LIA TESTA | RS tem se dedicado à produção poética e à produção visual (obras-colagens feitas à mão). É professora de Literatura Portuguesa da UFT/TO. Publicou os livros de poesia Guizos da Carne: Pelos Decibéis do Corpo (Poesia Menor/SP, 2014) e Sanguínea Até os Dentes (Patuá/SP, 2017).
Ilustrações: Rogério Narciso
“A presença de uma veia humorística é um dos sinais de talento natural” (Vladimir Propp, 1992, p. 33)
INTENSIDADE –, que palavra seria melhor para começar um texto que aborda a produção poética de Hilda Hilst? Não vejo outra. Por isso, atenta à fruição da sua poesia e à corrente magnética (que acredito cercar a sua obra), tecerei, mesmo que de modo breve, comentários do livro “Bufólicas”.
Hilda Hilst (Jaú/SP, 1930 – Campinas/SP, 2004), poeta brasileira de tradição lírica, escrevia à mão (depois à Olivetti Lettera), em grande parte sozinha em seu quarto e/ou isolada em seu sítio (localizado a onze quilômetros de Campinas-SP), mantendo certo “distanciamento” das pessoas produziu por mais de quatro décadas. A poeta da “Casa do Sol” (como ficou conhecida a sua casa/ sítio) não se dedicou somente à produção poética, mas também escreveu crônicas, peças de teatro e obras de ficção “notavelmente” (para usar uma expressão próxima a cunhada por Anatol Rosenfeld1).
Ressalto que não adentrarei na sua biografia, pois acredito que tudo que se diz da personalidade/caráter da autora não deva sobressair ao seu projeto literário. Porém, para mim, o que se faz pertinente destacar é que Hilst foi extremamente comprometida ética e esteticamente com a sua obra. Obra, aliás, que, segundo alguns estudiosos e críticos, não se esgotou por completa em suas possibilidades de análise. Em consonância com essa ideia de inesgotabilidade crítica, creio que ainda há um universo hilstiano imenso a se conhecer e a se desvelar.
Ao ler o livro Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst, organizado por Cristiano Diniz (Globo, SP/2013), notei que, reiteradas vezes, a escritora afirma que sua poesia tem “vontade de comunicação”. Se assim for, faço a seguinte pergunta: O que esta “voz” tem a dizer? Em busca de alguma reflexão-resposta lanço-me por alguns dos seus estados poéticos, em especial, aqueles dos ecos da palavra erótica, para perceber/ler suas corporificações prolíficas e profusas.
Reverberações eróticas
A partir da década de 90, a escritora vai optar por outro caminho literário, como ela mesma declarou numa das suas entrevistas “quis abandonar a literatura séria” (segundo a autora, Amavisse (1989), é seu último livro para ser levado a sério). Surge então o caminho do erótico e do pornográfico. Este projeto poético (caminho) parece ter emergido como um tipo de desforra, em virtude da pouca popularidade da sua escrita (pesava sobre Hilda Hilst a acusação de ser hermética). A revanche-estratégia (ou o seu desejo-projeto de ser mais lida/conhecida) funcionou, pois sua produção engendra um contatocontágio muito maior com o público, quiçá, mais “sensibilizado” e seduzido para o seu “novo” estilo de conteúdo / trabalho, constituído, aliás, pela denominada tetralogia obscena: O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’escárnio/textos grotescos (1990), Cartas de um sedutor (1991) e Bufólicas (1992). 1 “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga”, prefácio à primeira edição do livro Fluxo-floema, publicado em 1970.
Assim, o erótico (ou o obsceno) é um amplo campo a ser explorado pela escritora, ela o faz atravessar por diferentes perspectivas literárias, gêneros e contextos. Dentre as obras que fazem parte da tetralogia citada acima, escolhi apresentar impressões-leituras do livro Bufólicas (1992), última obra a compor a tetralogia.
Espalhado pelos (07) sete poemas há um tipo de erotismo que vem integrado à natureza do riso e/ou imbricado às situações absurdas. A começar pelo título Bufólicas, que se projeta como um neologismo carregado de caráter cômico e remete a um duplo signifi cado, primeiro: é uma brincadeira com o gênero culto/clássico pastoril –, as bucólicas; segundo: traz a presença do bufo ou do bufão, um ser, normalmente, identifi cado como grotesco e marginalizado por não condizer com os padrões impostos pela sociedade. Hilst, ao resgatar a fi gura do bufão, acaba por reaproximar-se das manifestações artístico-literárias de origem mais populares e cômicas. Assim, a poeta consegue criar um título bastante chamativo e jocoso. Outra evidência da retomada do cômico-popular está na epígrafe do livro: Ridendo castigat mores (expressão latina que pode ser traduzida como: “rindo se corrige os costumes ou corrige os costumes rindo” (tradução nossa), que é também a tônica presente no teatro popular de Gil Vicente (autor português que recorre ao cômico, as manifestações profanas com intenção crítica e para moralizar os costumes).
Os (07) setes textos que compõem a obra apresentam parodicamente sete “historietas” próximas à fábula (ao término de cada um dos sete poemas aparece como conclusão –, a “moral da história” –, o que remonta à função moral das fábulas). Há ainda (07) sete personagens trazidas dos contos maravilhosos, são as fi guras típicas, a saber: (i) o rei, (ii) a rainha, (iii) a bruxa (“a maga perversa e fria”), (iv) a menina, (v) o anão, (vi) a donzela e (vii) a fada. Porém, essas personagens confi guram-se às avessas, elas servem para desestabilizar as convenções dos personagens dos contos maravilhosos aceitas culturalmente, mas, de maneira paródica, Hilda emprega uma reinterpretação irônica e crítica dessas personagens. Segundo Linda Hutcheon (1991), há nesse tipo de texto uma contestação implícita aos conceitos de originalidade estética e o fechamento do texto “[…] a arte pós-moderna apresenta um novo modelo para a demarcação da fronteira entre a arte e o mundo […], um modelo profundamente comprometido com aquilo a que tenta descrever, e apesar disso ainda é capaz de criticá-lo” (HUTCHEON,1991. P. 43). ssim, verifico que Hilst considera a tradição literária, sendo esta uma fonte inesgotável de diálogos e aproximações. Além disso, as referências paródicas se dão também em termos de gênero, pois a poeta incorpora a mistura de gêneros, as “[…] diferentes combinações de características dos diversos gêneros” (SOARES, 2001, p. 08), e acaba por retomar toda uma tradição no Ocidente, ao mesmo tempo em que passa a revalorizá-la. Essa tendência estética representa ainda uma orientação a possíveis leituras, como também apontam para seus procedimentos de criação ou estético.
Dentre os sete poemas-“historietas”, do livro Bufólicas (1992), escolhi dois para análise. Ouçamos o primeiro poema “O reizinho gay”:
Mudo, pintudão/ O reizinho gay/ Reinava soberano/ Sobre toda nação/ Mas reinava…/ Apenas…/ Pela linda peroba/ Que se lhe adivinha/ Entre as coxas grossas./ Quando os doutos do reino/ Fizeram-lhe perguntas/ Como por exemplo/ Se um rei pintudo/ Teria o direito/ De somente por isso/ Ficaram sempre mudo/ Pela primeira vez/ Mostrou-lhe a bronha/ Sem cerimônia./ Foi um Oh!!! geral/ E desmaios e ais/ E doutos e senhoras/ Despencaram nos braços/ De seus aios./ E de muitos maridos/ Sabichões e bispos/ Escapou-se um grito./ Daí em diante/ Sempre que a multidão/ Se mostrava odiosa/ Com a falta de palavras/ Do chefe da Nação/ O reizinho gay/ Aparecia indômito/ Na rampa ou na sacada/ Com a bronha na mão./ E eram os agudos/ Dissidentes mudos/ Que se ajoelhavam/ Diante do mistério/ Desse régio falo/ Que de tão gigante/ Parecia etéreo./ E foi assim que o reino/ Embasbacado, mudo/ Aquietou-se sonhando/ Com seu rei pintudo./ Mas um dia… Acabou-se da turba a fantasia./ O reizinho gritou/ Na rampa e na sacada/ Ao meio-dia:/ Ando cansado/ De exibir meu mastruço/ Pra quem nem é russo./ E quero sem demora/ Um buraco negro/ Pra raspar meu ganso./ Quero um cu cabeludo!/ E foi assim/ Que o reino inteiro/ Sucumbiu de susto./ Diante de tal evento…/ Desse reino perdido/ Na memória dos tempos/ Só restaram cinzas/ Levadas pelo vento./ Moral da estória:/ a palavra é necessária/ diante do absurdo. (HILST, 2017, p. 493-495)
De imediato salta aos nossos ouvidos/olhos a “historieta” do poema, fazendo pulsar uma deliciosa licenciosidade. O inusitado da atitude do Rei (que poderia ser considerada absurda, uma vez que, não se espera de um rei ou de um chefe da nação comportamentos sociais de devassidão e/ou que rompam com ideais moralmente elevados para a sociedade) pode representar uma transgressão à ordem social e política. Além disso, seus gestos (atos) podem evidenciar uma hilaridade de situação estimuladora do riso, ademais, potencializada pelo tom paródico conferido por Hilst.
A poeta, criando habilidosos jogos de imagens (fanopéia) e um estratégico jogo de rimas, vai valorizando euforicamente os “desvios” do Rei. Nota-se também, no campo semântico, que existem (08) oito termos para designar o órgão sexual masculino, indício de uma supervalorização deste órgão. Além disso, quando o falo régio é chamado de “ganso”, surge uma correlação física (animal-homem), o que pode ter sentido alegórico, humorístico e satírico. Lembro ainda o que afirma Vladimir Propp (1992, p.69): “O animal desempenha um papel especial nas fábulas e nos contos maravilhosos populares”. Não seria assim também no poema de Hilst?
Ainda o “régio falo” era tão gigante que “Parecia etéreo” (a figura de linguagem de comparação provoca o riso), seria este onipresente, “algo” sagrado “etéreo”? O que dizer então em relação ao monarca que reinava: “Mas reinava…/ APENAS/ Pela linda peroba”. O uso deste advérbio de exclusão “APENAS” (termo que aparece grafado em caixa alta no poema) acaba por apontar um lado cômico, pois não se espera “convencionalmente” que um rei governe seu povo, em função deste atributo. A comicidade também fica nos “não-ditos” do texto.
Pela trajetória do Rei, no poema chego a seguinte ideia: que a mudez também era uma linguagem potencialmente expressiva. Porém, quando o Rei dá seu “grito” (implícito de desejo), profere seu discurso-vontade, o reino (a coletividade), “de susto” sofre uma derrocada e “sucumbe”. Haveria algo de tragicômico nessa situação? Qual é a “Moral da estória”: a palavra é necessária/ diante do absurdo. Mas o que isso quer dizer?
A palavra (a linguagem), como uma modalidade racional e organizadora do mundo, é capaz de mascarar o ilógico, o a-racional, mas também de conter as ações mais absurdas. Assim, vivemos todos nós sob a égide de Apolo (da claridade e da racionalidade), e tentando retirar os vestígios dionisíacos do mundo. Contudo, o que é a vida per si senão o absurdo da existência?! Para que e para quem serve a palavra no mundo? Encerro esta breve análise sem pretensões de concluir nada, apenas destaco o fato de que a “palavra” implica contextos ideológicos e políticos. Por isso, seria ela uma força/forca.
O segundo poema intitula-se “A chapéu”. Vejamos o que ele diz:
Leocádia era sábia. / Sua neta “Chapéu”/ De vermelho só tinha a gruta/ E um certo mel na língua suja./ Sai bruaca/ Da tua toca imunda! (dizia-lhe a neta)/ Aí vem Lobão!/ Prepara-lhe confeitos/ Carnes, esqueletos/ Pois bem sabes/ Que a bichona peluda/ É nosso ganha-pão./ A velha Leocádia estremunhada/ Respondia à neta:/ Ando cansada de ser explorada/ Pois da última vez/ Lobão deu pra três/ E eu não recebi o meu quinhão!/ E tu, e tu, Chapéu, minha nega/ Não fazendo nada/ Com essa choca preta./ Preta de choca, nona,/ Mas irmã do capeta./ Lobão: Que discussões estéreis/ Que azáfama de línguas!/ A manhã está clara e tão bonita!/ Voejam andorinhas/ Não vedes?/ Tragam-me carnes, cordeiros,/ Salsas verdes./ E por que tens, ó velha,/ Os dentes agrandados?/ Pareces de mim um arremedo!/ Às vezes te miro/ E sinto que tens um nabo/ Perfeito pro meu buraco./ AAAAIII! Grita Chapéu./ Num átimo percebo tudo! Enganaram-me! Vó Leocádia/ E Lobão/ Fornicam desde sempre/ Atrás do meu fogão!/ Moral da estória:/ um id oculto mascara o seu produto. (HILST, 2017, p. 498-499)
Estamos diante de um texto que vai parodiando a história de “Chapeuzinho Vermelho” (Charles Perrault/Irmãos Grimm), que tem personagens comumente conhecidos por todos nós, quais sejam: a menina, a avó e o lobo. No texto de Hilst aponto para os “travestimentos” dos (03) três personagens, evidenciados por lances de comicidade, mas com pitadas de “reveses” também.
Parodiar de algum modo a fábula de “Chapeuzinho Vermelho”, aqui, no Brasil, não é algo completamente novo, muitos outros artistas/ escritores o fizeram também, a exemplo da canção “Lobo Bobo” (lançada em 1959)”, que é uma versão “contada” bastante maliciosa e espirituosa, composta em 1957, por Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, gravada por João Gilberto, Wilson Simonal, Leila Pinheiro, só para citar alguns. Mas, voltando ao texto em questão, primeiro, a avó “Leocádia” (aliás, por curiosidade é um nome homônimo a uma das personagens da obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo), é evocada como uma velha sábia “estremunhada” (mas, nem tanto, suponho), com seus dentes grandes (já indiciando uma inversão no papel da velhinha passiva e a mercê do lobo), acaba por enganar a neta, assim como o faz Lobão (que parece querer vida boa, boa comida e explorar as duas mulheres). Chapéu, por sua vez, é a neta que tem a “bichona peluda”, e a avó faz dela o seu “ganhapão”. Chapéu mostra-se insubmissa, ela “grita” quando descobre a “malandragem” da avó, pois a avó e o seu Lobão tinham um caso, fantasias?!
Moral da estória: um id oculto mascara o seu produto. Contudo, o que isso pode significar? Talvez, a falta de percepção do “poder” que a “choca” de Chapéu tinha “E tu, e tu, Chapéu,
minha nega/ Não fazendo nada/ Com essa choca preta./ Preta de choca, nona/ Mas irmã do capeta. […]”. Enquanto a “bruaca” (como a neta a chamava) parece ter plena consciência dos seus “dentes agrandados”, tal qual “Lobão” (que também tem estes recursos de “trapaça” e de dissimulações), há neles (avó e Lobão) um cinismo perante a vida e a ordem das coisas, como diz Georges Bataille “Basta para tanto roubar, matar se preciso, preguiçosamente, conservar sua vida poupando suas forças, em todo caso, viver às custas de outrem.” (Idem Ibidem, p. 269).
Para Bataille, a obscenidade é também uma forma acentuada e significativa de erotismo que, por sua vez, tem uma intensidade extrema. Assim, diante das Bufólicas estamos também diante de possíveis obscenidades e/ ou de erotismos na medida da linguagem, animados por diferentes personagens e operações poéticas, como a da paródia, que podem perturbar os sentidos mais óbvios. De toda maneira, ficamos em último sentido, fundidos a uma ordem positiva, a uma manifestação da alegria de viver, a uma pletora mobilizadora de energias, de prazer e riso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
DINIZ, Cristiano (Org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013.
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo, 1992.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. 6. ed. São Paulo: Ática, 2001.