IZABEL DE FÁTIMA CRUZ MELO (BA) Pesquisadora apaixonada que chegou ao cinema pelos caminhos da História. Mestre em História, professora da NEB e pesquisadora associadada Filmograia Baiana.
Tudo começa com um mergulho, uma câmera que vai ao fundo do mar, como quem vai ao fundo da memória, buscando elementos para contar uma história. Neste momento, vemos um assentamento para Exu, e em seguida, somos “pescados” e postos numa cesta … somos o peixe que assim como boa parte das mercadorias, adentra a feira pelo Recôncavo baiano, singrando o mar pela Baía de Todos os Santos.
Água de Meninos e São Joaquim, duas feiras que são uma, posto que suas histórias se misturam. A segunda, assim como uma fênix, nasce das cinzas do incêndio da primeira. Sua presença intrigante e visceral na cidade do Salvador atraiu para si, para suas entranhas sedutoras, cineastas de duas gerações diferentes que ao contar a sua história, falam muito do próprio cinema baiano e da cidade do Salvador. Fabíola Aquino, seguindo a trilha palmilhada por Roberto Pires e Alex Vianny, lançou também o seu olhar sobre a feira, no Água de Meninos: a feira do Cinema Novo, um documentário de 52 minutos no qual acompanhamos a trajetória da feira, suas relações com a cidade do Salvador, seus habitantes e como essa feira foi contada e representada pelo cinema baiano, especificamente n’ A grande feira, filme de Roberto Pires, em 1961 e Sol sobre a lama, de Alex Vianny, em 1963.
O argumento do Água de meninos parte da tentativa de compreender os conflitos existentes na produção do “Sol sobre a lama”, filme realizado sob a direção de Alex Vianny, com a colaboração e financiamento dos feirantes, que insatisfeitos com a A grande feira, queriam, segundo Álvaro Queiróz, “mostrar a realidade da feira”, ainda que num filme de ficção. A partir deste mote, Fabíola monta um caleidoscópio que agrega muitas falas, histórias, emoções e sentimentos que giram em torno das feiras. Elas são as grandes personagens do filme e Antonio Pitanga, o pelintra a nos guiar por tantos caminhos possíveis que se apresentam no serpentear da história, que assim como as feiras têm múltiplos caminhos.
O banner do blog, que é uma reprodução do cartaz de divulgação do filme nos indica alguns dos caminhos que Aquino desejou percorrer na sua narrativa sobre as feiras. Nele temos ao lado esquerdo, três fileiras de colares de contas de cores variadas. Essas colares são usados pelas pessoas que são iniciadas no candomblé, evidenciando a aproximação da feira com essa religião. No fundo, na parte superior, temos o mar – a Baía de Todos os Santos, que através do atracadouro da feira, se constituía como principal entrada para as mercadorias, e nele inscrito o nome do filme e da sua diretora. Abaixo, temos fotos de still d’ A grande feira e Sol sobre a lama, indicando o ponto de partida da diretora, as memórias que envolvem a realização destes filmes e as questões que giram em torno disto. E em primeiro plano temos a figura de Antonio Pitanga, vestido inteiramente de branco, numa posição de quem tanto pode estar andando quanto dançando, movimentos que ele realiza no correr do filme, ao flanar pela feira.
A escolha de Pitanga como narrador-condutor é significativa, posto que ele se relaciona com as feiras como freqüentador durante a infância e juventude e também como ator, cujas personagens participaram dos dois filmes anteriores. A partir dele, do seu caminhar pela feira de São Joaquim, o filme nos apresenta diversos feirantes, ex-feirantes, atores, pesquisadores, freqüentadores que nos contam as suas histórias de vida, nas quais a feira tem bastante centralidade, sendo lugar de ganhar a vida para o sustento da família, para jovens “tomarem tenência”, ou seja, aprenderem um ofício e saírem da “malandragem”.
A feira de Água de meninos nos é apresentada simultaneamente pelas imagens retiradas dos outros filmes, cotejadas com as imagens contemporâneas, da feira de São Joaquim, nos mostrando as diferenças e semelhanças entre as duas. Contudo, as semelhanças são tantas, que elas parecem se plasmar imagéticamente uma na outra. E nesse sentido, ainda que A grande feira e O sol sobre a lama tenham sido filmes alinhados pelas convenções de gênero naquilo que reconhecemos como ficção, as imagens que eles trazem da cidade e da feira de Água de meninos têm uma força documental muito grande, visto que as cenas foram em sua maior parte realizadas na própria feira, nas vielas e barracas que a constituíam e com parte dos atores e quase a totalidade dos figurantes recrutados entre os comerciantes e freqüentadores do local, constituindo na Bahia, junto com outras características, o espaço cinematográfico que do Ciclo Baiano de Cinema, fez germinar o Cinema Novo.
Tudo isso nos é trazido pela memória desses sujeitos, e o marco referencial é geralmente o incêndio de Água de Meninos, ocorrido em 1964, mas que já era prenunciado desde os fins dos anos 50, quando a especulação imobiliária imbuída dos conceitos de modernização e progresso, passou a ver no espaço da feira, às margens da Baía de Todos os Santos, como um local interessante para os seus investimentos. A preocupação com a possibilidade do incêndio era tamanha, que apareceu nos dois filmes, como denúncia de um crime ainda não acontecido.
O olhar de Aquino nos traz a variedade de cores das frutas, verduras, carnes e todos os outros produtos à venda, a intensidade da luminosidade nas águas salgadas que circundam a atual feira de São Joaquim, que se constitui enquanto tal no perene diálogo com a feira de Água de meninos e também com muita intensidade, com continente africano. Nela é possível visualizar, vivenciar diversos aspectos da trajetória diaspórica das populações negras a partir da própria existência e modo de organização e sociabilidade que rege as relações ali estabelecidas, a presença maciça de uma população negra, circulando como consumidora e vendedora dos artigos da feira, e da presença das barracas que vendem todos os artigos necessários para as cerimônias cotidianas e festivas do candomblé, fazendo com que ela seja considerada o “coração da África na Bahia”.
Ao assistir o filme, é possível perceber as infinidades de caminhos possíveis a serem trilhados nesse universo que as feiras siamesas nos proporcionam. Fabíola Aquino escolheu os dela. Junto com ela e Pitanga escolhi os meus, agora cabe a cada leitor, segurar nas mãos deles e construir o seu próprio itinerário. Boa viagem!
REFERÊNCIAS
ÁGUA DE MENINOS A FEIRA DO CINEMA NOVO. Disponível em: htp://aguade- meninosdoc.blogspot.com.br/. Acesso em 04/03/2013
AQUINO, Fabíola. Água de meninos: a feira do Cinema Novo. Doc. Cor. 52’. Salvador: Bahia, 2012.
CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador: BA. EDUFBA, 1999.
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. A Nova Onda Baiana: Cinema na Bahia (1958-1962). Salvador, Eduba, 2003.
FILMOGRAFIA BAIANA. Banco de dados. Disponível em: htp://www.ilmogra- iabaiana.com.br. Acesso em 04/03/2013
NERY, Luna. O negro encena a Bahia. Salvador: Eduba, 2012.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia das Letras, 2001.