Por Aristides Oliveira e Demetrios Galvão
Torquato Neto é um dos nomes mais importantes do Tropicalismo e da contracultura no Brasil, temas de profundos debates sobre sua contribuição para (re)pensar várias linguagens, seja cinema, poesia, música ou jornalismo cultural . Nos últimos anos, sua obra ganhou bastante destaque e em 2017 foi lançado o documentário “Todas as Horas do Fim” (direção Marcus Fernando, Eduardo Ades), a antologia organizada pelo Ítalo Moriconi “Torquato Neto – Essencial” (Ed. Autêntica, 2017), o livro “Fragmentos Poéticos – A Palavra em Construção” (Ed. UJP Produções, 2017), organizado por George Mendes e Viriato Campelo, homenagem na Balada Literária (2017) e uma biografia controversa, escrita por Toninho Vaz (Ed. Nossa Cultura, 2013).
A obra de Torquato Neto o colocou em lugar de destaque no nosso contemporâneo, o que fez de sua arte-experimento uma substância que vem atraindo muitos pesquisadores e pesquisadoras a desenvolverem trabalhos sobre sua obra, resultando em monografias, dissertações, teses acadêmicas e tantas outras publicações. A sensação é de que seu pensamento/ação é regido pelo signo da inquietude e representado por uma imagem-voragem que não se satisfaz e, por isso, sempre incompleta, faminta e fatal.
No início de 2021, estreará no canal Curta! um novo documentário: “Torquato Imagem da Incompletude”, dirigido por Guga Carvalho, Danilo Carvalho, feito no Piauí por uma equipe composta pela nova geração de artistas e pesquisadores que renovam a cena local. É com alegria que trazemos essa boa nova, mais uma chave de leitura para se compreender esse poeta que certa vez disse “mudo é quem só se comunica com palavras”.
Ainda no final de 2020 assistimos ao filme e entrevistamos Guga, que é teresinense, pesquisador de artes visuais, leitor apaixonado da obra de Walter Benjamin, a quem deve a inspiração do livro de fotografias “O Filme Perdido” e curador da Residência de Criação do Mercado Velho de Teresina, mantido pela Fundação Municipal de Cultura, que entra em 2021, no seu sexto ano.
Nesse clima de isolamento social e diante das 200 mil mortes por covid-19, realizamos um bate papo à distância, porém bem intenso. Falamos sobre os bastidores e a relação que o diretor mantém com a obra de Torquato. Não vamos dar spoiler, mas garantimos para vocês: vem coisa boa por aí!
O que significa para você quando colocamos Torquato numa perspectiva de incompletude?
Antes de tudo, é bom esclarecermos que pensar a obra de Torquato na chave da incompletude é apenas um ponto de vista entre outros e não quer negar por completo outras reflexões, mas ampliar o sentido em alguns pontos.
Na chave da incompletude, o núcleo da obra é a atmosfera que se constrói entre vários fragmentos, ponto incontornável para reflexão sobre seu trabalho. Fui levado a esse ponto de vista nesses anos de pesquisa, mas não sou nenhum hiper-expert. Em minha abordagem há muita intuição para entender questões de sua obra/processo de criação, de seu pensamento em reverberação com outras vozes, tanto as que lhe atravessaram e, em igual peso, as que se atravessam hoje.
Parto de um exercício poético-filosófico para a compreensão da obra de Torquato como uma constelação de fragmentos que se relacionam entre si de diferentes maneiras e distâncias → os filmes em super 8 ↔ roteiros ↔ cartas ↔ inserções na imprensa mimeógrafo ↔ poemas visuais ↔ palavras destaques ↔ imagens fotográficas ↔ algumas entrevistas por aí ↔ ideias e projetos não concretizados ou que ficaram inconclusos por vários e diferentes motivos.
Orbitam também por este universo, sem o protagonismo de nenhum ponto em particular, a produção que ganhou maior notoriedade, e que está dentro de categorias mais facilmente identificáveis → letras de música ↔ poemas escritos ↔ colunas jornalísticas.
Todas essas peças trazem um pensamento criador forte, caótico e complexo, que nos atrai para o interior de seu campo de sentido, e que se constrói pelo atravessamento com outras vozes, em um exercício de citações, apropriações, alusões etc., numa ânsia criativa esquizofrênica de ser espelho e antena de seu tempo, de querer acompanhar, no calor da hora, as tendências e apontar suas confusas ultrapassagens, na rebarba das vanguardas que perdiam fôlego.
No filme, podemos observar a proposta de narrar um Torquato fragmentado, inclassificável, desconstrutor do fazer tradicional no campo da arte nos anos 70. Podemos dizer que o filme, enquanto linguagem, reinventa o processo narrativo sobre ele ou segue uma lógica mais formal dos documentários com pegada biográfica?
O que considero importante é o fato do documentário se atentar ao interesse recente sobre Torquato,fora dos campos da música e poesia, onde tradicionalmente sua obra foi absorvida. Há um crescente empenho dos agentes das artes visuais, e de forma mais tímida do cinema, em compreender e dialogar com sua obra e pensamento, mesmo não se tratando de um artista visual e nem cineasta.
Essa aproximação com outros circuitos de interlocução, e em particular com o circuito de artes visuais, vem permitindo que a parte mais estranha da produção de Torquato [1969-72] seja absorvida com a mesma atenção que sempre foi dada ao poema “Cogito” ou a outras obras mais bem embaladas.
Sem as artes visuais, a obra de Torquato, que em essência é experimental, ficaria contida pelos limites da recepção dos outros campos. E como Torquato está cada vez mais presente em exposições, isso tem exigido outra cartografia dos seus trabalhos. Onde foi publicado o poema visual “Inimigo Medo” pela primeira vez? Que tamanho, textura? Que contexto? O poema visual “Tristeresina” foi pensado para algum lugar? Essas e outras tantas perguntas começaram a ser feitas somente nos últimos anos.
Certamente Waly Salomão, com Últimos Dias de Paupéria e Paulo Roberto Pires, com Torquatália, deram as principais contribuições para a divulgação da obra do artista. O primeiro, um ajuntamento caótico de várias produções que é um charme, – hoje é um clássico. O segundo, super claro em seus critérios de organização e na visível seriedade de pesquisa.
Por motivos próprios e não ditos, nenhum dos dois projetos deu a atenção devida à produção dos últimos anos de Torquato, quando a experimentação estava mais presente em seu fazer, logo bem mais difícil trazer à tona, pois não basta[ria] citar as obras, fragmentos, mesmo que se inventariando os dados técnicos, tamanhos, materiais etc., há de se “plasmar” o contexto, do contrário, o sentido não relampeja.
Nem mesmo no acervo de Torquato em Teresina é possível sondar essas questões, pois não possui nada a respeito. À mediada que essas questões iam me chegando, fui juntando cacos soltos, pesquisando erraticamente em outros cantos afora.
Ter esse novo corpo de conhecimento se formando é muito importante para propormos de um lugar claro, outras negociações de sentido para obra, por uma interlocução com o modus operandi das artes visuais, reagente capaz de processar essa química mais sutil.
Nesse processo ressignificador, as exposições representam um meio bem apropriado de apresentação pública de obras constelares como a de Torquato, que paradoxalmente não foram feitas para galeria. Os espaços expositivos, com suas variantes de percurso, permitem uma experiência de leitura que respira com a constelação de obras e suas relações de aproximações ↔ desdobramentos ↔ distâncias entre si.
Por mais estranho que possa parecer ao senso comum ou a abordagens mais tradicionais da literatura e música, a obra/pensamento de Torquato solicita laboratórios expográficos, tanto quanto de livros ou filmes ou discos. E isto está acontecendo nos últimos anos, seja por mim aqui em Teresina, seja por outros que ali e acolá integram uma obra ou outra de Torquato em exposições coletivas.
No documentário havia a opção primeira de pautar algumas conversas a partir da exposição que lhe deu origem, trazer o processo curatorial-expográfico como um dispositivo de pensamento para gerar reflexões sobre a obra de Torquato; o que seria plenamente válido.
Mas fomos atrás de outras vozes a partir da obra e não a partir da exposição da obra. O que, de certa forma, não aprofundamos o que acabei de falar, mas também, por outro lado, houve um ganho com mais liberdade nas falas que, algumas vezes, levaram o assunto para onde não estava esperando.
Nos encontramos com alguns artistas e curadores como Antonio Manuel, Raphael Fonseca, Tiago Sant’Ana, Paulo Miyada, Anna Bella Geiger, Ricardo Basbaum, Xico Chaves, Willyams Martins, Almandrade, Carlos Vergara entre tantos outros, que atualizaram o debate sobre a obra de Torquato hoje. Foi realmente muito fértil. Mas não vou dar esse spoiler, vão ter que assistir ao filme.
A narrativa do documentário se apoia em um universo de vozes/testemunhos, que vai desde os amigos fieis e defensores de sua memória até jovens artistas influenciados por seu trabalho. Torquato aparece muito robusto se considerarmos o conjunto de tantas falas. Diante disso, como vocês articularam o roteiro de vozes para elaborar o discurso audiovisual?
O roteiro de vozes é articulado a partir de um conjunto de obras, não é um filme biográfico. Nesse pensamento, as obras de outros artistas são tão importantes quanto as de Torquato. Hélio Oiticica e Rogério Duarte com “Apocalipopotese”, Antonio Manuel com “Urnas Quentes”, Willyams Martins com “Peles”, Xico Chaves com “Eu-Vc”, registros do Carlos Vergara dos “Domingos da Criação”, “Dirce e Helô” de Luís Otávio Pimentel, “Lágrima Pantera” de Júlio Bressane etc. Essa articulação é fundamental para o atualizarmos a obra do Torquato no debate maior. No caso específico do média metragem, dirigido por Torquato, “Terror da Vermelha” [1972], experimentamos um exercício entre gerações, para filtrar alguns pontos de intersecção: “Sympathy for the Devil” de Jean-Luc Godard ,”Passagens” da Anna Bella Geiger, “Costumes de Casa” de Jorge O Mourão, “Exilados do Vulcão” de Paula Gaitán ou “Tudo Pode” do Tadeu Jungle.
No momento, preparo uma publicação sobre a pesquisa do filme e muito das respostas aqui para esta entrevista à Acrobata são também pontos deste meu projeto atual.
O filme Terror da Vermelha é um dos pontos centrais que percorre o documentário. Que pistas/mistérios esta obra nos proporciona para compreender Torquato?
Creio que muitas pistas! É um trabalho muitíssimo interessante. Quando vi “Terror da Vermelha” na minha adolescência, era uma fita de vídeo cassete com vários filmes maravilhosos do dito desbunde piauiense. Como a narrativa de todos é confusa, era como se tudo fosse um único filme.
Não sei dizer precisamente quando me deu vontade de assistir a esses filmes com mais atenção, só sei que o Terror, entre aqueles todos, me instigou muito e passei a desconfiar que tinha mais camadas naquela obra, que pode passar para os desavisados como uma simples brincadeirinha, mas que é muito complexa.
Fui me interessando pelas palavras destaques que saltam na tela, de vez em quando, quebrando a narrativa esdrúxula; me viciei, também, na dancinha fantástica da Dina Araújo [prima do Torquato] sob as palavras em cartazes “Aqui- Ali”; entre tantas outras coisas que o filme traz.
Torquato deixou em aberto o título do filme, poderia ser: “Só Matando”, “O Faroesteiro da Cidade Verde”, “Boi Jardim da Noite” ou “O Terror da Vermelha”, como ficou conhecido de fato. Porém, o roteiro do filme [uma prosa poética em escaleta] não tem por título nenhum desses nomes possíveis, e sim, “Vir Ver ou Vir”.
O roteiro-escaleta “Vir Ver ou Vir” foi publicado no mimeógrafo Gramma, de Teresina, junto com o texto “Filmes”, que é um texto de artista [bem desses textos dos anos 60/70], que depois foi publicado também na coluna “Geleia Geral”, do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro.
Mas entre o filme em super 8 que chamamos de “Terror da Vermelha”, o roteiro-escaleta “Vir Ver ou Vir” e o texto de artista “Filmes” há um jogo de autonomia relativa. Essa dicção específica do processo de criação de Torquato só se mostra por essas pistas, e dispô-las em constelação, conjeturando a força de sentido da atmosfera entre elas, é tão importante para compreensão da sua obra e pensamento quanto uma análise da letra de “Mamãe Coragem”.
Sempre defendi, diante de certo descredito e espanto de alguns, que “Terror da Vermelha” é uma das obras mais importantes de Torquato. É onde seu pensamento artístico está mais maduro e complexo. E, agora, me dou a permissão de ir um pouco além: aqueles trinta minutos de super 8+ aquele roteiro-escaleta + aquele texto de artista, é algo não só importante para o estudo do espólio de Torquato, mas é importante na história da arte contemporânea brasileira do começo dos anos 70.
O público de Teresina já pôde compreender isso há algum tempinho. Minha pesquisa a partir da chave da incompletude circula prioritariamente nessa cidade. Só não se antenou é quem insiste em ficar só-somente-só no ê bumba ei ei ei boi, vampiro que vem, anjo torto que foi, e não vê no meio da sala de exposição as outras delícias dessa obra caótica.
Mas voltando ao Terror, mesmo eu tendo esse “filminho” em super 8 na mais alta conta, não foi nada planejado o fato dele ocupar um terço do documentário. Isso foi vindo naturalmente.
A princípio as conversas sobre o Terror com o pessoal de Teresina foram ótimas, diria até empolgantes: Carlos Galvão, Durvalno Couto, Edmar Oliveira, Claudete Dias e Paulo José Cunha, nos deram falas muito boas.
Como se não bastasse toda essa contribuição dos teresinenses, no Rio de Janeiro, a Paula Gaitán fez uma leitura muito profunda. Resumindo mais ou menos o que ela disse: “Terror da Vermelha” é um filme que permite pensar várias questões do fazer cinema, é cinema puro, uma obra que deveria tá no acervo do MoMA. Enquanto o Hernani Heffner, gerente da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, arrematou: Não tenho uma opinião definida sobre o “Terror da Vermelha”, é uma experiência muito fora da curva na história do cinema brasileiro.
Precisa dizer mais? Se eu fosse você, que se interessa por Torquato, assim que possível, assistiria ao “Terror da Vermelha” com mais atenção e, também, a “Torquato Imagem da Incompletude”.
Como foi apresentar o projeto do filme e convencer o canal Curta! para ser parceiro? Você poderia nos falar um pouco como foi construída essa viabilidade técnica e financeira para realizar o trabalho?
Quando saiu aquele catálogo da exposição de 2014, “Escrita da Incompletude”, apesar de ter ficado um pouco decepcionado com a qualidade, com o passar do tempo terminei programando uma distribuição para alguns museus, escolas de arte e bibliotecas do Brasil, pegando carona em outro projeto, que tinha patrocínio para postagens: o livro “O Filme Perdido” [que é o catálogo de uma outra exposição], patrocinado pelo Centro Cultural BNB de Fortaleza.
Mas ao contrário do poder sedutor do “O Filme Perdido” [que é uma pesquisa sobre o estatuto da imagem e não sobre Torquato, que está ali “apenas” em imagem], o “Escrita da Incompletude” não teve muito feedback.
Em parte, devido ao pensamento do Torquato ser muito escorregadio quando se sai dos lugares comuns em que o colocaram por longos anos; em parte porque não se espera que se faça reflexão crítica em artes visuais no Piauí; em parte porque o catálogo é fraco como publicação.
Com tudo isso, considerava uma desatenção que isso passasse sem reverberação. Apesar de estar acostumado a trabalhar na distância de um Piauí ermo, mas daquela vez em especial queria muito ampliar a conversa, divulgar essa pesquisa, e o caminho mais prático para isso seria então … fazer um filme.
Não sou cineasta, mas sempre soube que dirigir filmes era só uma questão de tempo, um desdobramento do que já faço. Mas precisava chamar alguém para fazer esse filme comigo, trocar ideais.
Não tinha experiência com os meandros técnicos e raciocinava como iria conseguir convencer a Ancine a patrocinar essa ideia, se esse aspirante a cineasta não possuía no currículo sequer um curta metragem.
Conversei, a princípio, com o Yann Beauvais, um cineasta francês que morou um tempo no Recife, trocamos algumas ideias, e teria sido fantástico se a distância geográfica, ele em Paris eu em Teresina, não tirasse minha segurança sobre a intensidade de trocas que são precisas.
Yann é um artista que admiro, com muita bagagem sobre a construção de imagens, reflexivo e pesquisador. Porém ele estava iniciando um novo ciclo como professor em Paris, e eu intuía que entre os diretores era vital ter muitas conversas soltas e aleatórias em bar, deixar as ideias vagarem por aí e voltarem. Enfim, nem tudo conseguimos resolver à distância. Dessa forma as coisas foram esfriando pela imposição das circunstâncias.
Um pouco depois, fui fazer uma exposição do Mestre Francisco Ribeiro, em Parnaíba-Piauí, para o Sesc Caxeiral, e chamei o Danilo Carvalho, que é um artista da cidade, para se juntar ao projeto. O trabalho rolou super bem e depois dessa experiência, entreguei o catálogo da exposição do Torquato para ele e disse: “Olha isso aqui! Quero fazer um filme desta pesquisa. Vamos?” E ele então me disse: “Aos Biglys!”.
Talyta Magno e Márcio Bigly, que se tornaram respectivamente produtora executiva e montador. Desenhamos a equipe, produção Bárbara Nepomuceno, fotografia que ficou a cargo da Camila Freitas, eu e Danilo na direção. Tudo lindo e empolgante, mas… faltava a grana.
Nesse meio tempo surgiu o Nordeste Lab, um evento que eu nunca tinha ouvido falar, onde vários canais se reúnem por três dias em Salvador. De Teresina, nos inscrevemos previamente para tentar uma conversa com o Arte1 e Canal Curta!. O Arte1 sinalizou que gostaria de saber mais sobre a proposta do nosso filme, já o Curta! não deu retorno.
Fui a Salvador e chegando lá, era tudo novo para mim nesse mundo do mercado audiovisual. Uma coisa que estranhei nas conversas paralelas que pescava, e que para o pessoal do audiovisual parece que é natural, é o fato de se perguntar, com certa frequência, com que outros filmes seu futuro filme parecerá. É um jeito de funcionar especificamente do negócio de cinema, nas artes visuais não existe esse tipo de pergunta.
Pois bem, a conversa com o Arte1 foi boa, mas quanto mais cartas na manga eu tivesse, melhor. Pedi então ao organizador das entrevistas para sondar com a curadora do Canal Curta! se seria possível me encaixar em uma hora vaga. E não só deu certo ter a conversa, como teve até mais abertura.
Depois dali, foi o momento, já em Teresina, de confeccionar o projeto do filme para a Ancine junto ao aceite do canal, e esperar o desenrolar das papeladas do Fundo Setorial do Cinema. Até que num belo dia a bendita verba foi liberada.
Editar é uma forma de construção de memória. Por quanto tempo foi discutido o processo de edição ? O que não entrou no filme e porque essas escolhas aconteceram?
Quando terminamos as gravações no Rio, São Paulo, Salvador e Teresina, esqueci do Torquato por alguns meses, para desopilar. Depois desse grande intervalo, comecei a assistir ao bruto. Tentei fazer, a princípio, aquele método do post it que é usado por algumas pessoas em pré-montagem, mas comigo não rolhou, mesmo. Achei terrível esquematizar por post it em assuntos, personagens, lugares etc., parece que vai se perdendo a organicidade daquele tear de imagens.
Como o post it não tava dando certo, parti para um exercício intuitivo de assistir e assistir muito ao bruto. Deixava as imagens rolando na TV em casa, noite e dia, dia e noite. Seja concentradamente, anotando notas avulsas, seja distraidamente, enquanto lavava louça, botava a roupa na máquina. Dormia com ele ligado, acordava no meio da noite no meio de uma cena, uma fala. Enfim, era um mergulho.
Quando chegou o dia determinado de fazer o primeiro corte, que foi aqui em casa mesmo, este filme bruto já estava tão entranhado em mim, que quando escolhi a primeira cena aleatória as outras foram vindos naturalmente em minha cabeça, sucessivamente e depois de uns cinco dias, foi concluído o corte primeiro.
Depois disso, começamos o processo em equipe, na B&T Audiovisual, a produtora do filme. Conversávamos, buscávamos os respiros, e a lapidação continuava. Daí veio as imagens de arquivos que estavam todas há tempos pré-escolhidas, pois é impossível pensar nas imagens do bruto apartadas dessas imagens de arquivo, uma coisa puxa a outra. Mas, também, é outra história ver como os arquivos vão reagindo de fato na construção do sentido do filme, sem parecer mera maquiagem.
E a cada passo, o filme foi fermentando e ganhando consistência. Daí o Danilo colocou a trilha original, que é muito sensível, quase silenciosa, e trouxe toda uma outra camada. A cena da luta de faca na estação de trem, em “Terror na Vermelha” ficou maravilhosa. Aquela trilha não há no original, é obra do Danilo Carvalho. Uma licença poética sonora, por assim dizer.
O filme “Torquato Imagem da Incompletude” mimetiza um pouco a obra, é um filme incompleto. É uma elipse seca dentro dos possíveis assuntos mais comumente tratados. Não tocamos em vários pontos mais recorrentes, como a fase tropicalista, ou o filme “Nosferato no Brasil”, ou a canção “Let´s Play That” etc. Apesar desses assuntos serem importantes dentro da produção do artista, a proposta do filme não é ser um apanhado geral, mas articular algumas questões tidas por muito tempo como periféricas, mas que são incontornáveis para investigação crítica da sua obra e pensamento.
Neste processo de descarte ficou propositalmente de fora outras coisas que, à primeira vista, poderiam ser consideradas importantes, como um texto de Glauber Rocha sobre o Torquato, que tive acesso em viagens, e que nunca foi publicado. Li e reli, é interessante em vários pontos, mas não essencial para o longa. Não ia trair o pensamento do filme em nome do fetiche do ineditismo. Para que? Ganhar ibope? “Filme traz texto inédito de Glauber Rocha sobre Torquato Neto”, nem pensar!
O filme, entre outras coisas, busca testemunhar novos sentidos que a obra do Torquato pode ganhar, sem precisar, necessariamente, de fatos inéditos. Talvez seja um filme para reavaliar o que já se conhece.
Mas para isso acontecer, de fato, não adianta eu me alongar muito aqui, o único jeito, mesmo, é assistir a “Torquato Imagem da Incompletude”, que está entrando logo, logo na grade do Canal Curta!
Torquato Imagem da Incompletude
Ficha Técnica:
Direção: Danilo Carvalho + Guga Carvalho
Realização: B&T Audiovisual
Argumento/Roteiro: Guga Carvalho
Direção de Fotografia: Camila Freitas
Fotografia Adicional: Talyta Magno + Fábio Expiga
Montagem/ Cor: Márcio Bigly
Ass. Montagem: Fábio Expiga
Trilha/Desenho Sonoro/Som Direto: Danilo Carvalho
Mixagem: Lucas Coelho
Motion: Samuel Leite
Produção: Bárbara Nepomuceno
Ass. Produção: Ana Luísa Rangel
Produção Executiva: Talyta Magno
Ass. Produção Executiva: Hildenberg Brito
Elenco:
Hernani Heffner, Paula Gaitán, Carlos Galvão, Paulo José Cunha, Luciano Figueiredo, Tadeu Jungle, Edmar Oliveira, Claudete Dias, Douglas Machado, Antônio Manuel, Carlos Vergara, Anna Bella Geiger, Ricardo Basbaum, Xico Chaves, Almandrade, George Mendes, Tiago San’tana, Raphael Fonseca, Paulo Miyada, Willyams Martins, Nevile D’Almeida, Cacá Diegues, Luiz Carlos Lacerda, Jorge Mourão & Archivos Impossibles, Antônio de Noronha (voz off), Cesinha Oiticica (voz off), Thiago E (voz off), Solon Ribeiro, Durvalino Couto.