Abordando Fernando Costa

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por Kleber Lima


O poeta e pesquisador Kleber Lima compartilha suas impressões em torno da obra de um artista pouco comentado entre nós: o artista plástico Fernando Costa. Talvez os piauienses e o resto do mundo não atentaram para o impacto das suas imagens, mas vivemos uma fase que sua obra é descortinada e debatida com o valor que Fernando merece.

Na época que Fernando Costa, enquanto pintor e artista teresinense, chegou até mim, eu me focava quase exclusivamente em descobrir, em todas as artes, artistas que, além de uma obra que me causasse impacto, tivessem uma biografia violenta: suicidas e suicidados, feiticeiros e magos, visionários e subversivos que teriam, justamente por esse motivo, publicado apenas um livro e desaparecido, lançado apenas um disco e anonimamente saído da vida para um nevermore ou para “criar galinhas”, ou ainda os que passaram a vida produzindo, mas sem qualquer aptidão em firmar o “nobre pacto”: os incorrigíveis inadaptados.

Então, nesse contexto, foi que vi um quadro de Fernando Costa pela primeira vez, e isto foi no Museu Público do Piauí, um imenso painel intitulado “O Apocalipse”. Ainda não sabia quase nada da vida dele, mas fui tremendamente desestabilizado pela beleza e potência impregnante daquela pintura. Não se diferenciou em nada da primeira vez que vi um vídeo da música “Transmission” com o espasmódico Ian Curtis ou da primeira vez que li numa só golada “Memórias do subsolo”, do Dostoiévski. Fiquei realmente abalado.

Hoje, uns 15 anos depois, já não tenho a mesma mentalidade da época, digamos que a tenha expandido, o que é, ou deveria ser, natural para qualquer ser humano. Hoje observo outras sutilezas, tanto na obra quanto na vida de algum artista que me interesse, ainda que, quase sempre e fortemente, o que pesa pra mim é o que sobressai da relação dele consigo mesmo, derivado do enfrentamento dos seus demônios e anjos, lástimas e virtudes, desgraças e desassentamento na vida, assim como da produtiva aniquilação do real pela força da imagem pessoalíssima que, via de regra, é tanto mais fiel a si mesma quanto mais passível de autossabotagem.

Também, na época, quando conheci Fernando Costa, eu estava no meio de um processo de conhecer, tanto quanto possível, a cultura, a história e a literatura piauiense. Com meus dois amigos, Neto e Ivo, criei um jornal literário e cultural, o Revés, que tinha uma pegada mais independente e improvisada, e nele expúnhamos, com todo ardor da juventude inebriada diante dos primeiros contatos com esse mundo misterioso da literatura e das artes em geral, os nossos conhecimentos advindos de leituras e conversas com várias outras pessoas, principalmente de mais idade que a gente, como o escritor Paulo Machado.

De todos artistas teresinenses que conheci, Fernando Costa foi o que mais me cativou. Senti profunda afinidade com a sua obra e desde que vi uma foto dele, com o seu olhar que parecia escapar belamente dos seus olhos serenos e contidos, captei ali indistintas energias interiores que recusariam quaisquer armistícios. Mas isto não importa muito, pois é uma pontuação estritamente pessoal.

Com certeza, Fernando Costa não sofreu com aquilo que Blanchot chamou de “a grande fogueira da glória” e viveu a substância mais poderosa da sua obra enquanto esteve neste mundo, pois não teve tempo de envelhecer e se “regozijar” com o reconhecimento. Por isso, não se sabe até onde ele teria chegado.    

Teresina, na época e ainda hoje, assim como muitas outras cidades brasileiras, dificilmente oferecia recepção justa para seus artistas. Com isso, ficam sujeitos ao que os senhorios culturais elegem como os melhores representantes do cercado onde se pasta, ou são espaços viciados à mercê do que chega mastigado pela mídia focada burramente na quantidade de views.

Enfim, fôssemos nos basear apenas pelas suas pinturas poderíamos fazer uma imagem de um artista de personalidade destroçada. Mas não. Nas palavras de vários amigos da sua época, Fernando Costa exteriorizava uma personalidade que era “a antítese das imagens que produzia”1 e era essencialmente “gentil e suave”2 e na maior parte do tempo “lembrava o Paulinho da Viola”3 . Fiquei bastante interessado nesse aparente paradoxo a ponto de passear pelo mapa natal de Fernando Costa, focando em perceber os pontos do itinerário de sua energia interior canalizada via pintura. Observei que sua maneira sem alarde, de voz mansa, introspectivo e comedido, de muita graça e bem quisto, coadunava com sua personalidade taurina/pisciana acrescida e pontuada pela tensão de seu netuno retrógrado em escorpião na casa 8, em oposição ao Sol com quadratura em júpiter. Esses ingredientes sim, que mal trabalhados, são potenciais ativos de uma imprevisível dinamitação interior e que, como se percebeu, foi anunciada mais de uma vez, simbolicamente, em sua genial obra. É como aquela frase do Torquato Neto derivada de uma letra dos Beatles: “você olha nos meus olhos e não vê nada: pois é assim mesmo que eu quero ser olhado. É assim mesmo que eu quero que você não entenda…”.

Fernando Costa, filho mais novo entre os homens, do total de seis irmãos (três homens e três mulheres), adorava doce de buriti, segundo afirma sua irmã Hercilene Costa. Teve infância bastante tranquila, sem incidentes marcantes. À medida que os anos iam avançando foi aprimorando sua estética. Entre livros de filosofia, arte e literatura clássica também se juntavam os de biologia e atlas detalhados das estruturas musculares do corpo humano. Daí se notar um dos principais traços emblemáticos de sua pintura, onde pessoas e animais destituídos de pele (como se fora totalmente esfolada), sofrem contorções ressaltadas em suas fibras musculares cuidadosamente expostas, mergulhados numa coreografia agônica, combustiva e violenta, que parece destiná-los à penosa aniquilação, numa batalha antecipadamente perdida.

Mas nem todos os quadros de Fernando Costa se enveredam por essas descrições dos campos de batalhas que emergem do interior sombrio dos seres humanos. Há séries que flertam com abstracionismo, mais herméticas, que não cedem a sentido interpretativo (sempre há sentido!) algum. Até os 21 anos Fernando Costa viveu na casa dos pais. Tendo saído, segundo consta, depois de ter casado com Fátima Lima, e ambos irem para São Paulo, ela pra estudar e ele ampliar seus horizontes artísticos. Este casamento não durou muito e Fernando Costa voltou para Teresina visivelmente abalado, com quadro grave de depressão. Ainda mais calado e introspectivo que de costume, o tom geral da sua pintura descarregava tensões psicológicas fantasmagóricas. Desse momento, até ele assobiar do outro lado desse sonho chamado vida Song of the Open Road4 , foi um pulo.

Aos poucos Fernando Costa chama a atenção de mais pessoas, entre estudiosos e interessados em artistas destruidores do estabelecido, estudantes e professores do âmbito acadêmico desejantes de ampliar seus espectros de pesquisa. Surgem aqui e acolá algumas exposições, artigos e ensaios, postagens e compartilhamentos de suas pinturas, além de conversas informais e mais gente interessada. Nada ainda, com certeza, à altura do que produziu em sua curta existência humana. No entanto, defendo que sua descoberta seja gradual, ainda mais nesses tempos de overdose informacional, onde tudo se consome em alta velocidade, e onde qualquer coisa “muito boa” é descartada ao se dobrar a esquina por outra coisa também “muito boa”.

É bom que assim seja, que a sua obra seja buscada por quem realmente tenha interesse e cuidado, além de quaisquer modismos e caretices, que as raízes de sua obra sejam fincadas demorada porém firmemente. Concordo com o que disse Jean Genet: “a obra de arte não se destina às novas gerações. Ela é ofertada ao inumerável povo dos mortos (…)”5. Assim é que se deve escrever, pintar, compor e etc., porque passando despercebida, resta a obra de arte como medida apenas “a profundeza da vida da qual ela brota”6


Notas: 1. Paulo Moura 2. Salgado Maranhão 3. Cineas Santos 4. Poema de Walt Whitman.  5. Jean Genet em “O ateliê de Giacometti”. 6. James Joyce.


Kleber Lima (PI). 1984. Escreveu e lançou o livro Poemas I, pela Editora Penalux.


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