Anotações Antes de Chegar ao Mar… – um Conto de Carlos Emílio Corrêa Lima

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Carlos Emílio Corrêa Lima (CE). É escritor, poeta, editor e autor de nove livros de ficção. Editou as revistas literárias O Saco Cultural e Arraia PajáurBR. Foi o principal colaborador nordestino do portal Cronópios e o criador das Rodas de Poesia e Percussão (1999-2000) em Fortaleza e do CEP 20000, do Rio de Janeiro.


Os primeiros indícios das emanações dessa região de Java vieram-me num sonho onde ecoou como uma ostra perturbada por si mesma a frase sem cordéis, solta no espaço: “Java comeu seu cavalo.”

Esta região da grande ilha (dizem ser esta ilha na verdade um pequeno e velho planeta caído há milhares de séculos no Oceano Pacífico) era dedicada ao culto dos dragões e dos antepassados. Uma região demorada onde o tempo esculpia variações desconhecidas de colinas e de si mesmo. Dizem os primeiros relatos gravados pelos etnólogos da escola dinamarquesa que foi precisamente nesta área bem ao norte da ilha que canta com todos os seus minerais silenciosos, que aquela Terra chegada aqui nessa camada do universo pariu os primeiros seres humanos. Aqui, neste lugar em que escrevo, os avós de argila das atuais oleiras que vendem nas ruas meândricas da vila suas esculturas mitológicas bafejadas pela encosta da montanha cujas formas não têm equivalência nem se repetem musicalmente em nenhuma outra parte de outras ilhas da Terra, nos pátios desta cidade ,essas mulheres que sempre se vestem de vestidos vermelhos, que vivem reclusas, oleiras cantoras mágicas, que quase jamais saem da sombra dos imensos e curvos telhados em forma de dragões trançados estilizados de palha, bambu e madeiras exceto em dias de feira, dias que parecem extremamente cavados e equilibrados pelo sol. Os maridos delas, seus irmãos, os cunhados, seus filhos e os pais deles também, todos eles , não sabem encontrar essa argila especial, retirá-la das garras invisíveis da terra, soprar sobre ela palavras evocadas do princípio, mover e moldá-la, para manifestá-la. Somente elas, que descendem da parte mais funda da cratera por onde os homens e as mulheres que depois as geraram foram paridos pela terra que caiu do céu, essa terra de montanhas de jade e borboletas gigantescas, verdadeiras tendas vivas aéreas, que trouxeram as cores, as frequências, aragens e presenças indissolúveis que ainda não existiam na Terra no oscilante e pulsante passado , somente essas mulheres sabem destas histórias entoadas também pelos ventos nas pontas dos istmos mais avançados sobre o mar , muitas já completamente perdidas não fossem as esculturas linguísticas que elas disseminam no espaço quando cantam seus versos vibratórios sobre os veios dizentes e secretos dos solos argilosos de onde extraem toda a força e os movimentos de suas mãos e seus gritos-filões ,imensos alaridos de modelagem que transportam em coro quando descem da montanha com as massas úmidas e fortes extraídas do silencioso interior do território que veio do mais alto veio de diamante do céu num comprido rio de ruídos de cristal cadente que ainda reboa e ressente-se em toda as partes cientes tácteis do universo .

Antes do escaneamento dos anais da Sociedade Etnológica Dinamarquesa não havia sido notada a lacuna deixada por dois volumes da revista da entidade, que agora encontram-se na velha estante helicoidal em forma de serpente da biblioteca do monastério astronáutico, que é um transatlântico brancamente vedado que jamais ancora nos portos das ilhas ou continentes. Nele, neste navio mantido isolado em algum ponto desconhecido do Oceano Índico preservam-se em segredo todos os registros dos mitos da velha humanidade derrotada, mitos que não podem mais ser sabidos, relembrados, tinidos, bigornados, faiscados. Foram mais de trezentos pequenos planetas e retorcidos volumosos asteróides (ostras-meteoros com suas pérolas mentais dinamando suas reentrâncias radioativas tonais) que desabaram em sucessivos-simultâneos momentos em muitas partes do quase infinito gelatinoso mar primicial, cuja tonalidade e conteúdo não era da consistência e essência desse azul escuro e esverdeado rumoroso de agora. Esse novo mar atual é um novo tipo de sangue geral de diferentes salinidades, densidades, velocidades e profundidades que se prepara para seres ainda mais desconhecidos e reversivos que ainda não foram criados nem gerados nesse mundo, mas que era então de um sangue marítimo cetáceo manifesto bem mais anterior e recessivo, quando ainda não haviam sequer seres para ele , que ele neles vermelho circulasse, se infiltrasse, seu líquido habitante, que tal proeza mágica fosse fenômeno assim somente então para o tempo mais adiante, quando da multiplicação dos corpos. Tudo ainda não era este nosso atual futuro, futuro de hoje, do tempo presente, o mais distante e veloz de todos os futuros, que aqui passo a relatar, futuro à Leste de tudo. Acabrunhado e atônito, fugi das cidades desnucleadas onde ficara muito tempo estonteado diante de metais intensíssimos, lisos e prontos para serem ocupados pela mente geral, arrancados que foram também à mais remota escuridão, mas os quais destinam-se ao desvio de nossa atenção para assuntos muito distantes, sem vinhos das lendas das ilhas imensas , ilhas todas que caíram do céu, ilhas de jade, tório, ferro, molibdênio e granito com os seus grandes estampidos-invólucros, as grandes histórias-maremotos e suas flores-território, flores-oceânicas, templos de quedas colossais, fugi dessas cidades para sempre.

Java terá sido o primeiro planeta-escultura a cair sobre o universal mar de hemoglobina , o mar de púrpura de antes da existência dos seres, submarinos, terrestres e aéreos, e de todos os homens – e de suas navegações – pois nada vivia e flutuava de qualquer modo e intensidade sobre ele, ele ainda era totalmente exterior, vermelho e total, líquido da vida geral, à espera da queda orquestrada de todos os meteoros e planetas de ouro sobre ele, um ser escutando infinitamente espumoso a chegada das clavas celestes, das ilhas que cairiam do céu. Java foi a primeira a cair, a ilha que canta para o mar escarlate anterior, quando nele mergulha. A ilha que fendeu e fecundou o plasma original. Solidificantou-se ainda mais (pois com o impacto não chegara a se fragmentar), do alto proclamada. Ilha astral ajustada ao mar, o qual foi mudando de cor desde então, quando ferido em muitos de seus pontos por todos os meteoros, que foi se azulando em lentamente remota gradação. Ao que, dessa ilha-meteoro, por uma estranha rachadura em sua superfície, brotaram os primeiros seres móveis viventes, que, saídos da gruta-mãe, da cachoeira, se adentraram através dos rios, na sua floresta.

São essa esculturas cantadas que vejo ritualmente agrupadas nas platibandas dos mercados das pequenas vilas de ruas meândricas nas encostas da grande montanha da ilha de Java e que vou trocando por diminutas ostras com estas mulheres atentas. Dizem que esses cantos-esculturas ressuscitam os cavalos e que alimentam diretamente as estrelas. Antes que elas novamente caiam sobre o grande mar, dessa vez de agora, temporariamente azul, da Terra.

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