.”A vida é a vida” Notas sobre Vivre Sa Vie, de Jean-Luc Godard

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NAYHD BARROS (PI) Professora de História da Arte, graduada em História pela Universidade Federal do Piauí. Apaixonada por cinema, fotografia, música e poesia.


Ando à procura de espaço para o desenho da vida. CECÍLIA MEIRELES

Estética e intelectualmente estimulante, o filme Vivre sa vie, de Godard, foi realizado em 1962, no auge da Nouvelle Vague francesa. Porém, é por sua universalidade e pelo tratamento de questões ainda de interesse contemporâneo que merece ser revisitado, não só pelos amantes do cinema clássico francês, mas por um público bem mais vasto interessado em cinema e nos seus múltiplos diálogos e cruzamentos com as experiências humanas.

Um dos maiores méritos desse filme, para além das inovações realizadas em termos de linguagem na época, foi ter possibilitado, a partir de sua construção narrativa sofisticada, uma reflexão de natureza filosófica sobre os horizontes perceptíveis de nossa liberdade e de nossas responsabilidades existenciais, quando cotidianamente vivenciamos a vida, uma aventura tão intensa, imprecisa e imprevisível.

Produzido depois de Une femme et une femme (1961) e antes de Le mépris (1963), esse filme trata, sobretudo, de acontecimentos isolados, de ideias, do desenho da vida e também da morte, ao nos apresentar uma grande personagem, Nana. Grande não por sua importância ou status adquirido na sociedade, mas por sua história singular, construída e apresentada por Godard em doze episódios, recorrendo a diversas referências da cultura ocidental.

Vivre sa vie não é, porém, um filme que se preocupa em explicar ou contextualizar o espectador a respeito de um drama específico de Nana. A única preocupação notada aqui é a de apresentar acontecimentos, episódios que se configuram na vida dessa mulher. Representada pela célebre Anna Karinna, essa personagem decide enveredar-se, por sua própria escolha pelo mundo da prostituição, e depois disso, encontra o enlace final de sua história. Mas apesar das aparências, também não se trata de um filme sobre a prostituição, enquanto temática psicológica ou como um problema da sociedade da época, mas sim da prostituição como metáfora para a transformação de uma mulher, que se vê diante da necessidade de viver sua própria vida, de fazer suas escolhas e responsabilizar-se por elas. O filme não explica por que a protagonista decidiu prostituir-se, mas trata, antes de tudo, da própria liberdade de Nana, que renuncia ao aparentemente banal e atribui, de diferentes formas, significado a sua existência.

Vivre sa vie inicia citando Montaigne: “É necessário se emprestar aos outros e dar-se a si mesmo”. Essa primeira referência já nos fala sobre as ambições da própria narrativa: contar a história de uma mulher, múltipla em sua relação com os outros e que busca a si mesma.

Uma das molas mestras de Vivre sa vie é a discussão de questões inerentes à própria condição humana, como a liberdade e a responsabilidade. Esse interesse temático pode ser compreendido à luz do próprio universo de Godard. O cineasta procurou dar materialidade, por meio de seus filmes, a suas principais ideias e referências culturais, e para tal, precisou revolucionar também a linguagem cinematográfica, construindo um cinema eminentemente filosófico em plena década de 1960, fato plenamente perceptível em seus primeiros longas-metragens.


Os doze episódios nos quais o filme encontra-se estruturado dão a narrativa um ritmo entrecortado, onde o mais importante é acompanhar as histórias contadas por cada um desses episódios, que vem divididos em tomadas específicas. Todas, por sua vez, recebem títulos que resumem os acontecimentos seguintes da vida de Nana e o encontro dela com os outros e com ela mesma.

No primeiro, Nana encontra Paul, seu antigo marido e através de uma conversa inquietante (já que ouvimos somente suas vozes e vemos ambos sentados de costas para a câmera) descobrimos tratar-se de uma despedida. Nana havia abandonado Paul, não sabemos por qual motivo. Sabemos apenas que “quanto mais se fala, as palavras vão dizendo menos”, como reflete a própria Nana. Esse é o primeiro contato que temos com a personagem, que aparenta estar bastante resoluta na decisão de abandonar o passado e seguir outro caminho. Nos episódios seguintes vemos Nana apenas trabalhando em uma loja de discos, e procurando, como diz a própria legenda, viver sua vida. Vemos, até mesmo, Nana no cinema, numa das sequências mais significativas desse filme: o diálogo com a obra Joana D’Arc de Dreyer.

Nessa referência direta, assistimos junto com a personagem a cena em que Joana D’Arc é comunicada que será queimada na fogueira. As cenas do filme são cortadas para o rosto de Nana chorando em primeiro plano, em um diálogo muito interessante. Para Joana, seu martírio significa sua libertação, sua salvação. Essa referência está absolutamente ligada à própria história de Nana, que terá na vida de prostituta sua afirmação pessoal e na sua morte, ao final, sua verdadeira libertação. Como disse Susan Sontag, quando escreveu também sobre esse filme, os doze episódios da vida de Nana correspondem, na verdade, a sua própria via cruzes, assim como a vivida por Joana D’Arc, contudo diferente da heroína religiosa, Nana terá sua história completamente desvinculada do viés religioso.

Ainda com o objetivo de significar esse universo complexo de Vivre sa vie, no episódio III, vemos Nana conversando com outra personagem, uma amiga chamada Yvette, que lhe explica os motivos pelos quais precisou começar a prostituir-se. E é nessa conversa que encontramos a síntese temática do filme e os elementos que nos permitem compreender as metáforas construídas por Godard nessa obra. É aqui que Nana diz-se livre e afirma-se responsável por todas as suas escolhas:

“Eu acho que somos sempre responsáveis pelo que fazemos. Eu subo minha mão – sou responsável. Viro para a direita – sou responsável. Estou triste – sou responsável. Fumo – sou responsável. Fecho meus olhos – sou responsável. Eu esqueço que sou responsável, mas sou responsável. Tudo é belo! Você se interessa por algo e ele se torna belo. Ainal, as coisas são assim, nada mais. Uma mensagem é uma mensagem. Pratos são pratos. Homens são homens. E a vida, é a vida!” Trecho da conversa de Nana com sua amiga Yvete.

Essas reflexões permitem-nos perceber o cerne da questão que dá vida ao filme. Essa obra é uma espécie de ensaio visual, que dialoga diversos textos e imagens, para tratar do tema da liberdade humana. Para ser livre é preciso responsabilizar-se por suas próprias escolhas e entender que as coisas são como se apresentam. A morte trágica de Nana, assassinada no final do filme, acontece logo após seu encontro consigo mesma e a escolha de viver sua própria vida. É quando Nana se reconhece em sua vida, que pode então ir embora dela, como o próprio movimento da vida humana, marcado pelas necessárias e inconstantes chegadas e partidas.

O penúltimo episódio é marcado por um acontecimento interessante na vida de Nana: o encontro com o filósofo. Representando aqui a si próprio, Bruce Parain, reflete sobre as dimensões da linguagem, a relação entre fala e pensamento, e também as relações que o ser humano pode constituir consigo mesmo e com o amor. Prelúdio para o fim, representado pelo último episódio, onde Nana, após ter encontrado o amor nos braços de um rapaz que recita “O retrato oval” de Edgar Alan Poe para a personagem (a poesia é recitada em off pelo próprio Godard), é levada a morte, em parte, por suas próprias escolhas. Ela é assassinada por pessoas que também fazem parte do universo da prostituição.

Nesse encontro com o filósofo, Nana pergunta a Bruce Parain o porquê de não podermos viver sem as palavras e ele responde que pensamentos e palavras estão profundamente conectados e que a vida precisa do pensamento. Partindo de uma leitura filosófica, essa é uma das mensagens mais emblemáticas do filme, que tenta capturar a própria complexidade da vida humana, dos acontecimentos desconexos que juntos configuram algum sentido para nossas experiências e, especialmente das escolhas próprias do ser humano, que dão sentido a sua vida.

A ideia de liberdade, aqui, estaria conectada ao sentido mesmo de responsabilidade do próprio homem ou mulher em relação a si mesmo. Nana, quando cultivou esse sentimento pode assim viver sua própria vida, de maneira imprecisa, ambígua, é verdade, mas também de forma intensa e significativa. E parafraseando Cecília Meireles: é preciso andar à procura de espaço para trilhar, desenhar esse embaraço da vida. Não importa com que durezas, mas é o desenho que daremos à nossa vida.

REFERÊNCIAS

MEIRELES, Cecília. Canção excêntrica. In: Vaga Música (1942).

OLIVEIRA Jr., Luis Carlos. Viver a vida. In: Revista Contracampo. Disponível em: <htp://www. contracampo.com.br/77/dvdvhs- viveravida.htm.

PERKINS, V.F. Vivre sa vie. In: CAMERON, Ian. The ilms of Jean- Luc Godard. New York: Books that mater, 1970.

SONTAG, Susan. Godard’s Vivre Sa Vie. Against Interpretaion. Ed. Picador. New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2001.

FILMOGRAFIA

GODARD, Jean-Luc. Vivre sa vie. França, 1962.

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