CHARLES BICALHO (MG) biofilmografia: Doutor em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Especialização em pós-produção para cinema, tv e novas mídias, pela UNA-BH. coordenador do coleivo audiovisual PAJÉ FILMES. Organizador geral e curador da Mostra Pajé de Filmes Indígenas em Belo Horizonte. Diretor dos Filmes: CALIGRAFILMES (2008); MAKING OF DICIONÁRIO (2012) e PIRAPORA (2012). Produção, edição e inalização dos curtas XOKXOP PET (2009), YIAX KAAX (2010), YÃMÎY (2011), KOTKUPHI (2012), XUPAPOYNÃG (2012) E MÎMÃNÃM (2012), de Isael Maxakali. Prêmio Edital Filme em Minas 2011-12, categoria de finalização, para os curtas KOTKUPHI e XUPAPOYNÃG, de isael Maxaka.
Stephen Wall, um representante do povo White Earth Chippewa dos Estados Unidos, por ocasião do Native Cinema Showcase, parte da programação de um festival anual totalmente dedicado à cultura e arte indígenas, que acontece na capital do estado do Novo México, diz que “havia alguma resistência quanto a incluir filmes como uma categoria artística do festival. Mas filmes são uma importante forma de expressão para os jovens nativoamericanos. E não é assim tão diferente. Nós estamos acostumados a ver pinturas, e ouvir alguém contando histórias sobre tais pinturas. Então é como se essas pinturas fossem como fotografias dessas histórias, ou cenas dessas histórias. Eu posso fazer uma escultura e contar toda a história que está por trás dela, como se tal escultura fosse uma cena congelada dessa história. Um filme é como se fosse a história completa.”
Este é um bom ponto de partida para entendermos como os índios têm adotado a tecnologia “branca” do cinema.
Ao menos desde 1966, os índios eles mesmos estão fazendo seus filmes. Nessa data, Sol Worth e John Adair – um, professor de comunicação; o outro, antropólogo – levaram câmeras de 16 mm e ensinaram como manipulá-las aos índios Navajo numa reserva no estado do Arizona, Estados Unidos.
De lá para cá, a crescente popularização dos filmes, o fácil acesso aos equipamentos de filmagem, a diminuição dos custos de produção, fizeram com que muitos indivíduos indígenas desenvolvessem um genuíno interesse pela criação de seus próprios filmes. Karin Ainouz disse certa vez que o cinema se define pelo encontro de corpos que se determinam realizar algo que é importante para eles. Tal definição pode servir também ao ritual: pessoas que se encontram para fazer algo significativo. Pensemos nas cerimônias em qualquer religião… O cinema tem muito do ritual religioso, encorajado pela câmera. No ritual religioso, um grupo de pessoas realiza algumas ações com base num roteiro, visando contar uma história. Num set de filmagem também se tem ações preestabelecidas que a equipe técnica e de atores, com base em roteiro, deve realizar para contar uma história. O foco principal do cinema indígena – sendo a maior parte de sua produção composta de documentários – tem sido o ritual em sentido estrito: ações conectadas às mais profundas tradições de uma comunidade. Muitas vezes esse cinema conta histórias com profundo vínculo com a religião e cultura de determinado povo. Nesta perspectiva o cinema indígena é um mise en abyme ritualístico. Ou seja, um ritual dentro de outro ritual. O ritual cinematográfico enquadrando um ritual religioso. Os índios sempre tiveram sua própria tecnologia, que eles usam para contar suas histórias e transmitir seus conhecimentos. Baseada na oralidade, essa tecnologia engloba a língua falada, os gestos, pinturas corporais, coreografia, culinária, etc. Enfim, linguagens, que intimamente conectadas a nossos corpos, são ferramentas ou instrumentos que nos auxiliam na interação, na comunicação com o outro. Essas tecnologias são então mediações, mídias mesmo, no sentido que Marshal McLuhan, o famoso teórico da comunicação, deu ao termo. Podemos dizer que a tecnologia “branca” dos aparelhos eletrônicos e dispositivos digitais modernos é também para os índios uma expansão de suas capacidades tradicionais de contar histórias e transmitir conhecimentos. Em sentido macluhaniano, são também para eles extensões de seus corpos. Com essas novas tecnologias, assim como qualquer outro povo, os índios têm também a possibilidade de alcançar audiências cada vez mais distantes de seus territórios, podendo fazer chegar a sua visão de mundo a pessoas cada vez mais longínquas e potencialmente numerosas. Tal prática encontra eco no conceito de “aldeia global”, como formulado pelo estudioso da comunicação citado acima.
Na verdade, a conexão entre esses dois modos de comunicação, o tradicional e o moderno, digamos, parece já estar pré-determinado. Como atesta Arlindo Machado, em seu livro Pré-cinemas e pós-cinemas: “os artistas do paleolítico tinham os instrumentos do pintor, mas os olhos do cineasta. Em suas pinturas rupestres eles criaram imagens que parecem se mover; imagens que ‘cortam’ para outras imagens ou se dissolvem em outras imagens, ou imagens que desaparecem e reaparecem. Em outras palavras, eles já faziam cinema underground”.
Isael Maxakali, por exemplo, cineasta indígena do povo Maxakali, que vive em Minas Gerais, faz filmes sobre os rituais de seu povo. Os pajés, ou yãmîyxoptak em língua maxakali, como verdadeiros mestres de cerimônia, coordenam o espetáculo dos rituais, determinando os elementos que irão compor toda a mise en scène do mesmo, tais como folhas de árvore usadas como roupas, pigmentos naturais colorindo os corpos, comida, coreografia, cantos e histórias. Como cineasta, Isael também tem as suas determinações: planejamento de filmagem, ângulos de câmera, enquadramentos, composições de quadro, etc. Muitas vezes tais escolhas de Isael são tomadas em conjunto com os pajés tradicionais de sua aldeia, especialmente quando se referem ao que mostrar em seus filmes, pois muitos aspectos de seus rituais são secretos, vedada portanto a sua filmagem.
Isael é ele mesmo potencialmente um pajé. De acordo com a cultura tradicional maxakali, qualquer pessoa pode ser um pajé. Vai depender do interesse e dedicação pessoal para que um indivíduo seja considerado efetivamente um pajé. São necessárias abrangência e profundidade sobre os conhecimentos tradicionais, principalmente os concernentes ao âmbito espiritual. Isael tem se dedicado a esse âmbito, sobretudo como um cineasta, participando da preparação e realização dos rituais e filmando-os.
Normalmente, quando filma, Isael mantém a câmera em suas mãos. Ao mesmo tempo, em vários momentos, ele comenta aquilo que está sendo mostrado na filmagem. Outras vezes ele delega a câmera a um de seus filhos, ficando livre para comentar e cuidar de outros aspectos da direção de seus filmes. Enquanto filma, é normal que Isael interaja com as pessoas que filma, inclusive em conversas ou mesmo cantando com elas, como podemos ver em “Yiax kaax” (2010), um filme sobre um ritual de cura. Os filmes são, portanto, falados na língua maxakali e traduzidos ao português (também ao espanhol e inglês sempre que possível).
Muitas vezes Isael interage com o espectador potencial de seus filmes, fazendo comentários ou dando explicações claramente voltadas a quem assistirá ao filme, como acontece em “Yãmîy” (2011) e “Kotkuphi” (2012). O cinema indígena de Isael é, pois, dialógico e interativo. Sabemos que estas são
também da características do ritual. Segundo Evelyn Schuler, em artigo sobre o cinema indígena “Pelos olhos de Kasiripinã: revisitando a experiência waiãpi do Vídeo nas Aldeias”, isso caracteriza um discurso “in loco”. Ou seja, uma interação é encorajada graças a comentários que só poderiam ser feitos por alguém que pertence à cultura enfocada. Se fosse outra pessoa, não pertencente à comunidade Maxakali no caso, tal interação não se daria, ou se daria de outra forma.
Outra característica mencionada por Schuler, em se tratando do cinema indígena, é a “câmera interna”, graças também ao fato de ser o cineasta alguém de dentro da comunidade enfocada; o que, no que se refere a questões de estilo, é de fundamental importância. Não fosse Isael um membro da comunidade Maxakali, elementos como ritmo, tema, voz, locação, decupagem, entre outros, seriam bastante diferentes.
Como os outros pajés, Isael tem também a sua estética. E, como diz Ismail Xavier, “não é possível pensar a estética independentemente da invenção técnica”. Esta é outra maneira de dizer, de acordo com McLuhan, que “o meio é a mensagem”. As tradicionais técnicas dos pajés ganham um adicional com as técnicas cinematográficas de Isael neste caso.
É crucial mencionar que a palavra “estética” tem em sua raiz a palavra “estesia” (a habilidade para receber estímulos sensíveis). Seu contrário é a palavra “anestesia” (a total ou parcial perda das sensações físicas). Ou seja, através da estética, o ritual é a superativação dos corpos. Ou mesmo o excesso dos corpos, que permite que os participantes do ritual transcendam os limites do próprio corpo. Dito de outro modo, o ritual apela intensamente aos cinco sentidos do corpo (tato, olfato, paladar, audição e visão). A afetação intensa desses sentidos parece pretender nos levar ao sexto sentido: a experiência espiritual, motive e objetivo do ritual sagrado.
Na verdade, o cinema não é capaz de traduzir a variedade sensorial do ritual. Audiovisual, a linguagem do cinema apela somente a dois de nossos sentidos: audição e visão. As experiências em 3D sugerem a possibilidade de um terceiro sentido: o tato. Pois parece que poderíamos tocar o que vemos na tela. O ritual, por outro lado, apela a cada um dos cinco sentidos do corpo, sendo o germe essencial da experiência estética.
Para que conheçamos um pouco mais sobre o cinema de Isael Maxakali, é bom que saibamos o significado de palavras como yãmîy e yãmîyxop. A primeira denomina os entes do panteão indígena, seus espíritos; como a mandioca, animais, cachoeira, ou parentes mortos. A segunda dá nome aos rituais, podendo ser traduzida, grosso modo, como “reunião de espíritos”. Os filmes de Isael Maxakali normalmente focam tais rituais que se realizam para o
yãmîy, palavra que nomeia um de seus filmes. Filmes que se referem a outros elementos do âmbito ritual, como é o caso de “Mîmãnãm: mõgmõka xi xûnîn” (2012). Traduzindo este título, temos: “Pau de religião: gavião e morcego”. O “pau de religião” é um poste sagrado, feito de tronco de árvore, pintado e enfeitado em homenagem ao yãmîy, neste caso, gavião (mõgmõka) e morcego (xûnîn), que é fincado no “terreiro de religião” da aldeia para a realização do ritual. No filme Isael mostra a chegado dos “paus de religião” à aldeia e os rituais que se seguem.
Quando o cinema nasceu, ele era essencialmente documental. Como quer Jean Comolli, em seu livro Ver e poder, a função do filme documentário seria expor a presença das representações coletivas, que são por ele chamadas de “realidades”. O ritual é, portanto, real. E cabe ao documentário apresentar a sua realidade. Nesse sentido, podemos dizer que o cinema indígena é o convite para uma ida ao âmago da realidade ritual do cinema.
The man is the shaman of his meanings (Roy Wagner)