão. Hoje, não se fala mais dela. Há uma conspiração do silêncio. Ivan Junqueira e Per Johns têm todas as revistas. Per Johns disse-me que o encontro com a Diálogo foi muito importante para ele. Tenho guardada toda a coleção da Diálogo, que foi até o número 16, dedicado ao Vicente. Sem o Vicente, a Diálogo ficou sem sua alma. Só para se ter uma ideia, a Diálogo # 7 trazia Vicente Ferreira da Silva, Milton Vargas, Heraldo Barbuy, Mario Chamie, Ruy Apocalypse, a tradução de Quarta-feira de cinzas de T. S. Eliot feita por mim e uma entrevista com Haroldo de Campos.

Mas pensei que não era possível parar. Por isso, fundei a Cavalo Azul que teve 12 edições e acabou por motivos financeiros. A Cavalo Azul # 1 tinha colaborações de Anatol Rosenfeld, Guimarães Rosa, Clarivaldo Prado Valladares, Vicente Ferreira da Silva (Diálogo do Rio, publicado postumamente), Vilém Flusser, Theon Spanudis, J. C. Ismael, um artigo de J. O. Meira Penna chamado Donjuanismo e existencialismo, a tradução de Os Discípulos de Saïsde Novalis, feita por mim, traduções de Shakespeare por Péricles Eugênio da Silva Ramos.

DG | | Como eram os diálogos entre Vicente Ferreira da Silva e Agostinho da Silva? No que concordavam e em que discordavam?

DFS | Vicente Ferreira da Silva e Agostinho da Silva foram grandes amigos, mas no tocante ao pensamento mais discordavam do que concordavam. No plano do pensamento o Agostinho, para citar um exemplo, gostava de Espinosa. Vicente, não. Vicente voltou-se mais para o pensamento alemão, para os românticos alemães. Tinha interesse por Novalis. Naquela época, em São Paulo, as livrarias eram paupérrimas. Eu ia à Biblioteca Municipal copiar dados sobre Novalis ou trechos de Novalis. Eu tinha um caderno preto com pensamentos de Novalis.

Isso para ajudar o trabalho de Vicente. Em São Paulo, não havia livros de Novalis. As editoras não se arriscavam. Quem iria ler Novalis? Retornando ao Agostinho, seus diálogos com Vicente ia de manhã até a noite. Surgiu o assim chamado Alcorão. Nome escolhido por Agostinho para o cerne dessas conversas por ele redigidas. No entanto, o Alcorão é muito mais Agostinho do que Vicente Ferreira da Silva.

Vicente lecionou a vinda inteira sem ganhar nada. Aliás, quando houve a recusa do nome dele para a USP, Cruz Costa não teve culpa nenhuma. Recusaram ao mesmo tempo Vicente, Oswald de Andrade e Renato Czerna que, mais tarde, foi ser catedrático na Universidade de Roma. Foi a única vez que vi o Vicente abalado. Ele tinha uma vocação socrática, adorava ensinar. Continuou a fazer isso. A nossa casa foi um centro de cultura. Todos os professores que vinham da Europa para dar aulas na Universidade passavam por nossa casa. A conversa de Vicente era brilhante como aquilo que ele escreve.

FM | O Eudoro de Sousa (1911-1987) tinha observações valiosas sobre as relações entre mito e poesia, e costumava dizer que “O primeiro poeta foi o primeiro mitólogo; isto é, o primeiro que disse, ou cantou, certa realidade outrora consentida e convivida por todos os participantes num drama ritual.” Por sua vez, Vicente Ferreira da Silva, ao refletir sobre o aórgico (“o não posto pelo homem, […] o que não se apresenta como um resultado da produtividade artístico-criadora do sujeito”), dizia que “o homem é um ser abandonado ao seu próprio modo de ser, fascinado em si mesmo, sempre aquém do princípio limitante da matriz”, e que “o mito nos instaura fora de nós mesmos, é um ser-fora-de-si que, entretanto, nos elucida acerca de nossa própria proveniência”. Pode-se entender como confluentes as ideias de ambos?

DFS | O problema é bastante complexo. Vicente e Eudoro de Sousa não se influenciaram reciprocamente. Trilharam caminhos paralelos e coincidentes, mas não totalmente iguais. Eudoro de Sousa logo partiu para Brasília, onde foi professor universitário. Quando vinha a São Paulo, passava o dia conversando com Vicente. Eudoro não escrevia cartas. Era bastante tímido. Quando vinha em nossa casa, vinha sozinho. O romantismo alemão exerceu muita influência sobre Vicente. A palavra “aórgico” é tirada de Hölderlin e significa o “não feito pelo homem”, o “orginário”.

DG | | Você disse que Vilém Flusser mudou depois de conhecer Vicente. No que foi que Vicente influenciou o pensamento de Flusser?

DFS | Vicente e Flusser foram assíduos interlocutores. Era nítida a influência do pensamento de Vicente em Flusser, quer concordasse ou discordasse. Em primeiro lugar, Flusser abandonou os negócios que herdara do pai para se dedicar aos estudos filosóficos. Dizia ele que os negócios o ameaçavam de esquizofrenia porque só se sentia bem entre os livros. Creio que a presença instigante de Vicente, que também fizera a opção pela filosofia, deve tê-lo estimulado em sua escolha.

FM | Certa vez o Antonio Braz Teixeira afirmou que Vicente Ferreira da Silva seria “o mais brasileiro dos filósofos brasileiros, pela divinização da natureza e pelo politeísmo/paganismo do seu pensamento, pelo verdadeiro sentido cósmico que revela”, vendo nele, ao lado de João Guimarães Rosa, Ariano Suassuna e Glauber Rocha, as expressões culturais mais autênticas “do Brasil profundo e das virtualidades e especificidades da cultura brasileira”. Acaso estarias de acordo? E que paralelos seria possível traçar entre esses quatro nomes referidos?

DFS | De fato, António Braz Teixeira afirmou isso. A caracterização da personalidade de Vicente parece-me certa. No tocante a relação do pensamento do Vicente com a obra de Guimarães Rosa, já não considero isto tão óbvio. Entre eles sempre houve grande cordialidade, mas no trecho de uma carta de Guimarães Rosa para Vicente, podemos adivinhar as diferenças entre ambos. (Dora passa a ler a carta).

Recebi sua carta. Li-a com vivo interesse e ajudou-me a pensar muita coisa. Temos de conversar horas vastas, mas só quando eu for aí ou você vier ao Rio. Em carta a gente se desentende. Nisto, como em tudo mais, o que vale são os detalhes e o calor da vida. Conversaremos, reconversaremos. Antes, porém, você tem de ler o Corpo de baile inteiro. Está seguindo um exemplar para você e Dora. Valeria a pena, quem sabe, reler também Grande Sertão: Veredas que, por bizarra que você ache a afirmação, é menos literatura pura do que um sumário de ideias e crenças do autor com buritis e capim devidamente semicamuflados.

Depois, preciso de terminar todo o Berdiaeff em quem estou me encontrando maravilhadamente quase que ponto por ponto. Formidável! Até aqui estou em que subscreveria os 90% dele. Muitas coisas que eu sofrera tempo e ânsias para descobrir sozinho por mim, agora estou as achando nele. No duro do russo! Com Jaspers, também frequentemente concordo e mesmo com Kierkegaard. Com Heidegger, não. Sinto sempre que ele, tal como Nietzsche, ouviu o galo cantar só pela metade. No entanto, o sein zum Tod, o Homem é para a Morte, eu aceito sinceramente. Principalmente, porém, estou nesta cintilante linha: Platão, Bergson, Berdiaeff, Cristo.

Estou falando muito de mim, mas é por causa do seu cordial interesse e para vocês me conhecerem melhor previamente. Desconfio de que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui. Tudo fora de foco. Sou só religião, mas impossível de qualquer associação ou organização religiosa. Tudo é o quente diálogo, tentativas de com o infinito. O mais, você deduz. O intelectual repugna-me. Zuruck (para trás) nunca. Para coisa nenhuma. Só hinauf(para cima). A busca da plenitude: um fato.

Mas com a prévia abolição total do sofrimento. Muito de Lawrence eu aceito, mas ele, acho, não completou a curva, a trajetória [morreu muito jovem, aos 46 anos, observa Dora]. Tudo o que é discórdia, agressividade, destrutividade tem de se transformar, desaparecer antes. Cristo, o Cristo verdadeiro, cabe. Tem seu ensino indispensável: “os mansos herdarão a Terra”. Você conhece os livros de Donne, o inglês serialista? O ensino central de Cristo, o do reino dos céus dentro de nós, é: 1º O domínio da Natureza. A começar, pela natureza humana de cada um, mediante a Fé que é a forma mais alta e sutil da energia a qual o mundo é plástico. 2º O Amor. Possibilidade de coexistência sem o mínimo sinal de atrito, conflito, desarmonia, destruição ou desperdício. Sobre esta plataforma, o Céu. As possibilidades infinitas de um sempre evoluir em plenitude, prazer, alegria ininterrupta, cada um invulnerável.

Como numa peça de teatro, o Grande Sertão diz mais de uma vez: será que me falta grandeza? Bem, por hoje tagarelei demais. Forte abraço amigo. Tantas lembranças à Dora. Lembranças à Diva e ao Milton Vargas, Outro abraço do seu,

Guimarães Rosa

DG | | O Vicente tinha uma visão politeísta e você em certos poemas une certo neopaganismo com o cristianismo. Seu pensamento foi por caminhos diversos do pensamento de Vicente?

DFS | Vicente e eu fomos casados e parceiros. Estudamos juntos. Como disse, datilografei quase toda sua obra, mas nunca me identifiquei totalmente com seu pensamento. Sou de ascendência grega. Acho que os deuses gregos respondiam aimago dei dos gregos. Não nego que eles se imiscuem à minha sensibilidade. Meu itinerário poético prosseguiu após a perda terrível que sofri com a morte de Vicente. Durante uma viagem à Itália, em Ravena, vi na abside de uma igreja bizantina um pastor imberbe tangendo suas ovelhas. Tive um insight. Lá estava diante dos meus olhos o Bom Pastor em sua forma originária e pagã. Não é de mim que devo falar nessa entrevista. Mas é certo que meu sentimento e pensamento, e a poesia deles decorrentes, têm um percurso próprio. Nada foi recusado ou abafado da vida anterior partilhada com Vicente. Meu caminho prosseguiu e tem um matiz próprio.

FM | Ao final de 2002 se publica em Portugal Dialética das consciências e outros ensaios, que é o que existe de mais abrangente em termos de reunião do pensamento humanístico de Vicente Ferreira da Silva. Este volume inclui também textos dispersos e inéditos. Indagar o motivo da publicação portuguesa equivale a indagar sobre os impedimentos de uma edição brasileira. De que maneira e por quais motivos o Brasil não percebe a existência de um filósofo cuja essencialidade especulativa, ainda que inconclusa, permanece atual e repleta de sutilezas surpreendentes?

DFS | Esta pergunta só pode ser potenciada. Porque a mesma pergunta eu me faço. Mistério! Aqui eu estou falando menos como esposa do que como a parceira intelectual de Vicente, o que é bastante constrangedor. Bati à máquina praticamente sua obra inteira. Não estudei na USP, mas tive o melhor professor de filosofia. Concluo dizendo que as novas gerações poderão ler Vicente sem precisar ir ao sebo. Vi um livro anotado por muitos na mão de um jovem que me procurou há tempos perguntando como e onde poderia encontrar o livro. Fica assinalado aqui o meu reconhecimento a Portugal e ao professor António Braz Teixeira que nos dão de presente o pensamento brasileiro que estava fadado a permanecer em gabinetes fechados, ou em teses universitárias e de valor, de difícil acesso. Há pelo menos 9 delas, uma defendida na Itália na Universidade de Roma. A Livraria Camões, no Rio de Janeiro, foi encarregada de distribuir o livro no Brasil. Ele já pode ser encontrado em várias livrarias de São Paulo.

DG | | No pensamento de Vicente, a poesia ocupa um ponto central. O que você tem a dizer sobre o Diálogo da Montanha (Diálogo # 16) onde George, Mário e Diana conversam e George interroga sobre qual a contribuição da erudição, da metafísica e do tropismo pela poesia para a civilização?

DFS | Creio que só a morte detém o nosso percurso, não só o exterior como o interior. Acredito que Vicente é importante para as novas gerações que se defrontam com um mundo dessacralizado e carente de alimento anímico. Vicente é um pensador religioso, não no sentido de uma determinada confissão, mas em um sentido mais amplo do sentimento do sagrado. Partilhamos filosofia e poesia. Sendo que ele era professor na primeira e discípulo na segunda.

Se eu exagero, me perdoem. Tudo isso é uma tentativa de dizer o que foi vivido. Particularmente, o Diálogo do Mar e o Diálogo da Montanha foram inspirados mais de perto na vida vivida.

O Diálogo da Montanha se passa na Serra da Mantiqueira. Mário, que corresponde a Vicente, e Diana, que corresponde a Dora, são irmãos espiritualmente falando. George é Agostinho da Silva. É ele que deflagra o diálogo. Evidentemente, estes são sinais aproximativos de uma realidade muito mais rica. Talvez se possa dizer que todos os personagens são heterônimos do próprio Mário (Vicente) e de sua Sóror Mística (Dora). Creio que esse diálogo deve ser lido e meditado. Também acho que é complexo demais para ser reduzido a uma súmula ou simplificação. Sua qualidade literária e filosófica está aí para ser meditada e admirada. Enfim, com a reedição da obra de Vicente, é com a maior alegria que entrego às novas gerações o Tesouro Oculto – a obra inconclusa de Vicente Ferreira da Silva.

>>> Poemas <<<

NASCIMENTO DO POEMA

É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.

É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.

E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.

AFRODITE

Disse a deusa a sorrir:
esta manhã o mar deu-me adereços
e vestida de pérolas
fui a um reino distante.
Cânticos despertaram vides
e frutos nasceram, que o sol
cultiva nos pomares.
Coros adolescentes perseguiam Eros
— p coroado de pâmpanos —
pois de meus lábios haviam provado ,
o vinho farto e suave.

Liames atando e desatando,
ele a beleza ocultava nas angras mais profundas,
pois quando emergia — flâmeo! —
o murmúrio do mar as praias inundava
e a embriaguez vizinha da morte
ameaçava os amantes…

DELFOS

Aquece o Sol as clareiras do ar,
atirador de dardos súbitos.
Apolo foi chamado e usurpou em Delfos o trono das Sibilas.
Sobre a mancha de trevas pousou a trípode de luz
e mais longe soprou os vaticínios.
Muitos morreram de luz tão clara, incendiando o coração.
O ar brincou na flauta abandonada pela deusa sábia
e a música invadiu águas turbulentas:
rápidas mensagens riscou o vento nas Fedríades,
pedras róseas que se chamaram as Luminosas.
À noite, dormem no bosque templos de ossatura branca,
vértebras pousadas entre oliveiras.

Três colunas se enlaçam, sobrevivas,
na antiga ronda do templo,
fechado o círculo dos ritos funerários.

As cigarras se atrevem e os jumentos
a louvar a montanha, os vales e deuses soterrados.
A Terra acorda às vezes e suplica que tanta luz

não lhe fira a carne, queimando arbustos e a pedra crua


[Arquivo Agulha Revista de Cultura]

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