Jomard Muniz de Britto: sete décadas de amor pelo cinema

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por Aristides Oliveira, editor da Revista Acrobata

É impossível estudar a história do cinema experimental nordestino dos nos 70/80 sem citar a importância do superoitista Jomard Muniz de Britto (JMB). Atualmente seu nome está presente nos principais eventos acadêmicos e o interesse por pesquisas sobre a obra dele cresce nas universidades pelo Brasil.

Comecei a pesquisar o tema a partir do incentivo do professor Edwar Castelo Branco, que me convidou há vinte anos atrás a escrever sobre seu filme mais conhecido: “O Palhaço Degolado” (1977). Quando Edwar me propôs embarcar nessa jornada, comprei um cartão telefônico, liguei para Jomard e avisei: tô indo à Recife te entrevistar.

Chegando lá em partir de 2007, eu e JMB estabelecemos uma relação de amizade que me fez ir à Recife uma porção de vezes, seja para vasculhar seu arquivo pessoal, tomar café no São Braz ou caminhar pelo centro da cidade, entre a Boa Vista e o Recife Antigo. Hoje me peguei lembrando desses momentos a partir de uma foto que ele me enviou para celebrar nossos 10 anos de amizade. Nela, vejo um Jomard pré-Bossa, pré-Tropicália, pré-degolagem e pré-atentado.

Assim como em todas as fotos que ele me enviava, atrás vinha uma dedicatória:

Olhando para essa versão de JMB, fiquei me perguntando: o que este jovem gostava de fazer antes de se tornar o famigerado que tanto conhecemos? O que ele foi antes de se tornar um realizador de filmes, anti-professor, provocador, poeta, amante da música e defensor da liberdade de expressão em tempos de perseguição gilbertiana e o eterno famigerado? Fiz essa investigação com a jornalista Fabiana Moares, quando escrevemos o livro “Jomard Muniz de Brito: professor em transe” (CEPE, 2017), mas por ser um perfil biográfico, não foi possível mergulhar nessa fase da sua vida com a dedicação que merece.

Então, vou aproveitar meu reencontro com essa foto para retomar o período de sua juventude , que remonta aos anos 50 para percorrer nos primeiros passos da sua paixão pelo cinema. Antes do polêmico realizador superoitista que abalou as bases freyreanas-armoriais, tivemos um Jomard espectador, atravessado por uma visão crítica e ativa na cena audiovisual recifense.

Jomard Muniz de Britto foi um adolescente que demonstrou bastante interesse pelas artes, nas suas mais variadas formas, principalmente a pintura, música e cinema. Quem conviveu com ele nas últimas décadas sabe que dificilmente o achava em casa, pois seu compromisso com os eventos culturais de Recife sempre foram prioridade. Jomard esteve em todos os lugares, das pré-estreias de filmes no São Luiz, exposição de esculturas e artes plásticas, conferências e mesas redondas na UFPE, inauguração de galerias à lançamento de livros…

 Na juventude não foi diferente. A paixão pelos filmes movimentou seu desejo em explorar variados gêneros cinematográficos ofertados nas salas de cinema da capital pernambucana, mas suas caminhadas às sessões não eram resumidas a um olhar passivo diante da produção audiovisual daquela época. Ele queria exercitar seu olhar em torno da linguagem, se posicionar sobre as experiências estéticas vivenciadas, bem como compartilhar o resultado de suas impressões sobre as obras com os leitores interessados na sétima arte. O jovem apaixonado por cinema se desafiou a ir além do lugar de espectador e tornou-se cronista:

(…) com 16, 17 anos eu ensinava cinema no Colégio das Damas e no Colégio São José. Isso por influência do cineclube que eu frequentava. (…) Nunca pensei em fazer cinema (…), eu gostava de ser um analista, um professor, um conversador, até escrever algumas coisas[1].

Esse ensaio irá mergulhar numa faceta pouco explorada do pensamento de Jomard: nos deslocaremos dos estudos dedicados à produção fílmica e literária que o situam historicamente como um realizador, produtor e articulador cultural bastante conhecido no contexto do tropicalismo e seus desdobramentos pós-1970 para situá-lo no período em que ele estava se constituindo enquanto pensador do cinema, dando início aos primeiros escritos direcionados para compreender o universo cinematográfico que estava imerso nos anos 50, quando despertou sua verve criativa para a crônica nos jornais de Recife, Paraíba e o engajamento cineclubista.

 Tudo começou em 1953, quando JMB tinha 16 anos é aqui que iremos fincar nossa âncora. As primeiras crônicas que publicou nos jornais (seja na Paraíba ou Recife) ensaiavam suas impressões sobre a arte cinematográfica, vista como uma linguagem marcada pela imagem convertida em poesia, atrelada ao ritmo de uma narrativa, somada a edição, luz, jogo de cores e contrastes, bem como uma musicalidade, que, mesmo dependendo de outras artes para existir, o cinema ganhou sua técnica própria e conquistou espectadores do mundo inteiro.

 Inspirado no posicionamento do crítico Abílio Martins, o jovem cronista compreende que o cinema é, antes de tudo, uma linguagem que carrega um propósito espiritual, tornando-se um instrumento que carrega a arte da mensagem e transmite conteúdos sociais e humanos ao público, mas para isso, é importante destacar que este propósito só é possível com a materialidade que envolve esta arte através da indústria e do comércio que permeiam estas obras.

 Nas suas anotações ele compreendia que além do cinema enquanto arte, precisamos ter consciência de que muitos filmes não entram no circuito apenas para promover transformações no espírito e na consciência do espectador. O cinema também visa o lucro e o sucesso imediato, como podemos ver nas produções milionárias, que buscam boa recepção ligada ao entretenimento, pois “raramente, encontramos intenções artísticas” e sim empresários do setor ávidos em presenciar salas lotadas, enchendo os borderôs de dinheiro, para dar retorno no investimento e enriquecer às custas de filmes supérfluos.

 Para alcançar o diferencial e não se render ao cinema enquanto “passatempo” vem sendo criado “no mundo inteiro um movimento denominado de Cine-Clubes cuja finalidade é modificar o gôsto [sic] artístico destes [sic] expectadores [sic]”. A proposta é criar novas possibilidades de apreciação fílmica, priorizando a qualidade artística da obra.

Desse modo, para fundamentar seu posicionamento, Jomard se embasou na encíclica do Papa Pio XI, conhecida por “Vigilant Cura”, ao defender o cinema como arte que ergue-se:

(…) ao nível da consciência cristã, sirva à difusão de seus ideais e deixe de ser um meio de depravação e desmoralização… É uma das supremas necessidades do nosso tempo fiscalizar e trabalhar com todo afinco para que o cinema não seja uma escola de corrupção, mas que se transforme num precioso instrumento de educação e elevação moral (…). Os filmes não devem somente ocupar as horas vagas de lazer, mas podem e devem, por sua força magnífica, ilustrar as mentes dos expectadores [sic] e dirigi-los positivamente para todas as virtudes[2].

 Membro ativo do cineclube católico que levou o nome da encíclica (situada na rua Riachuelo, 105), a coluna “Luz e Som Filmes” foi um recurso utilizado para atrair o público a comparecer nas exibições que – mais do que divulgar um estilo de produção cinematográfica voltada para o espectador “seleto” – realizava uma variada gama de atividades com o objetivo de aprofundar os estudos sobre a arte do cinema, através de cursos, círculo de estudos cinematográficos, fóruns, conferências e uma biblioteca especializada em livros do gênero.

 Mas isso não era o suficiente para tornar o cineclube recifense um local movimentado, como imaginavam seus integrantes. Comparando a situação da experiência cineclubista baiana, que possuía cerca de mil associados pagantes, com mensalidades custando em média Cr$ 50,00 mensais, Jomard incentivou a entrada de novos membros, avisando que a diretoria reduziu o valor da mensalidade, a fim de aproximar os leitores que ainda não faziam parte do grupo:

Agora, para facilitar áqueles [sic] que desejam se associar, mas não podem vir acompanhados de outra pessoa, o Cine Clube “Vigilanti Cura” do Recife criou uma espécie de sócio individual. Este pagará uma joia mínima de Cr$ 15,00 e uma contribuição mensal de Cr$ 10,00, tendo direito a quatro (4) convites para cada projeção semanal[3].

 Para Jomard, um motivo que poderia justificar a baixa frequência do público no cineclube é devido a “programação fraca”, mas se o público entender que existe boa vontade em revisar a curadoria e exibir filmes mais atrativos, sem perder a qualidade estética, o Vigilanti Cura tornaria-se um espaço com fluxo intenso de cinéfilos:

A meu vêr [sic], está bastante difícil a situação atual deste Clube de Cinema, de acordo mesmo com a exposição de seu diretor nas últimas sessões, diante de todos os associados. Em junho, por exemplo, houve déficit de arrecadação[4].

Mesmo exibindo filmes que seriam uma possibilidade de chamar a atenção dos espectadores e com chances de lotar a sala, como “Punhos de Campeão” (Robert Wise, 1949), “A mulher faz o homem” (Frank Capra, 1939), “Domínio dos Bárbaros” (Graham Greene, 1947), entre outros, não houve aumento significativo na quantidade de pessoas visitando o local, nem se associando ao projeto.

Preocupado com o encerramento das atividades do cineblube, Jomard apelou aos leitores que não deixem o Vigilanti Cura esvaziar seu propósito de formação do olhar pelas lentes do cinema:

Seria vergonhoso para uma cidade como o Recife, com tão intenso movimento cinematográfico, o fechamento dos seus clubes de cinema. O CCVCR é o último a funcionar regularmente e com um programa realmente educativo. É nosso dever ampará-lo[5].

Entre frequentadores que iam e vinham, mas sem encher a sala como queria Jomard e a diretoria, o cineclube continuou seguindo com suas atividades buscando estratégias para manter as exibições e não fechar as portas. É o que podemos constatar em agosto de 1953, quando o Vigilant Cura buscou apoio do Cine Clube do Recife para encontrar saídas de fortalecimento coletivo e repensar seus programas curatoriais.

Duarte Neto, integrante do Cineclube do Recife (CCR) participou de uma reunião realizada no Círculo de Estudos Cinematográficos do Vigilanti Cura (CECVC) com o objetivo de criar meios de fortalecer os dois grupos, em busca novos espectadores. Cabia a decisão ser enviada aos membros do CCR, para que dessem a aprovação final. Vale destacar que – além da tentativa de parceria com o CCR – o CECVC estava realizando um trabalho de visita às escolas da capital para convidar os discentes das instituições a serem sócios do cineclube, “esperando-se que os estudantes colaborem nesta iniciativa”[6].

Um caminho adotado para convencer seus possíveis parceiros a compor essa união foi exibir alguns filmes “afim de que os sócios do Cine Clube do Recife entrem em contato com suas instalações e programação”, bem como explicar aos espectadores do CCR as vantagens de promover esse encontro, abrindo novas perspectivas ao cineclubismo local através desta parceria:

O sr Duarte Neto está encarregado de distribuir os convites para esta sessão, que será no dia 20 corrente, com o filme “Noite após noite”, dirigido por Don Siegel [1949]. A projeção terá, como sempre, início às 19 horas[7].

A junção dos cineclubes teria tudo para dar certo, levando em consideração que ambos carregavam em seus programas objetivos semelhantes, no que se refere à formação de público para o chamado “cinema de arte”. A sessão marcada para o dia 20 não foi como esperada, mesmo com a presença dos integrantes mais ativos do CCR e a expectativa de Jomard na fusão dos cineclubes.

O principal motivo da parceria não ter se concretizado pode ser visto no posicionamento de Mauro – membro do CCR – ao entender que a matriz de pensamento católico do Vigilanti Cura poderia ser um problema que limitaria as pautas de interesse do seu grupo. O que deveria ter sido um impasse debatido entre os cineclubes em âmbito privado, virou polêmica nos jornais da cidade.

Mauro expôs na Folha da Manhã os motivos que levaram a inviabilidade da união entre o CCR e o Vigilanti Cura, reverberando uma semana depois na coluna escrita por Jomard, ao ceder espaço para o cronista “L” publicar uma réplica em nome do Vigilanti Cura defendendo-se das acusações de Mauro.

A nota “União pouco proveitosa”, publicada no dia 29 de agosto de 1953, atribuiu a Jomard Muniz de Britto, Valdir Coelho, Lauro Oliveira, Maria José Ramos Coelho e Marilda Vasconcelos, e os representantes do cineclube que utilizam o jornal como espaço de retratação diante do que Mauro escreveu no outro periódico.

“L” reproduziu a nota do Vigilanti Cura, onde afirmou que Mauro se apropriou da Folha da Manhã para informar o ponto de vista do CCR em relação à resolução infrutífera de junção com o cineclube. Segundo a nota, ele agiu de modo capcioso, o que obrigou o Conselho Deliberativo a fazer um “reparo especial” diante das notícias veiculadas.

A primeira acusação de Mauro é de que o Vigilanti Cura era um grupo sectário, não possuía autonomia porque recebeu diretamente do clero um conjunto de imposições no processo de escolha dos filmes a serem inseridos na programação semanal. A crítica é rebatida. O cineclube não sabe como Mauro tirou essa conclusão, considerada sem fundamento, já que o histórico do Vigilanti Cura – independente do vínculo com a Igreja Católica – é marcado pela liberdade na curadoria dos filmes que são exibidos ao público interessado.

A única restrição do grupo é na exibição de filmes de “má qualidade artística ou reconhecidamente pornográficos”, o que não significa que o planejamento da curadoria seja limitado pelas autoridades religiosas:

Se tal [limitação] acontecesse, jamais teríamos apresentado no CCVCR ser composto de elementos de orientação protestante, como já ocorreu mais de uma vez. Quanto à suposta influência do clero, seria interessante que Mauro nos apresentasse fatos, ou citasse o nome do sacerdote que estivesse ligado ao CCVC. Ao que parece, o cronista só possui mesmo uma fértil imaginação[8].

A nota seguiu sua defesa chamando de “ridículo” o fato de que o integrante do CCR afirmar que o cineclube possui “normas rígidas e arcaicas” na seleção dos filmes, bem como a noção que atravessa a “expressão e arte” cinematográfica do grupo católico. A réplica exigiu que ele fosse claro e citasse expressamente que normas poderiam ser consideradas antiquadas, mas como o Vigilanti Cura entendeu que essa fala seria apenas um ataque gratuito para reduzir o trabalho dos membros, considerou que “Mauro brilhou mais uma vez pela imprecisão”[9]:

Os regulamentos e as múltiplas normas – continua o vago cronista – “são de ordem a limitar as suas atividades e as suas preferencias [sic]”. Somos obrigados a fazer mais uma indagação: quais normas e regulamentos? O Vigilanti Cura não está filiado a nenhuma escola de arte. Partindo de assertivas tão falhas e sem nenhum fundamento lógico, afirma a seguir que a nossa entidade jamais poderá propugnar “independencia [sic] mental ou artistica” [sic], passando do campo estritamente cinematográfico para o religioso, onde demonstra um lamentável desconhecimento superior mesmo ao que costuma exibir em sua especialidade, dizendo tolices como aquela de que o Papa julga cada filme através de uma enciclica [sic], etc[10].

As provocações envolvendo Mauro e Jomard nos jornais reverberaram negativamente entre os espectadores dos dois cineclubes. A ideia de unir o Vigilanti Cura e o Cine Clube do Recife terminou agravando as dificuldades na busca por uma alternativa viável que possibilitasse elaborar estratégias para ampliar as expectativas de crescimento do público nesses espaços e traçar novas rotas para fortalecer o circuito audiovisual paralelo ao cinema comercial. Após esse impasse, o Vigilanti Cura reservou-se a “não fazer polêmica. Dispensamo-nos, portanto, a responder de futuro a acusações vagas e absurdas como esta”[11].

***

No dia seguinte, Jomard virou a página e cada cineclube continuou trabalhando em seus programas específicos. Encerrou o mês de agosto mudando a pauta refletindo sobre o papel da censura no meio cinematográfico. Apesar de considerar necessária a intervenção do Serviço de Censura às Diversões Públicas (SCDP) em definir critérios para impedir que menores de 18 anos assistam a filmes impróprios, questionou a rigidez em censurar o filme Cidade Cativa (Robert Wise, 1952) exibido no Cinema Moderno.

Para o cronista, o filme não apresentava riscos aos jovens, devido seu “conteúdo extremamente humano e social”. Seu posicionamento contrário à censura do Estado deu-se porque Cidade Cativa foi acolhido pelo Serviço de Cinema da Ação Católica. Já que a entidade é “por muitos acoimada de rigorosa”, como a Igreja foi capaz de aceitar um filme impedido pela censura oficial e taxado de impróprio aos adolescentes?

Além de criticar o serviço de censura do governo Vargas, a fala de Jomard é uma defesa direta ao cine clube que participava, que era visto como conservador por alguns cinéfilos no campo da arte, mas – na perspectiva do integrante de um cineclube católico – tinha um olhar aberto para aceitar Cidade Cativa na sala de exibição do Vigilanti Cura, considerado proibido para menores de 18 anos pelo Estado.

 A Igreja entendeu que o filme era:

(…) “recomendável especialmente aos adolescentes”, podendo ser visto “por todos”, inclusive crianças, sem nenhum prejuizo [sic] de ordem moral ou psicologica [sic]. Entretanto, o SCDP julgou-a “impróprio até 18 anos”. Quem estará com a razão?[12]

O questionamento se estende ao que Jomard considerou uma falha do SCDP ao liberar o filme O Filho do Sheik (George Fitzmaurice, 1926) “para maiores de 5 anos e, no entanto, apresentava longas cenas cem [sic] bailarinas semi-nuas e dansas [sic] provocantes”. E o que dizer de Carnaval Atlântida? (José Carlos Burle, Carlos Manga; 1952), “cotado como impróprio até 14 anos, foi exibido com a censura livre, por interferência dos exibidores”.

Estes argumentos tornaram-se elementos centrais para desqualificar a censura de um filme que não traz problemas a juventude nem a necessidade de impedi-lo de circular nos cinemas de Recife. Jomard defendeu que não há motivo para a censura, pois qualquer espectador que tenha bom senso entenderia que Cidade Cativa não possui atributos para ser palco de polêmicas. “Se casos como este [Carnaval Atlântida] foram satisfatoriamente resolvidos, porque não o será o de Cidade Cativa, tão plenamente justificado”?

Finalizou a crônica mandando recado para o Dr. Jaime Santiago, que exerceu o cargo de censor-secretário de Pernambuco para aproveitar que possuía influência na direção nacional do SCDP para interferir no tocante à “impropriedade dos filmes”, sugerindo que ele abaixe a censura para 10 anos, porque não faria sentido a censura da Igreja liberar um filme a todos, enquanto o Estado restringiu o acesso para a maioria do público.

Nesta crônica, Jomard estava interessado em fazer uma defesa contundente ao filme contra a censura, reforçar que a Igreja Católica teria mais poder em decidir que tipo de filme deveria atingir o público em relação ao Estado ou seria uma provocação velada a Mauro, provando a este que o Vigilanti Cura não era um cineclube que adotava práticas rigorosas na seleção dos filmes?

***

O cineclube não diminuiu suas atividades e seguiu esforçando-se em organizar eventos com a finalidade atrair novos sócios para compor as programações audiovisuais na sede e em todas as paróquias que possuírem salas de cinema, juntamente com o Serviço de Cinema da Ação Católica. Esta organizou uma variada roda de conversa sobre a relação da Igreja e o cinema, o cinema na infância e adolescência e a importância de compreender o uso de cotações morais nos filmes.

Para não ficar apenas nas exibições de filmes, Vigilanti Cura organizou, através do Círculo de Estudos Cinematográficos, um ciclo de palestras aprofundando o debate em torno de temas que eram pautas recorrentes entre os membros e quem tiver interesse em participar dos bate-papos, já que a entrada era franca.

Entre os assuntos abordados, temos o neorrealismo italiano e a produção fílmica francesa, bem como a importância da cinematografia nacional dos anos 20 e 30 e suas comparações com a produção dos anos 50, para compreender quais avanços e retrocessos poderiam ser analisados e até que ponto nossos filmes representam algum diferencial em termos de qualidade estética em relação aos filmes estrangeiros.

Para coordenar os encontros, André Gustavo Carneiro Leão, Armando Laroche, Padre Daniel Lima, Evaldo Coutinho e Jota Soares foram os nomes cotados para dinamizar a programação desta sequência de conversas e aprendizados com referências aclamadas pelos sócios. Especialmente o último citado, nome de peso da época do Ciclo de Recife nos anos de 1923 a 1931, um dos pioneiros da produção audiovisual brasileira, carregando uma bagagem de muitas histórias e experiências sobre o ofício:

(…) ex-diretor da “Aurora Filme”, iniciará esta série com uma palestra sobre o tema: “Historia [sic] da Cinematografia Nacional”. Aqueles que desconhecem tão palpitante assunto, terão o ensejo de apreciá-lo através de um depoimento exato e perfeito do conferencista[13].

 A presença de Jota Soares neste evento seria emblemática para Jomard, por ser um artista que marcou sua aproximação com o audiovisual, quando este ouvia o programa de rádio Epopeia do Cinema. De ouvinte tornou-se convidado das transmissões para ler suas crônicas na rádio. Seria ali, para o estudante, o “começo” da sua paixão pelo cinema[14].

Para retribuir o convite, Jota aceitou dar a palestra no cineclube que Jomard participava e sua presença reforçou entre os membros o sentimento nostálgico de que o cinema realizado no Estado, em algum momento do passado foi protagonista na cena audiovisual no Brasil de trinta anos atrás, num período em que o cronista ainda não era nascido, mas tinha clareza que Jota fez parte de uma fase “na qual o cinema pernambucano era julgado um dos melhores do mundo (…). Um período que deu a Pernambuco o título de Hollywood Nacional”[15].

Trazer para o cineclube um ator e produtor com a representatividade de Jota Soares tornou-se uma forma de chamar a atenção dos possíveis novos sócios da potência que o cinema pernambucano conseguiu conquistar no passado. Para ele, nada melhor do que chamar uma peça-chave do saudoso Ciclo do Recife para mobilizar os espectadores a valorizar o cinema local e se conscientizar da importância da formação de público dedicado a consumir os clássicos nacionais.

Quanto mais pessoas com interesse pela própria história, adquirindo conhecimento sobre cinema através do testemunho de quem viveu in loco essas experiências, maior possibilidade para criar condições de fortalecer o circuito de exibições cineclubistas na cidade.

***

A vivência de Jomard no cineclubismo trouxe como aprendizado o interesse em conhecer com profundidade a história dos gêneros cinematográficos, tornando-o não apenas um espectador-cronista, mas pesquisador que compartilhava seus estudos nas conferências e cursos que realizou no Vigilanti Cura. “Um amigo meu brincalhão disse: Jomard, você começou a frequentar as reuniões e quinze dias depois você estava fazendo palestras. Isso mostra que sou vocacionalmente, por acaso, por necessidade e destinação um professor”[16].

A visibilidade de suas colaborações nos jornais da cidade e os comentários positivos que circulavam pelos corredores das escolas e do cineclube que ele lecionava possibilitou a abertura de convites para escrever em outros periódicos fora de Recife. No Correio da Paraíba, ganhou espaço para divulgar o resultado de seus estudos sobre comédia, gênero que Jomard estudava naquele período.

Dividido em três colunas, publicadas entre 7 a 21 de setembro de 1953, A Comédia Cinematográfica traçou o panorama da história do gênero, resgatando obras que fazem parte dos primórdios do cinema aos clássicos sucessos de bilheteria.

As “explosões cômicas” geradas na comédia podem ser entendidas como plástica e dramática:

A plástica é fácil de distinguir, porque pode ser pintada num quadro; tudo nela é externo, é como uma caricatura viva. Já a comédia [sic] dramática, não pode ser pintada. Dela, somente a novela, o teatro e o cinema nos podem dar uma idéia [sic], porque nela não existe nada de ridículo em seu aspecto externo, nada que provoque o choque cômico; unicamente falando ou atuando nos poderá revelar a natureza do seu caráter[17].

Para exemplificar o que ele entende por “comédia plástica”, cita na crônica “O regador regado” (1895), considerado o ponto de partida da história do cinema cômico, realizado pelos irmãos Lumiére e filmes que representam os desdobramentos do gênero, como Charles Prince Seigneur “Rigadin”, “no volumoso Fatty”, Onésimo, Rigobert, Leonce, Marcel Levesque, Larry Semon, Clyde Cook, Mabel Norman, Mark Swain “e em Max Linder seu apogeu” (…). Era a época das tortas e dos cremes, que produziam grandes efeitos de comicidade”[18].

Na comédia dramática, a narrativa fílmica ocorre num grau de complexidade que exige do espectador a compreensão de um jogo de intrigas e ações que se desenrolam “para pôr [sic] em relevo e expressar o destino cômico dos caracteres”[19], ou seja, o riso é estimulado a partir da conexão dos eventos que se apresentam implícitos, carregados de ironia entre os personagens.

Charles Chaplin seria o “iniciador” da “fina comédia [sic] dramática”, pois suas obras despertam o senso de humor, mas não necessariamente limitadas ao pastelão gratuito, pelo contrário, “suas películas são de grande conteúdo social e humano. (…) considerados como obras dificilmente igualadas”[20].

Além de Chaplin, o cronista admira a produção cinematográfica de René Clair, criador de filmes cerebrais, com uma frieza matemática que o tornou “tão bom montador, como Stravinsky compositor, tão preciso na decupagem, como Petruska na instrumentação de suas obras”[21].

Alinhado ao pensamento de Frank Capra, “o cinema feito pelo homem tem uma função social”, que faz do filme um projeto de vida, sem ambições de buscar soluções ou dar a palavra final sobre os sentimentos humanos. Para Jomard, seu projeto audiovisual “não busca no cinema somente sensações, senão a vida mesma”[22]. Também admirador de Ernest Lubitsch, acredita que seus filmes são responsáveis por desenvolver “um tipo de comédia sob uma visão irônica e descarnada da vida”[23].

Quando Jomard assistiu seus filmes pela primeira vez, confessou que seu riso foi atravessado mais pelo cinismo do que pela graça em si “e sobretudo com um sentido relaxador, com um afã sistemático de crítica”[24], tendo em vista que seu humor possui uma essência inteligente e maliciosa.

Em relação à comedia brasileira, Jomard é taxativo em dizer que não perde tempo escrevendo “uma só linha” sobre o tema, afirmando que Oscarito e Grande Otelo não estão à altura dos gênios do riso, limitados a performances primárias, reduzidas a caretas e “piadas indecentes”[25]. Seus filmes são ruins ao ponto de que “talvez bem dirigidos e com um bom argumento possam elevar-se acima da mediocridade”[26].

Mas o cinema brasileiro não se resume às chanchadas carnavalescas. Jomard destacou que bons filmes necessitam de espaço nos jornais e respeito do público, para isso, dedicou muitas linhas à Alberto Cavalcanti. Nome importante da nossa cinematografia, vivenciou a experiência profissional com cineastas ingleses e franceses. De volta ao Brasil, Cavalcanti chega à Pernambuco para lançar O Canto do Mar, que seria uma nova versão de En Rade, produzido na França.

Mesmo apreciando a obra do cineasta, o cronista mantém-se exigente e analítico nas suas observações:

Trabalhou arduamente, auxiliado por alguns jovens competentes, resultando disto uma película que, apesar de não ser perfeita como unidade cinematográfica, pois a continuidade falha em algumas cenas e a interpretação de certos atores é medíocre, merece ser apreciada (…). (…) o filme assume uma realidade espantosa (…). Estamos, pois, diante de uma obra cinematográfica essencialmente honesta[27]. (…) O Canto do Mar, quando analisado em conjunto apresenta falhas, no que se refere ao processo de “dublage” (…) que prejudica a sua unidade cinematográfica[28]. Mas já que apontamos os seus principais defeitos seria uma injustiça não enumerarmos as suas qualidades que são numerosas.

Cavalcanti proporcionou uma experiência sensorial “crua e vigorosa” para os espectadores, ao exigir dos atores e atrizes o máximo nas suas performances, com esmero técnico na elaboração das falas, refletindo “com exatidão o linguajar da nossa gente”, a partir de uma trilha que possui beleza e funcionalidade no diálogo, bem como na paisagem e movimentações de cena. O entusiasmo do cronista leva a crer que O Canto do Mar possui todas as condições para repercutir mundialmente, não foi à toa que ganhou o prêmio de melhor direção no Festival Internacional de Karlovy Vary (República Tcheca) e concorreu à Palma de Ouro em Cannes (França).

Para o cronista, 1953 encerrou com uma da safra de filmes ingleses que foram exibidos em Recife. Os títulos que ocuparam as salas de cinema possibilitaram ao espectador de bom gosto ter a oportunidade “de entrar em contacto [sic] com as aplaudidas realizações britanicas [sic].”

Ao pontuar as principais características que podem ser atreladas a seus filmes favoritos deste ano, o cronista destaca “a sobriedade, equilíbrio e precisão” destas realizações audiovisuais como elementos fundamentais que tornam os cineastas ingleses David Lean, Carol Reed e Anthony Asquith desse período “entre os maiores do mundo”. Além dos filmes “O preço de uma vida” (Edward Dmytryk, 1949), “O Ídolo Caído” (Carol Reed, 1948), “Um caso de honra” (1948), “Mulher Falada” (1950) e “Nunca te amei” (1951), de Anthony Asquith, “Oliver Twist (David Lean, 1948), “Ultimatum” (John Boulting e Roy Boulting, 1950) e “Dama de Espadas” (Thorold Dickinson, 1949), o cronista afirma que o cinema Boa Vista exibiu “3 Fugitivos” (1950).

Este filme documentário era esperado pelos cinéfilos recifenses, pois o trabalho de direção realizado por Jack Lee é apreciado e reconhecido desde “Close Quarters” (1943), tornando-o “não apenas um documentarista de mérito, como este filme vem nos provar, mas um bom orientador de atores, um cineasta cônscio do seu métier”. Mesmo com um conjunto de opções satisfatórias para o espectador mais exigente, Jomard lamentou que os cinemas sejam capazes de exibir “mediocridades injustificaveis” [sic] como “Escuna do Diabo” (Joseph Kane, 1953), o que tornou Jack Lee o filme que mais se destacou entre os citados.

Através dessas crônicas embrionárias, que iniciam em 1953 e segue até o final desta década, podemos acompanhar brevemente os rastros do nosso jovem cronista pelos cinemas e cine-clubes de Recife, demonstrando uma erudição fora da curva para sua idade, bem como o esboço do que viria a ser um dos nomes fundamentais na construção do pensamento e realização do cinema brasileiro contemporâneo. Daí em diante, são mais de setenta anos de história e resistência através de uma produção audiovisual que está pulsando para ser vista, apreciada e pesquisada com profundidade…


[1] Entrevista concedida à Marlom Meirelles em abril de 2015.

[2] Correio da Paraíba. Iniciação ao Cinema. João Pessoa, 30 de novembro de 1953.

[3] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Quarta-feira, 5 de agosto de 1953.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Quarta, 19 de agosto de 1953.

[7] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Quarta, 19 de agosto de 1953.

[8] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Sábado, 29 de agosto de 1953.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Idem.

[12] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Domingo, 30 de agosto de 1953.

[13] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Quinta-feira, 10 de setembro de 1953.

[14] Entrevista concedida à Marlom Meirelles em abril de 2015.

[15] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Quinta-feira, 10 de setembro de 1953.

[16] Entrevista concedida à Marlom Meirelles em abril de 2015.

[17] A comédia cinematográfica (I). Correio da Paraíba, João Pessoa. 7 a 13 de setembro de 1953.

[18] A comédia cinematográfica (I). Correio da Paraíba, João Pessoa. 7 a 13 de setembro de 1953.

[19] A comédia cinematográfica (II). Correio da Paraíba, João Pessoa.14 de setembro de 1953.

[20] A comédia cinematográfica (I). Correio da Paraíba, João Pessoa. 7 a 13 de setembro de 1953.

[21] A comédia cinematográfica (II). Correio da Paraíba, João Pessoa.14 de setembro de 1953.

[22] Idem.

[23] Idem.

[24] Idem.

[25] A comédia cinematográfica (III). Correio da Paraíba, João Pessoa. 21 de setembro de 1953.

[26] Idem.

[27] Mundo de LUZ e SOM FILMES. Domingo, 11 de outubro de 1953.

[28] Correio da Paraíba. João Pessoa, 16 de novembro de 1953.

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