As ambivalentes mães de Manzano e o projeto de modernização: a autobiografia de um filho escravizado

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Emília Rafaelly Soares Silva, doutoranda em letras pela Universidade Federal do Ceará e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí.


A história de Juan Francisco Manzano, a primeira que se tem notícia redigida por um cativo autodidata latino-americano, escrita a pedido de Domingo Del Monte, traz um impressionante testemunho sobre os dissabores da vida de um ser escravizado. A sobrevivência é marcada por constante oscilação entre força e melancolia num contexto completamente desfavorável.

Os sofrimentos são convertidos em emocionantes relatos numa linguagem flutuante e fragmentada, visto que acorrentada às asperezas do léxico e da sintaxe, mas cujos sentidos transbordam das palavras. A própria literatura cubana tem seus primórdios nesse contexto de escravidão e nas ressonâncias da Revolução Haitiana, a qual ainda é visto como um evento muito excluído ou deturpado no que concerne às discussões sobre modernidade e nacionalidade.

A recepção dessa obra de Manzano passou pela ambivalência de ser um relato que inseria o escravizado em um projeto modernizante, com propostas mais humanistas, mas que, ao mesmo tempo, temia a abolição da escravatura e a queda de um sistema já consolidado e lucrativo. Alguns literatos da época, como Del Monte, acreditavam que, através da literatura, se poderia imprimir uma maior empatia e compaixão para com a questão da humanização dos escravos, porém, como afirma em nota Alex Castro, tradutor da autobiografia para o português, eles eram não abolicionistas, uma contradição explicada pelo estudioso como “antiescravismo escravista”.

A obra de Manzano, destarte, foi encomendada como parte da emergência desse projeto modernizante que atingiu também outras partes do mundo como, por exemplo, no Peru do século XIX. A literatura peruana por meio da obra indigenista de Clorinda Matto de Turner, Aves sin nido (1889), elaborou uma defesa à mestiçagem e à educação com vistas a um projeto modernizante que poderia inserir os indígenas na sociedade.

Outro exemplo, bem antes desse fato, em 6 de setembro de 1770, a escravizada brasileira Esperança Garcia escreveu uma carta ao então governador da Província do Piauí denunciando os maus-tratos que sofria e solicitando seu retorno imediato à Fazenda de Algodões com o objetivo de batizar a sua filha. Esse documento é de reconhecida importância, pois tornou Esperança Garcia a primeira mulher advogada do Piauí, além de seu texto ser considerado como uma narrativa precursora da literatura afro-brasileira. Como se percebe, houve intenção também da escravizada em inserir-se como sujeito, ao advogar diretamente seus direitos à autoridade enquanto ser humano consciente de sua dignidade e ao pleitear intenções cristãs, como o estratégico batismo da filha.

Para contribuir com essa intenção modernizante, ocorreram várias revisões e reescrituras dos literatos na época como tentativa de sanitizar o texto de Manzano e torná-lo acessível ao público leitor, como aponta Alex Castro (2015) em seu prefácio à transcriação da versão brasileira intitulada A autobiografia do poeta-escravo: Juan Francisco Manzano.

Assim como no Brasil, a economia cubana na época era dominada por uma elite açucareira que subjugava os cativos para a manutenção e o engordo do sistema. Desse modo, analisar a história de Manzano é, de certa forma, também revisar a história do Brasil. A perspectiva do escravizado autodidata que escreve um texto a pedido de uma elite branca é, por si só, uma ação subversiva; por mais que o poeta tenha a tarefa de exaltar seus patrocinadores, há sempre transbordamentos ou silenciamentos que extravasam das palavras.

A estrutura escravocrata era composta por uma imensidão de laços visíveis e invisíveis. A violência física tão somente não seria o bastante para exercer o domínio sobre aqueles aos quais se queria subjugar. Os escravizados eram comumente afastados de seus lares, familiares ou de algo que pudesse lhes conferir um status identitário ou um sentimento de origem, por assim dizer.

Quando analisamos o papel das mães-sinhás, nesse contexto, podemos compreender como o sistema escravocrata se mantinha e o quão importante era a criação de uma ideia de afetividade para a permanência da exploração através do pressuposto de uma submissão voluntária. A obra de Manzano, publicada em 1840 na Inglaterra, expõe essa relação entre o escravo e a sinhá, e sobre o complexo “lugar de mãe” esboçado estrategicamente na infância.

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A domesticação, seja da escrita ou a da própria existência de Manzano, aparece nas passagens relativas à presença de um esboço de figura materna: a sinhá da fazenda de El Molino, na figura na Marquesa Maria Jústiz de Santa Ana, representa a mãe a qual ele devia obediência e benevolência como um cordeiro, no sentido religioso e prático.

A relação parecia tão próxima que Manzano referia-se a ela como “minha mãe”. Essa senhora apegou-se à Manzano ainda na infância deste, considerando-o “sinhozinho de sua velhice”, termo este que o autor busca, por meio de suas palavras, atestar a veracidade.

Desde o início de sua história, Manzano já estabelece um sentimento de origem e procedência, tanto ao citar a família Manzano, quanto ao citar a formação de sua própria família biológica. Para um texto escrito por um autor branco isso não traz algo tão genial, mas para um sujeito visto como escravo, inserir sua origem significava colocar aos olhos de todos a sua particularidade, a sua voz, mesmo que sussurrada e entorpecida por lágrimas sufocantes.

Manzano evidencia que, durante a sua infância, quando ia à casa de sua madrinha Trindad de Zayas ou quando estava sob os cuidados de sua sinhá, não lhe permitiam levar surras. Nem mesmo o seu pai detinha alguma permissão de lhe castigar, como se nota em um episódio no qual o autor descreve que a Marquesa se sentia como que ocupando o “lugar de mãe”. No entanto, como analisaremos, esse lugar é ambivalente, pois se ama um “filho” e se faz deste mesmo filho um escravo.

Por outro lado, temos a mãe biológica de Manzano, descrita como uma das “criadas de distinção ou de estimação ou de confiança” e exaltada por sua capacidade reprodutiva. Manzano explicita que a sua mãe, Maria Del Pilar, também tivera recebido por parte da Marquesa o costumeiro tratamento maternal.

A relação que se estabelece entre mãe e filho, embora separados pela escravidão, é o sentimento mais nobre da obra. É María Del Pilar que restitui a afetividade de Manzano, humaniza-o, particulariza-o, desenvolve percepção de revolta e de insatisfação diante das ações desumanas e injustas. É o ápice de tudo o que poderia ser tolerado, é o limite, a margem que transborda, lugar onde a dignidade se disputa.

Todos os castigos impostos a ele mesmo são tolerados, mas o açoite no rosto de sua mãe marca o início de uma revolta que, provavelmente, teria clímax numa segunda parte do texto que é mencionada, porém a qual não foi encontrada e nem publicada. Talvez essa segunda parte da obra ferisse de forma mais direta a dignidade dos senhores de escravos ao expor os modos cruéis com que tratavam seus servos.

E qual o papel relevante das mulheres brancas e negras na consolidação de um projeto moderno de maternidade?

A mulher branca, no período colonial, apresentava modos de viver e de morrer importados de Portugal e de outras terras que foram adaptados à Metrópole e inseridos nas colônias. A mulher negra também legou à vida colonial seus comportamentos e mentalidades, principalmente os das sociedades africanas sudanesas e bantas. A presença feminina foi importante para a defesa do catolicismo contra a ameaça protestante bem como no projeto demográfico de preenchimento dos vazios das terras colonizadas.

A construção dos papéis femininos deu-se por meio de preconceitos e de estereótipos sociais que tanto se refletiram nas desigualdades entre os sexos quanto nas diferenças entre as próprias mulheres. Nessa discussão, destaca-se o papel da maternidade como vértice sustentador e condensador, tal qual o estereótipo que Del Priore denomina de “santa-mãezinha”, de um discurso colonial normatizador da ordem vigente.

Além do instrumento religioso, outro instrumento de ação para a domesticação das mulheres frente ao colonialismo foi o discurso médico sobre o corpo feminino, visto como um lócus natural de procriação. Os ventres, deste modo, passaram a ter a sua importância como fábrica de expelir mão-de-obra escrava.

É importante se destacar que no caso de uma mãe escravizada, a fertilidade era exaltada também como um negócio rentável. O apadrinhamento aliado ao batismo religioso endossava o papel da Igreja frente à valorização da maternidade. Os corpos femininos deveriam abrigar essa alma bondosa e dócil que correspondia a da “boa mãe” ao tempo em que deveriam gerar novas almas cristãs.

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O interesse dos senhores de escravos era que as mulheres simplesmente reproduzissem. A prole já nasceria, assim, órfã visto que “pertencia” ao “proprietário” daqueles corpos. Os graus de parentesco eram assim destituídos e substituídos pelas relações de propriedade, como se percebe na autobiografia de Manzano. Embora fosse um pensamento aplicado pela classe dominante em diversos países que utilizaram a mão-de-obra escrava, podemos observar na obra de Manzano a tentativa de humanização e de apresentação de uma família sanguínea, o que contraria esse desmonte. Além da sua família biológica, ele situa alguns membros da família Manzano evidenciando sua origem e seus primeiros anos de vida ao lado deles.

Dentro da lógica da família, às mulheres cabia a organização e a administração do lar, de maneira religiosa, comandando os afetos e as solidariedades, tudo em nome da realização de um projeto normativo. A ideia da “santa-mãezinha” participa como reguladora dessa proposta de modernização, o que de certa forma garantia um status com relação às mulheres consideradas “erradas”, como as “mulheres da rua”.

Podemos afirmar que tanto a Marquesa quanto a mãe de Manzano detinham essa espécie de poder, se colocadas num mesmo conjunto, pois ambas eram casadas e poderiam ser encaixadas no paradigma da “santa-mãezinha”. Nesse entorno, as mulheres que não se adequavam a esse papel cristão de estabelecimento do edifício familiar sofreriam o estigma da mulher demonizada e excluída.

Obviamente, outras tantas diferenças afastavam as mães brancas (sinhás) das mães negras (escravizadas), inseridas no mesmo sistema de exploração. As relações escravistas entre raça e gênero possuíam inúmeras teias de complexidades. Uma delas era a questão do direito de criar o filho, ou seja, mesmo nesse processo modernizante que se caracterizou pelo papel da maternidade, verifica-se o caráter heterogêneo e estratificante que exaltava a primazia da mulher branca sobre a negra.

Mais do que poder de educar o filho de María Del Pilar, a sinhá detinha, sob a suposta afetividade do “papel de mãe”, o domínio de Manzano enquanto mão-de-obra escrava. Colocar-se como mãe de Manzano reforçava o papel da Marquesa Jústiz enquanto administradora do lar, assegurando os valores cristãos no tratamento para com os escravizados.

A questão da criação de uma suposta afetividade entre a sinhá e o escravizado, em especial na infância, foi fundamental para justificar para os próprios exploradores a necessidade da exploração. Através de relações de apadrinhamento, de sobrenome, de educação, principalmente religiosa, a classe dominante de certa forma poderia “tranquilizar sua autoconsciência”. Sob o subterfúgio de salvar as almas, explorava-se a mão-de-obra de vários manzanos que alimentavam o sistema.

Manuscrito autógrafo da autobiografia de Manzano.
Fonte: https://www.geledes.org.br/a-vida-e-a-obra-do-poeta-escravo-cubano-juan-francisco-manzano/

Com a morte da Marquesa, Manzano passou a viver sob os cuidados da sinhá Dona Joaquina que o vestia, penteava-o regularmente e não deixava que ele “se roçasse com os outros negrinhos”. Essa sinhá, diferentemente da anterior, trata o garoto com bastante violência.

Como afirma Manzano, a verdadeira história de sua vida inicia-se somente em 1809, ou seja, quando de fato a realidade de sua condição enquanto escravo começa a transparecer, momento em que também ele sai da fase infantil e passa para a fase da juventude.  Essa nova etapa é marcada por uma vida comum aos escravizados: preso em cativeiro, sem comida e constantemente açoitado por qualquer motivo. Com a passagem da infância e a chegada da idade de trabalhar, Manzano passa a enxergar o real estado das coisas e a narrativa ganha um tom melancólico.

A melancolia, por vezes, se manifestava nos silêncios descritos no texto de Manzano. Esse sentimento era combatido pelos senhores de escravo, pois poderia acarretar suicídio e, consequentemente, desperdício. Não obstante, como se nota na leitura da obra e do contexto de produção, não se tratava de uma preocupação com o bem-estar dos escravos, mas na preservação da vida como uma massa humana, um corpo trabalhador, uma força vital, um combustível indispensável para manter o sistema vivo.

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Os momentos de resistência são brutalmente reprimidos e o clímax da revolta se dá quando a mãe de Manzano é açoitada no rosto. É o único momento que conduz o personagem a intenção de fuga. De todas as grandes e permanentes humilhações sofridas, aquela seria a única capaz de trazer desestruturação, fazendo com que o escravo de mentalidade “dócil” tornasse um “leão”. O texto se torna angustiante por se tratar de um alguém que realmente sofreu na pele e conseguiu transmitir para o papel toda a rotina de uma vida sangrenta e injusta.

A ferida aberta no rosto de Maria Del Pilar iguala a figura que se quer sagrada da mãe a de outros escravos comuns, dentre eles, o próprio Manzano. O suposto respeito pela figura materna, ou pela mulher de idade, ou pela escrava obediente e dócil não é levado em consideração. Essa verdade revela-se dolorosa para Manzano: sua mãe era uma escrava qualquer para seus senhores, não haveria nenhum tipo de privilégio para ela e para seus descendentes.

Nem mesmo os custos com as missas de sua morte, como se nota na leitura da autobiografia, foram considerados importantes. Apesar de Manzano ter herdado pequenas posses, não obteve autorização para gastar seu dinheiro. Aquela mulher ou o seu legado social, cultural, psicológico e afetivo simplesmente não importavam ao sistema. A carne aberta com o açoite revelou isso aos olhos de Manzano.

Algo a ser pensado quando se trata de um relato autobiográfico de um homem escravizado é: até que ponto os elogios aos seus senhores ou a devoção às suas sinhás poderiam ser entendidos como verdadeiros? Esse amor materno de suas sinhás era de fato munido de cuidado e de proteção ou era apenas uma estratégia afetiva de domesticação voluntária?

A autobiografia constituiu para Manzano uma moeda de troca pela sua liberdade, mas também foi o momento em que pôde falar o intelectual negro que, por incontáveis vezes, foi historicamente reprimido. Sua fala, ainda que incentivada por uma elite branca, fez ressoar os horrores da escravidão.

Os elogios aos seus senhores, mesmo que presente nas palavras, motivados ou não pelo medo, parecem não condizentes com as ações deles, o que torna o texto ambíguo como a própria conduta contraditória dos literatos que o incentivaram a produzir.

 A maternidade, como podemos entender na leitura da obra, reforça o sentimento de dominação – desde a infância passando ao nível mais violento na fase adulta. As mães sinhás desejam, desse modo, engendrar na mente do escravizado a sensação de dívida afetiva, de eterno agradecimento pela “educação”, pela “proteção” e por certas liberdades concedidas na fase infantil.

A escrita de Manzano foi motivada pelo interesse de conferir uma ideia de humanidade aos escravos. A sociedade da época estava passando, cada vez mais, por um efetivo processo de modernização que pressionava a elite a repensar os modos de escravidão. O texto de Manzano demonstra que a maternidade – seja aquela esboçada pelas sinhás para garantir um domínio aparentemente afetivo, seja aquela da mãe escravizada, destituída de maiores poderes, porém munida de afetos sinceros – para humanizar e particularizar o indivíduo serviu de alicerce para manter a ordem.

Ao colocar-se como filho, intencionalmente ou não, Manzano estabeleceu sentimento de parentesco, de pertencimento, de um ser que sofre e que tem alguém (uma mãe) a quem sua existência importa efetivamente. Manzano insere-se como sujeito que escreve, que mostra sua origem, sua trajetória de vida, mesmo sofrida; não mais apenas como massa humana sem voz ou sem contorno, não somente como carvão que alimenta o fogo da ganância e do desprezo. Manzano é o filho que, mesmo obediente, incomoda.


Imagens: Internet.

Legenda a imagem de abertura: Ruínas da antiga casa no Engenho Los Molinos, em Matanzas (Cuba), onde Juan Francisco Manzano viveu como escravo. Foto: Claudia.

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