Tembetá o Som do Saber Ancestral

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Por Demetrios Galvão e ilustração de Gil Duarte


“O que é o índio?
Índio é uma qualidade de espírito posta em uma harmonia de forma.”
Kaká Werá

“Talvez o Brasil seja o único país do mundo que considere ‘estrangeiro’ o nativo, e nativo o estrangeiro”, essa reflexão do Kaká Werá é o resumo de uma provocação que marca a trajetória da formação do Brasil desde a chegada dos portugueses há 517 anos atrás, quando o europeu-branco-cristão desembarcou na América e iniciou o processo de invasão e conquista do território, que se deu pela espada e pelo crucifixo, com a construção de uma história única e incompleta sobre os indígenas.

Este processo se consolidou principalmente na memória coletiva pelo trabalho de uma historiografia que desenvolveu os termos “descobrimento”, “ocupação”, “povoamento”, “pacificação das terras”, “catequização” e “colonização”. Essa mesma historiografia, ao longo do século XIX e daí em diante, estabeleceu para o nativo um lugar periférico na imagem construída para a nação que tomou forma como identidade nacional. Tal discurso definiu o nativo apenas como o elemento exótico e não abordou a sua cultura de forma positiva, ao contrário, o excluiu do protagonismo na formação da Nação. Daí em diante se construiu para o indígena o lugar onde se depositou termos como “bárbaro”, “primitivo”, “atrasado”, “selvagem da terra”, “incivilizado”.

Pois bem, é nesse momento de crise geral da sociedade brasileira, principalmente de crise dos princípios e das bases da velha sociedade, assentada na colonização, que se faz urgente pensar os povos indígenas com outros olhos. Observá-los por suas próprias palavras, compreender a sua linguagem simbólica, aprender com os seus saberes, entender a sua cosmovisão, suas tradições e ouvir o que tem a dizer sobre a sua história que começou por volta de 12 mil anos atrás.

A editora Azougue acaba de lançar a coleção Tembetá, uma série de livros dividida em 12 volumes que aborda o pensamento indígena por meio de seus próprios porta-vozes. São eles: Ailton Krenak, Álvaro Tukano, Cristino Wapichana, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Fernanda Kaigang, Kaká Werá, Sônia Guajajara, dentre outros. Cada livro traz uma antologia de textos e documentos históricos do autor homenageado, além de uma compilação de entrevistas já publicadas e de uma entrevista inédita e exclusiva. A coleção é organizada por Kaká Werá e tem como produtor Cristino Wapichana.

O primeiro volume da coleção Tembetá é dedicado ao ativista e escritor Kaká Werá. Nesse primeiro livro somos apresentados a um ser poderoso naquilo que fala e esclarece sobre os povos da floresta, o seu mundo mágico, a frequência diferenciada de sua linguagem e a sua filosofia de vida. Um encontro que leva o leitor a redefinir alguns de seus conceitos e a desconstruir a velha história centrada no civilizador cristão. Um bom exemplo é o conceito de progresso dos tupy-guarani:

“O progresso, para nós, é você desenvolver a sua capacidade criativa, a sua expressão no mundo. Isso se manifesta na forma de lidar com o espaço e com a natureza na forma de celebração e cuidado”. (pág. 45)

Outros elementos importantes para se dar atenção diz respeito ao papel da palavra e da construção e valorização da memória:

“os tupys desenvolveram toda uma filosofia e uma ética que partem da palavra, do som. A palavra-alma é o eixo”. (pág. 42)

“Todas as culturas indígenas prezam os narradores, os chefes nativos, os contadores de história. Eles que dão a coesão pela memória”. (pág. 26)

Partindo dessas citações, podemos observar a concepção de progresso alinhada com a ideia de criação e desenvolvimento do indivíduo ao passo que mantém o equilíbrio com o meio. No outro ponto, a importância da palavra como energia vital e o destaque dado aos contadores de história. A memória aparece como fundamental para a construção temporal, transmissão dos conhecimentos e da história desse povo. A tradição oral ocupa um papel central na composição dessa cultura e de seus saberes.

Ao longo das entrevistas e dos textos publicados no livro, Kaká Werá também discute as questões ligadas ao direito à terra e ao difícil processo político de demarcações e criação das reservas indígenas. Fala da necessidade do reconhecimento de seus direitos básicos e da organização política por meio de representantes no campo legislativo, além da atuação de alguns escritores indígenas com publicação de livros para o público infantil e infanto-juvenil. Sobre a escrita dos livros, Kaká explica que:


“Para nós, a literatura indígena é uma maneira de usar a arte, a caneta, como uma estratégia de luta política. É uma ferramenta de luta. E por que uma luta política? Por que à medida que a gente chega à sociedade e a sociedade nos reconhece como portadores de saberes ancestrais e como intelectuais, ela vai reconhecer também que existe uma cidadania indígena. E que dentro da cidadania existem determinados direitos constitucionais que não ferem, que não desagregam a sociedade, seja indígena ou não indígena”. (pág. 29)

A violência do projeto de conquista do homem branco produziu, pelo menos, dois tipos de invisibilidade para as populações indígenas e igualmente cruéis. Uma diretamente ligada ao genocídio e à exclusão social, e outra, uma invisibilidade estratégica realizada pelo próprio indígena para sobreviver às perseguições e ao estigma aos quais foram submetidos. Estes processos históricos distanciaram o indígena do restante da sociedade, do poder público, do direito à cidadania e da terra. Desse modo, o ser nativo foi se tornando cada vez mais um desconhecido para a sociedade brasileira.

Porém, passado um longo tempo, podemos observar nos últimos dados do IBGE que a população indígena no Brasil vem crescendo, principalmente porque esses indivíduos estão defendendo o seu lugar na sociedade, afirmando a sua identidade nativa e reivindicando os seus direitos. O senso de 2010 mostra que existe uma população de quase 900 mil pessoas de origem indígena, que se encontram em maior quantidade em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Mato Groso e Amazonas. E parte dessa população está estabelecida em área urbana, o que nos mostra que precisamos encarar o indígena com outros olhos, como alguém que pode manter suas raízes ancestrais e interagir com a sociedade contemporânea e suas tecnologias. Desse modo, frequentar escolas, universidades, ir ao cinema ou ao shopping, não o faz menos indígena.

E por isso, como diz Kaká Werá, precisamos passar pelo processo de “descatequização da ignorância”, redefinir o indígena no nosso imaginário e recontar a histórica sobre o processo que fez do nativo um estrangeiro em sua própria terra. Ouvir as vozes da floresta nos faz compreender melhor a relação desses povos com a terra e a sua cultura de preservação da natureza. O indígena é o guardião de uma riqueza que é de toda a humanidade. Assim, Kaká Werá nos diz:

“A causa indígena, do ponto de vista político, não é uma causa de ganhos para poucos. E não é uma causa de negociatas. É uma causa de preservação e manutenção de uma qualidade de vida não para um nem para um grupo, mas para uma comunidade, para uma sociedade e para um ecossistema.” (pág. 30)

Coleção Tembetá, assinatura diretamente pelo site da editora Azougue:
http://www.azougue.com.br/tembeta/p


DEMETRIOS GALVÃO | PI professor, poeta e editor da Acrobata. Autor dos livros de poemas Fractais Semióticos (2005), Insólito (2011), Bifurcações (2014), O Avesso da Lâmpada (2017) e Reabitar (2019).

1 comentário em “Tembetá o Som do Saber Ancestral”

  1. Bom dia! Sou formadora de professores das escolas de educação escolar indígena do Vale do Ribeira – rede estadual de SP – Diretoria de Ensino de Registro. Já assisti algumas lives com alguns dos autores, gostaria muito em receber on-line algumas das obras para trabalhar com os docentes e se possível realizar uma live de forma voluntária. Porém não temos recursos financeiros para essas ações nesse momento enquanto regional. Há essa possibilidade?

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