A consciência feminista de Vanessa Passos

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Vanessa Passos é escritora, professora de escrita criativa, Doutora em Literatura (UFC) e Cursa Pós-Doutorado em Escrita Criativa na PUCRS, sob orientação de Luiz Antonio de Assis Brasil. Autora de A mulher mais amada do mundo (Luazul, 2020), seus contos venceram diversos concursos literários e foram selecionados para participar de antologias. Vanessa Passos é agenciada pela Agência Riff. É idealizadora do Programa Formação de Escritores e do Curso 321escreva, além de produzir eventos literários. Pintura das Palavras, sua rede social de promoção à escrita criativa, alcança milhares de pessoas, desde profissionais até aspirantes a escritores. Colunista sobre escrita criativa do Vida & Arte no Jornal O POVO. “A filha primitiva”, romance vencedor do 6º Prêmio Kindle de Literatura, concorrendo com mais de 2.400 obras, agora publicado pela Editora José Olympio, é seu romance de estreia. Nas redes, pode ser encontrada nos perfis: @vanessapassos.escritora e @pinturadaspalavras

Entrevista realizada por Emília Soares

(Doutora em Literatura Comparada pela UFC e professora do Instituto Federal do Piauí).

A obra “A filha primitiva” de Vanessa Passos é um livro direto, sem meias-palavras, meios-termos, sem modos. O ódio pulsa da carne e rasga as palavras numa linguagem brutalista e de expulsão das dores. Quase sem nenhum lirismo, Vanessa atinge as camadas mais difíceis de um ser humano, não um qualquer, mas de uma mulher que busca a sua identidade em meio ao desconhecido, ao cansaço de tentar ser mãe e ao fracasso de cada dia. Filha de uma empregada doméstica, a narradora terceiriza a própria mãe para cuidar de sua cria, mas não há gratidão, há ódio por ambas pertencerem a uma mesma sina que parece eterna entre as gerações. O matricídio e a matrofobia tão flagrantes na psicanálise feminista também o são em “A filha primitiva”. Há o desejo de escapar do destino imposto às mulheres, em especial, por conta da maternidade.

Uma obra de coragem, especialmente para a escritora que também é mãe. Falar da maternidade com realismo por si só já é uma subversão. São poucas as obras na literatura que se arriscam a essa façanha. É preciso coragem para dizer o indizível. É preciso lidar com a culpa, o desejo de suicídio, a humilhação, a loucura, a falta de afeto. É preciso lidar com o fato de ser mulher e com todas as violências ao longo da vida pelas quais iremos passar. É preciso dar aulas para alunos de todas as fomes, tornar-se doutora, seguir os caminhos burgueses e acadêmicos para passar na cara da sociedade que uma mulher venceu. Mas isso ainda não é tudo.

Confira a entrevista com a escritora Vanessa Passos:

Sua personagem de “A filha primitiva” (2021) demora muito para se perceber como mãe. Não por meio dos ritos considerados “naturais” como amamentação, parto, etc, mas por meio do ódio. E para você, Vanessa, quando e como foi que a maternidade de fato bateu à sua porta?

Eu não queria ser mãe. Assim como minha personagem no livro, eu pensava que não queria colocar uma criança no mundo para sofrer num mundo cheio de violências, sobretudo, para uma mulher. A maternagem foi chegando com o tempo, numa descoberta diária das alegrias e agruras de ser mãe. Tive a minha filha no segundo semestre da graduação em Letras, quando tinha dezessete anos, e passei por regime especial. Ao voltar às aulas presenciais depois de quatro meses, eu tirei trinta potes de leite para que ela tivesse estoque enquanto eu estava estudando. Não foi fácil, nunca é para uma mulher. Mas logo cada esforço, cada sacrifício, cada dor que eu vivenciava, pensava: “Filha, você também pode”. E por mais difícil que fosse eu não desistia para abrir caminhos para ela. Em A filha primitiva, dedico o livro para minha mãe e para minha filha. Digo a seguinte frase: “Bela, foi o erro mais acertado da minha vida”.

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A loucura e o ódio parecem dois sentimentos constantes nas suas personagens femininas. O que esses sentimentos podem expressar sobre a real situação das mulheres?

Às vezes penso que ser mulher pode ser enlouquecedor no mundo em que vivemos. O processo de taxar mulheres de loucas e inviabilizar seus discursos é muito antigo. A loucura e a raiva são temas que me fascinam e que acredito que estão intimamente ligados com a história das mulheres. É algo que busco investigar na minha literatura e também está no meu novo romance onde pretendo me aprofundar sobre o tema da loucura e sobre como o corpo somatiza e pode adoecer a partir de nossas dores.

Você enquanto leitora e escritora de textos de autoria feminina considera a existência de uma écriture  féminine?

Estudando o mercado literário e a crítica, vejo que o termo “escrita feminina” muitas vezes é usado com um tom pejorativo, para diminuir o trabalho de mulheres, mais ainda, para afirmar que aquilo que escrevemos não tem valor universal, é menor. Gosto de falar em mulheres que escrevem, mas não em escrita ou literatura feminina, porque não é necessário colocar nosso trabalho em caixinhas. Nossa escrita vai muito além disso em termos de estética, qualidade literária, estilo e experimentalismo. 

Nós mulheres ao longo dos tempos superamos vários desafios e conquistamos territórios jamais imaginados. No entanto, vivemos um temeroso retrocesso que, tal qual um redemoinho, parece querer tragar e renegar as nossas conquistas. É todo dia mais uma mulher vítima de violência, de misoginia, de desrespeito. Há muita cobrança em torno de nós, o que acaba nos tornando competitivas, cansadas e perfeccionistas. Como você lida com essas questões que afligem a subjetividade feminina? Há a possibilidade de uma rota de fuga diante dessas atrocidades?

A competitividade feminina é um discurso amplamente incentivado pela sociedade para enfraquecer as mulheres e o nosso poder enquanto coletivo. Mesmo quando fatos específicos nesse sentido acontecem, gosto de olhar com empatia, porque apontar o dedo para uma mulher que ainda não tem consciência do machismo estrutural é fazer o mesmo que os homens já fazem há tempos. Busco um enfrentamento crítico e ampliar o debate, porque determinados assuntos ainda são tabus e não são discutidos e eu sei o quanto o conhecimento pode ser transformador na vida de uma mulher, falo por experiência própria. Foi estudar sobre feminismo que me permitiu ter consciência das diversas violências que tinha sofrido ao longo da minha vida de natureza psicológica, física e sexual. E só assim, a partir da luz que o conhecimento me trouxe, me permitir traçar novos caminhos.

Vanessa, o que você tem a nos dizer diante de anos de experiência ajudando e orientando mulheres no processo de escrita? O que elas têm a nos dizer ou o que elas não conseguiram ainda dizer?

Nos últimos tempos, o mercado editorial tem dado mais atenção à produção literária feita por mulheres e aberto espaço para as suas publicações. Mas a verdade é que as mulheres já escrevem há muito tempo. Vejo, nesse processo de acompanhamento, o quanto as mulheres são dedicadas a buscar mais conhecimento, a aprimorar a escrita, a receber feedbacks. Fico sempre impressionada com a potência das histórias que elas têm para contar e escrever. Mas percebo que a autossabotagem ou o medo da crítica ainda impedem que ousem mais. É um processo que leva tempo, mas estamos trilhando um caminho bonito.

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Como estão as coisas em Porto Alegre? Como é a vida da Vanessa cearense nessas terras? Como tem sido esse desafio de colocar a mochila nas costas e encarar esse Brasil lançando e divulgando seu livro? Qual a diferença de viver no Ceará e em POA em relação à amplitude e à divulgação de sua obra.?

Sou uma cearense com muito orgulho e levo minhas referências e minha cultura aonde vou, tanto em Porto Alegre, que fiz um pouso temporário para realizar o Pós-doutorado em Escrita Criativa na PUC/RS, quanto nas cidades que tenho viajado para a turnê de lançamentos de A filha primitiva. Aqui em Porto Alegre e, sobretudo, na PUC, há um olhar aberto para a formação de escritores e para o estudo de escrita criativa dentro da própria universidade – eu acredito e desejo que outras universidades também criem esse espaço, porque sei que nem todo mundo pode se deslocar com a família inteira para Porto Alegre como eu fiz. Tem sido uma experiência riquíssima. Acredito que muitos fatores têm dado maior visibilidade para a minha obra literária: o prêmio, o pós-doutorado e a busca constante por aprimoramento, a participação em eventos importantes como bienais e festas literárias internacionais.

Você é bastante atuante nas redes sociais e agora na coluna do Jornal O povo. Em se tratando das redes, que parecem, muitas vezes, território de ninguém, onde haters disseminam misoginia e discurso de ódio, quais foram os principais desafios encontrados por você?

São muitos desafios, desde o assédio, quanto a discursos de ódio em relação aos meus posicionamentos no que se refere a questões como o racismo e a misoginia. Outro fato é que, com a maior visibilidade e o reconhecimento literário, sempre há aqueles que vão colocar à prova o merecimento desse valor, sobretudo, de um trabalho feito por uma mulher (e isso não se limita aos homens, porque nosso machismo é estrutural). Mas lido com isso com muita segurança e firmeza, pois tenho consciência da seriedade do trabalho que realizo como escritora e professora de escrita.

Em um texto que você publicou recentemente no jornal O povo, percebemos seu redescobrimento enquanto mulher, principalmente na questão corporal, quando você cita que a sociedade tentava impor um branqueamento como forma de aniquilar suas características de negritude. Nosso corpo parece um território público no qual todos podem opinar, tirar um pedaço, colocar outro no lugar. A corporeidade feminina, acredito, ainda é uma questão dolorosa para nós que, desde criança, banhamos as bonecas, limpamos, colocamos para dormir, damos ordens a elas, como se fossem as filhas perdidas e desobedientes. Que leitura podemos fazer sobre essa disciplina imposta pela sociedade patriarcal aos nossos corpos femininos? Você, enquanto mulher, se vê na necessidade de superar a si mesma em algo?

Acredito que toda mulher precisa passar por um processo de redescobrimento de si e do próprio corpo, pois em alguma medida, algumas mais, outras menos, já sofremos imposições e violências que nos levaram a um caminho que não é o nosso. Essa pressão social por perfeição faz com que muitas mulheres e escritoras nunca se sintam “boas o suficiente”. Eu mesma já me senti assim por muito tempo. Mas, no meu caminho de redescoberta, percebi que não desejo ser perfeita e nem isso é possível, quero lutar pelos meus sonhos e inspirar outras mulheres a fazerem o mesmo. Gosto de repetir para mim mesma uma frase que tinha numa camisa: “nasci para fazer tudo aquilo que dizem que uma mulher não pode”. Hoje, eu sigo lutando pelos meus sonhos, mas também me divertido, com leveza, e isso para uma mulher é revolucionário.

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Seu conto “Fome” do livro A mulher mais amada do mundo (2020) retrata o assunto da compulsão alimentar e vai além disso ao evidenciar a relação afetuosa da narradora com a sua avó, baseada numa aceitação corporal. O conto me fez lembrar da minha avó Delmira que demonstrava o seu afeto por nós, netos e netas, nos enchendo de galinha caipira e bolo frito. Como você lida com essas questões, percebidas em suas obras, fora da ficção? Quais são as fomes de Vanessa Passos?

Minhas personagens são muito reais e podem facilmente levar a um processo de identificação de si ou de outros que circundam os leitores. Por um lado, isso pode conduzir o leitor a um lugar de acolhimento e afeto, mas, por outro lado, não exclui o incômodo que muitas cenas podem provocar a partir da leitura, porque, em geral, trabalho com temas tabus na literatura. Escrever, para mim, parte de um lugar que me incomoda, que me inquieta, que me dá raiva. A Vanessa Passos hoje tem fome de liberdade e a literatura me permite isso.

Ser professora no Brasil ainda vale a pena? Quais os encantos e desencantos que você encontrou em sua carreira profissional?

Desde pequena tive vocação para ser professora. Minha consciência como professora veio antes, inclusive, da consciência de ser escritora. Eu só fui mudando do que dava aula. Comecei muito jovem, com dez anos a dar aulas de reforço, depois fui auxiliar no ensino infantil, depois que entrei no Curso de Letras logo comecei a lecionar aulas de Literatura, Língua Portuguesa e Redação no ensino privado. Mas logo passei no concurso e passei a dar aulas no ensino público, que foi a maior escola que tive na vida. 

O que você anda lendo atualmente? Quais escritoras você destacaria da sua geração? O que essas autoras trouxeram de diferencial para a cena literária?

Estou sempre estou lendo uma mulher. Inclusive, organizo o Clube de Leitura Autoras Vivas. Nosso lema é “nós, escritoras, não precisamos morrer para sermos lidas”. Gostaria de citar autoras que admiro e que, não só li, como tive a alegria de participaram do projeto A filha primitiva com textos no livro. São elas: Giovana Madalosso, Natalia Timerman, Andréa Del Fuego, Nara Vidal, Carola Saavedra, Marcela Dantés, Juliana Leite. Tenho lido muitas autoras negras que são grande referência para mim: Elisama Santos, Bianca Santana, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Maya Angelou e Chimamanda.

Emília Soares e Vanessa Passos na Universidade Federal do Ceará (2018).

 E as suas expectativas para 2023? Algum novo projeto pessoal ou profissional em vista? E para o Brasil, o que você espera? Qual mentira você gostaria que fosse verdade?

Tenho alguns projetos para 2023. O primeiro deles é terminar a versão final do meu segundo romance, projeto desenvolvido no meu Pós-doutorado em Escrita Criativa PUC/RS. O segundo é estudar roteiro. Minha escrita é muito visual, sempre tive vontade de me aprofundar nesse estudo, uma vez que literatura e roteiro dialogam. Além disso, estou me articulando para participar de residências literárias. Espero que o Brasil possa voltar a ter esperança, começando pela queda deste governo genocida. Meu desejo é que o Brasil estivesse livre do fascismo e dos tempos sombrios que nos assola.

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