.O horror não-horrível do cinema udigrúdi

| |

CARLOS PRIMATI | SP É jornalista, tradutor, crítico e pesquisador de cinema, dedicando-se especificamente ao estudo dos filmes fantásticos brasileiros em todos os períodos, ciclos e movimentos.


Sganzerla: “Julio, o que seria o horror?”
Bressane: “Eu sei que o horror… não está no horror.”
Sganzerla: “A gente usa o horror contra o horror.”
Bressane: “Eu digo de novo: O horror não está no horror!”
Sganzerla: “É por isso que eles são horrorosos e nós somos ótimos!”

O diálogo acima, entre os cineastas Rogério Sganzerla e Julio Bressane, faz parte do documentário Horror Palace Hotel; ou, O Gênio Total, filmado em Super-8 pelo crítico e cineasta paulistano Jairo Ferreira e pelo próprio Sganzerla, durante o XI Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em julho de 1978. O filme, um registro de quarenta minutos com depoimentos de artistas e teóricos que estavam na capital federal em ocasião do festival – com destaque para o crítico e ensaísta Francisco Luiz de Almeida Salles, presidente da Cinemateca Brasileira – propôs a primeira discussão relevante sobre o caráter do horror no cinema brasileiro: um manifesto de um cinema inventivo, contestador, desagradável e malcomportado, que não se alinhasse ao comodismo e aos filmes ‘horrorosos’ que o cinema brasileiro oficial vinha oferecendo no final dos anos setenta. “O cinema brasileiro está tão ruim que só pode melhorar; porque pior, impossível”, sentencia Sganzerla.

Horror Palace Hotel é também um documento fílmico da 1ª Mostra do Horror Nacional, evento paralelo (e não oficial) do Festival de Brasília, realizado em caráter de protesto contra a direção do festival. Depois de terem seus filmes recusados pela curadoria do evento, Sganzerla e Bressane se uniram a outros realizadores – José Mojica Marins, Elyseu Visconti Cavalleiro, Fernando Coni Campos e Ivan Cardoso – e criaram a mostra, organizada pelo Clube de Imprensa do Sindicato dos Jornalistas, com apoio da Fundação Cultural do Distrito Federal e colaboração do jornal Correio Braziliense, que publicou um suplemento especial de oito páginas sobre horror com textos ideológicos dos artistas envolvidos.

Reconhecidamente alguns dos nomes mais cultos do nosso cinema – e, mesmo assim, paradoxalmente contrários à intelectualização da arte brasileira –, Sganzerla, Bressane e amigos perceberam o poder contestador do horror como gênero e o debateram como um meio para provocar. Uma discussão há muito adiada: diversos filmes exibidos na mostra (banidos pela censura e inéditos comercialmente) haviam sido feitos entre 1969 e 1971, quase dez anos antes. O próprio movimento que eles representavam – o udigrúdi (corruptela de undergound, ou ‘subterrâneo’, em inglês) – havia desaparecido há anos. Mesmo assim, era uma discussão necessária: nunca houve uma 2º Mostra do Horror Nacional; o debate se perdeu e o cinema brasileiro seguiu seu rumo, para o bem ou para o mal. Não mais se pensou na contribuição desses diretores na representação dos gêneros cinematográficos – neste caso, o horror – na filmografia brasileira. Mas para se compreender a extensão do que é, foi e pode ser o horror no cinema nacional, é necessário enxergar além do óbvio.

ZÉ DO CAIXÃO: O INÍCIO DO NADA OU O FIM DO TUDO?

O filme brasileiro de horror nasceu efetivamente com o lançamento de À Meia-Noite Levarei Sua Alma, em 1964, escrito, dirigido e estrelado por José Mojica Marins, apresentando o personagem Zé do Caixão, o monstro mais emblemático da nossa filmografia e um ícone de impacto mundial – o qual logo depois retornou em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de 1967. Recebido com adjetivos que iam de ‘gênio’ a ‘débil-mental’ por crítica e público, e também por colegas cineastas, Mojica encontrou defensores (e discípulos) principalmente entre aqueles que ansiavam por um caminho mais inquieto e desafiador no cinema brasileiro. Foi adotado por um grupo de realizadores iniciantes do Rio de Janeiro: Julio Bressane e Rogério Sganzerla, principalmente, mas também Iberê Cavalcanti – cuja inspiração para fazer a comédia de terror Um Sonho de Vampiros, de 1969, teria vindo “de uma inopinada alucinação mojiquiana” – e outros realizadores.

Leia também:  César Moro: A divina tartaruga que ascende.

Essa geração carioca, que começou a fazer cinema depois da metade dos anos sessenta, teve sua educação cinéfila impactada pela Nouvelle Vague francesa surgida no início daquela década – Resnais, Godard, Truffaut – e seu experimentalismo com a forma e a linguagem narrativa. Ao mesmo tempo, enxergava em Zé do Caixão um símbolo agressivo, instigante e acima de tudo sincero, que ia na contramão do intelectualizado Cinema Novo e sua busca pela relevância cultural. A afinidade do udigrúdi com o cinema primitivo, violento e blasfemo de Mojica – no qual se identificam os problemas do típico brasileiro recalcado, na figura do anti-herói trágico Zé do Caixão – levou seus seguidores cariocas a inserir elementos de horror em suas obras experimentais, aliadas a referências às antigas chanchadas e um subversivo rompimento com o bom-mocismo.

A própria grandeza de Zé do Caixão no horror nacional ofusca a discussão em torno de outras contribuições para o gênero no país. Um debate que até bem pouco tempo atrás era desprezado, a representação do horror no cinema nacional nos últimos anos tem sido resgatada do esquecimento, e dentro desse escopo é imperativo reconhecer o papel dos filmes experimentais que elevaram (ou devolveram) o horror a um patamar mais filosófico, questionador e de enfrentamento.

Ainda hoje – muito mais de um século depois do pioneiro francês Georges Méliès usar as fotografias em movimento para transformar a fantasmagoria no cinema fantástico – o horror nas telas desafia definições e segue quebrando regras, e isso se deve muito ao fato de ser um gênero vivo e pulsante, em permanente transformação e que não resiste ao comodismo. Muito pelo contrário; algumas das maiores contribuições ao horror vieram de cineastas mais preocupados em experimentar a linguagem do que em criar sustos: Hitchcock, Bergman, Fellini, Polanski, Argento, Kubrick, Zulawski, Lynch, Haneke, von Trier. É a esta categoria que pertencem os cineastas-inventores do movimento udigrúdi.

O QUE A CIVILIZAÇÃO CHAMA DE INUMANO

Julio Bressane, nascido em 1946, estreou na direção com pouco mais de vinte anos, com Cara a Cara, lançado em 1968, um drama existencial com nuances expressionistas, de narrativa lenta e introspectiva, que nos minutos finais explode em violência e cruéis cenas de assassinato. O longa traz as marcas do que seria o cinema de Bressane pelos próximos anos: planos demorados e poucos diálogos, abordando temas como a solidão, o desespero, o descontrole, o caos e a loucura que inevitavelmente leva à violência e à morte. O Anjo Nasceu e Matou a Família e Foi ao Cinema, ambos filmados em 1969, colocam essa violência e crueldade no centro da ação, retratando uma série de mortes cometidas durante surtos repentinos de agressividade e demência. O assassinato é um ato de libertação no cinema de Bressane: o criminoso que delira e acredita se purificar a cada homicídio que comete em O Anjo Nasceu; o filho que degola os pais odiosos, as amantes lésbicas que estrangulam a mãe opressora e o pacto suicida das duas amigas em Matou a Família. O humor negro debochado e um senso de ridículo são acrescentados ao coquetel de estilos em Barão Olavo, o Horrível e Cuidado Madame, ambos de 1970 e os primeiros do diretor filmados em cores. O conflito de classes entre patroas e empregadas resulta em uma sucessão de mortes sangrentas em Cuidado Madame, nas perambulações da revoltada doméstica Cremilda (Maria Gladys). Primeiro filme de Bressane assumidamente de horror, Barão Olavo acompanha as desventuras do terrível e decadente Barão (Rodolfo Arena, com capa, boina e guarda-chuva), que viola túmulos de um cemitério próximo para saciar seu desejo necrófilo. A relação agressiva, demente e surreal de Helena Ignez, Guará Rodrigues e Kléber Santos fazem de A Família do Barulho, também de 1970, uma das obras essenciais de Julio Bressane. Comédia experimental, flerta com o horror na concepção bizarra do trio central e em imagens absurdas como a criança que finge serrar outra ao meio, terminando com a icônica imagem de Helena Ignez olhando fixamente para a câmera e vomitando sangue.

Leia também:  Margear os Limites do Impossível

Perseguido pela Censura e impossibilitado de lançar seus filmes, Bressane partiu para um exílio voluntário na Inglaterra, onde realizou, em 1971, dois de seus mais instigantes – e raros – estudos sobre violência e terror: Memoirs of a Strangler of Blondes (Memórias de um Estrangulador de Louras) e Crazy Love (Amor Louco), ambos estrelados por Guará. Memórias é sobre um homem solitário que perambula pelas ruas de Londres e estrangula impulsivamente jovens louras que ele encontra ao acaso sentadas nos bancos de um parque. O assassino, agoniado e demente (“Nós somos o que a civilização chama de inumano”), repete sempre o mesmo gestual antes de cada crime: esfrega a barba, alisa o cabelo e retorce o bigode, e então estrangula a vítima. Experimental, sem diálogos, com planos longos e câmera fixa, reflete sobre os clichês dos filmes de horror e suspense. Amor Louco, também silencioso, é sobre uma paixão não correspondida que leva à loucura, aproximando-se do terror na angústia expressionista de Guará, cada vez mais insano, como na cena aflitiva na qual sangra o próprio olho com uma navalha. Quando voltou ao Brasil, pouco depois, Bressane se enveredou por outros temas, explorando principalmente a literatura nas telas, mas continuou fazendo referências pontuais ao imaginário do horror em filmes como O Rei do Baralho, A Agonia, O Gigante da América e A Erva do Rato.

Rogério Sganzerla, também nascido em 1946 e sócio de Bressane na produtora independente Belair – que realizou seis longas-metragens de baixo orçamento em apenas seis meses, em 1970 – praticava um cinema mais caótico e descompromissado, propondo uma completa ruptura com os modelos, filmando com câmera na mão e misturando radicalmente estilos e linguagens: ele dizia que seu longa de estreia, O Bandido da Luz Vermelha, de 1968, combinava elementos do filme policial, faroeste e ficção científica. O horror surge de maneira mais casual e decorativa nos filmes subversivos de Sganzerla, como o ‘fantasma’ que persegue Helena Ignez pelas calçadas do Rio de Janeiro em Copacabana Mon Amour, ou a cerimônia de quimbanda proposta por Jorge Loredo (Zé Bonitinho) em Sem Essa, Aranha, ambos de 1970. Sganzerla e Bressane assumiam uma admiração por José Mojica Marins que beirava o endeusamento: no caso de Bressane, pela identificação por temas como loucura e violência descontrolada; para Sganzerla, o descompromisso com a gramática cinematográfica e um cinema feito para incomodar. A colaboração entre mestre e pupilo aconteceu no longa Abismu, de 1978, dirigido por Sganzerla – recusado pelo Festival de Brasília e exibido na Mostra do Horror Nacional – e com participação de Mojica no elenco, ao lado de Wilson Grey e Norma Bengell.

O cinema udigrúdi rendeu outras grandes obras de horror durante seu curto período de existência. Elyseu Visconti Cavalleiro flertou com o gênero em seus dois únicos longas: Os Monstros de Babaloo, de 1970, é um bizarro e absurdo tratado teratológico, com uma galeria de tipos exóticos que inclui Wilza Carla e Zezé Macedo; o tropicalista O Lobisomem, o Terror da Meia Noite, de 1971, traz o malandro Wilson Grey como um homem excêntrico – com nuances de Nosferatu e Drácula – que vive recluso em seu chalé na floresta e supostamente transforma-se em lobisomem em noites de sexta-feira. O ex-crítico de cinema Carlos Frederico na mesma época fez o provocante A Possuída dos Mil Demônios, de 1970, com Isabella Cerqueira Campos como uma mulher pobre, atormentada por delírios, que é possuída por forças desconhecidas e torna-se tarada e agressiva – a Possessa de Jacarepaguá –, apavorando a sociedade conservadora ao encarnar todos os temores da pequena burguesia.

Leia também:  Ida Gramcko: a lembrança antes da experiência.

Também integrante do movimento experimental carioca, Ivan Cardoso, nascido em 1952, era o caçula desse grupo. Foi assistente de direção de Sganzerla e Bressane e realizou, ainda muito jovem, alguns dos filmes mais impactantes do Super-8 nacional. Nosferato no Brasil, de 1971, tem o poeta piauiense Torquato Neto no papel impagável do vampiro que sai da Transilvânia para curtir as praias do Rio de Janeiro, beber água de coco e atacar moças de biquíni. “Onde se vê dia, veja-se noite”, foi a saída encontrada por Ivan para explicar a filmagem diurna da criatura das trevas. Em seguida o diretor fez Sentença de Deus, de 1972, um filme mórbido, violento e extremamente bem fotografado. Na década seguinte, Ivan Cardoso se tornaria um nome referencial do horror brasileiro ao combinar a irreverência do udigrúdi com erotismo, chanchada e inspiração nos antigos filmes de monstro dos estúdios Universal e Hammer, resultando no ‘terrir’, o terror com riso. O Segredo da Múmia (1982), As Sete Vampiras (1986) e O Escorpião Escarlate (1993), os primeiros longas de Ivan colocando em prática esta fórmula, foram um sucesso estrondoso e transformaram o pupilo de Zé do Caixão no segundo cineasta mais popular do gênero no país.


UM HORROR ALTAMENTE POÉTICO

Um cinema pouquíssimo visto na época em que foi feito, restrito ao circuito de cineclubes (como a Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro) por seu caráter anti-comercial e por sofrer perseguição da censura, o impacto do udigrúdi se faz sentir na produção independente dos últimos dez ou quinze anos, no cinema transgressor dos catarinenses Petter Baiestorf, Gurcius Gewdner e dos curta-metragistas Marco Martins e Loli Menezes, no experimentalismo surrealista e marginal de Christian Saghaard (Demônios, O Fim da Picada) e André Sampaio (Strovengah), no plano com Valentina Herszage vomitando sangue em Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira, em citação explícita a Helena Ignez em A Família do Barulho. O resgate do cinema de invenção que Jairo Ferreira tanto enaltecia, a estética experimental que tem recolocado o horror brasileiro em sua busca por uma identidade própria, distante do convencional. Um retorno que o próprio Jairo profetizou ao escrever sobre a Mostra do Horror Nacional de 1978, e quarenta anos depois dá sinais de que está se concretizando: “O cinema nacional só deixa patente sua autenticidade quando foge a esse esquema pré-fabricado para consumo rasteiro, e seu representante neste festival é o horror: filmes de Mojica Marins, Ivan Cardoso, Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Elyseu Visconti e Fernando Coni Campos, um horror altamente poético que foi marginalizado, mas será redescoberto num futuro que parece já ter começado.”

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!