MARCELO IKEDA (RJ) é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A “retomada” do cinema brasileiro e as leis de incentivo.
Neste ano de 2015, completam-se vinte anos da chamada “retomada do cinema brasileiro”. O marco inicial do período é considerado o inesperado sucesso de público de Carlota Joaquina. Parece, portanto, ser um momento oportuno para uma espécie de balanço das oportunidades enfrentadas pelo cinema brasileiro nesse período e dos desafios que surgem para os próximos vinte anos.
É preciso lembrar que, no início dos anos noventa, o cinema bra-sileiro passou por uma abrupta descontinuidade. O presidente Collor provocou mudanças radicais na economia do país, guiadas por um ideário de base neoliberal, com uma forte reestruturação do Estado, iniciando um agudo movimento de privatizações. No campo da cultura, o impacto foi imediato: o Ministério da Cultura foi transformado numa simples secretaria de governo. Através de um único decreto, as principais instituições públicas responsáveis pelo apoio ao cinema brasileiro foram extintas. As repercussões foram fulminantes: sem o apoio estatal, o mercado cinematográfico brasileiro foi completamente dominado pelo produto hegemônico estrangeiro. Em 1991 e em 1992, a participação do cinema brasileiro no mercado interno foi inferior a 1%.
Após o impeachment do presidente Collor, houve o restabelecimento de uma política estatal de promoção à atividade cinematográfica. No entanto, diferentemente do período anterior, nos anos setenta e oitenta, em que um forte órgão estatal – a Embrafilme S.A. – atuava diretamente no mercado cinematográfico, produzindo e distribuindo os filmes brasileiros, em meados dos anos noventa o modelo de intervenção estatal se baseou no fomento indireto, com uma partilha de responsabilidades entre o Estado e o mercado. Com isso, desenvolveu-se uma política de incentivos fiscais, em que os projetos audiovisuais passaram a ser realizados a partir do aporte de recursos de pessoas físicas ou jurídicas, que abatem parcial ou integralmente esses recursos em suas respectivas declarações de imposto de renda. A Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91) e a Lei do Audiovisual (Lei nº 8.385/93), com seus diversos aprimoramentos e alguns mecanismos de incentivo complementares, tornaram-se a base do apoio público à produção cinematográfica brasileira. Os pressupostos desse modelo eram de base industrialista, prevendo a aproximação das empresas produtoras brasileiros com investidores privados, estimulando a competitividade de obras que visavam primordialmente as bilheterias.
Os motivos para que essa política não alcançasse plenamente seus resultados desejados são complexos, e fogem ao alcance deste texto. O que procuro aqui apontar é que na última década do século passado, o cinema brasileiro ainda pemanecia sob o processo da “retomada”, assombrado pelos atos do Governo Collor, que continuavam a pairar pela classe cinematográfica como um verdadeiro fantasma. Era como se cada obra brasileira carregasse consigo o fardo da comprovação da necessidade de sobrevivência de todo um cinema brasileiro. Além disso, com esse modelo de financiamento, eram naturalmente privilegiadas obras que tivessem uma maior expectativa de retorno comercial, favorecendo o processo de captação de recursos, despertando o interesse dos gerentes de marketing das empresas privadas, que viam no aporte de recursos uma oportunidade de exposição de suas marcas.
Dessa forma, os caminhos para que um cineasta estreante pudesse realizar seu primeiro longa-metragem eram bastante restritos. A captação de recursos para projetos com pouco apelo comercial era naturalmente lenta, e ainda mais difícil por se tratar de realizadores estreantes. Esse processo fez com que diversos realizadores extremamente talentosos demorassem mais de dez anos para que pudessem finalmente realizar seu primeiro longa-metragem, mesmo com diversos prêmios como curta-metragistas no currículo. Entre outros, podemos citar nesse contexto realizadores como Gustavo Spolidoro, Paulo Halm, Eduardo Nunes, Camilo Cavalcante, Kleber Mendonça Filho. A maior parte desses realizadores apenas conseguiu realizar seu primeiro longa através de um edital específico do Ministério da Cultura, direcionado a filmes de baixo orçamento.
Ou seja, através de um edital que envolvia recursos diretos do ministério, e não a captação de recursos através das leis de incentivo fiscal. Mas como esse edital premiava apenas cinco projetos por edição, que não se realizava anualmente, era enorme a demanda de projetos por esses recursos naturalmente escassos. Ou seja, de um lado as leis de incentivo fiscal foram responsáveis pelo chamado processo de “retomada do cinema brasileiro”, recobrando a produção cinematográfica nacional do “coma induzido” pelo Governo Collor. Através desse modelo de financiamento, foram produzidas obras seminais como Central do Brasil (Walter Salles), Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund), Carandiru (Hector Babenco) e Tropa de Elite (José Padilha), que, entre outros filmes, projetaram o cinema brasileiro no exterior, através de sua participação em festivais internacionais de prestígio como o de Cannes ou Berlim. No entanto, por outro lado, as leis de incentivo não conseguiam viabilizar um conjunto de projetos mais radicais, que não atraíam nem o interesse de investidores privados nem se enquadravam no perfil dos editais públicos. Jovens realizadores com projetos mais arriscados não conseguiam se inserir na política oficial de financiamento.
O novo século: outros modos de produção e de difusão do audiovisual
No início do novo século, esse cenário apresentou paulatinamente algumas alternativas, apontando para a possibilidade de um outro modelo de produção, alternativo ao financiamento público. Essas alternativas estão diretamente relacionadas à difusão da tecnologia digital. A ampla disseminação do digital possibilitou não somente novos paradigmas para a produção de novas obras, mas também para a difusão das mesmas. Nesse sentido, é importante observar como esse novo caminho pode ser visto numa complementaridade entre dois pontos: uma nova forma de produção e novas possibilidades de difusão.
Quanto à produção, o digital permitiu a realização de obras em vídeo mais baratas e com produção mais ágil. Ou seja, além de permitir a realização de obras sem a necessidade de estruturar um projeto para participar de editais públicos, o vídeo permitiu que os filmes pudessem ser produzidos mediante um outro arranjo de produção. Tornava-se possível, por exemplo, realizar um vídeo sem funções técnicas definidas, ou ainda, que todo o processo fosse mais flexível. Com o vídeo, o financiamento público passou a ser uma possibilidade, mas não a única alternativa para a produção de filmes no país.
O abismo entre o amador e o profissional havia consideravelmente se reduzido. Cada vez mais, tornava-se possível realizar um bom filme com meios praticamente amadores. No entanto, esses videos produzidos não conseguiam ser exibidos nos festivais de cinema do Brasil, que, no início deste século, ainda privilegiavam obras em 35mm. Estas, para serem produzidas, eram muito custosas, dependendo, portanto, dos editais publicos para sua realização. Isso configurava um circuito de produção e circulação: obras em 35mm que circulavam nos festivais, e que, para poderem existir, precisavam ganhar editais, ou seja, obras pré-formatadas. Não é que essa configuração também não tenha gerado grandes curtas e apontado para grandes realizadores, mas tornava mais restritas as possibilidades de expressão audiovisual. Do mesmo modo, para chegar ao seu primeiro longa-metragem, era preciso que o realizador tivesse formado um “currículo”, ganhando diversos prêmios com seu curta 35mm nos principais festivais de cinema do país, conquistado a simpatia de uma empresa produtora, para que inscrevesse seu projeto de longa nos poucos editais federais que abriam possibilidades para estreantes.
Ou seja, uma transformação da tecnologia (ou da técnica) despertava novas possibilidades, mostrando um novo modo de produção, abandonando a dependência de um certo modelo de financiamento, e apontando a necessidade de uma nova forma de circulação dessas obras. O circuito fechado começava a se abrir, a se ampliar para novas perspectivas. Uma série de videos – baratos, radicais, marginais – começava a ser produzido nos cinco cantos do país, mas não conseguia circular. Não é à toa que nesse momento houve uma profusão da criação de cineclubes.
Nesse período, no Rio de Janeiro, um dos mais importantes cineclubes pioneiros foi a mostra “o que neguinho tá fazendo”, realizado na Fundição Progresso, na Lapa, que começou em 1999. O cineclube era essencialmente um ponto de encontro dessa nova geração, que trocava ideias, fumaças, afetos, exibiam seus filmes e pensamentos, e conhecia outras pessoas para juntos realizarem novos projetos. Ou seja, os cineclubes geravam encontros, que geraram trocas, racionais e sentimentais, que geraram mais filmes, e mais encontros e mais trocas, de modo que esse circuito foi ganhando uma força inesperada, que crescia de forma orgânica.
Surgia uma curiosidade em tocar os limites de algo que não se sabia muito bem o que era, mas surgia essencialmente de uma insatisfação diante de um embolorado rumo das coisas e de uma necessidade de colocar para fora uma nova visão de mundo: por isso, eram filmes confusos, estranhos, de descoberta, que misturavam bitolas (do Super-8 ao VHS) e referências (do pop ao punk, da vida das ruas ao “intelectualismo acadêmico”, de Debord ao sexo explícito da Boca), num grande caldo de raiva e desejo, insatisfação e maravilhamento. Essa era a forma política possível de uma geração mostrar a sua cara, uma forma política diferente dos debates da “identidade cultural de um país” lá dos anos sessenta, mas, no início deste novo século, parecia ser a forma possível de falar do mundo. Um olhar precário, confuso, difuso, entediado, mas de alguma forma era um olhar que mostrava uma pulsão diante das novas possibilidades de encontro que o audiovisual vinha possibilitando.
Nesse contexto, surgiu a Mostra do Filme Livre, no Centro Cultural Banco do Brasil, em janeiro de 2002. Foi a primeira mostra de audiovisual, com funcionamento e estrutura regulares, que deu espaço a essa produção radicalmente independente, exibindo, na mesma sessão, filmes de diferentes bitolas. A Mostra do Filme Livre ofereceu um espaço para as novas obras audiovisuais que eram produzidas nesse novo contexto e que não conseguiam abrigo nos festivais de cinema do país, ainda voltados para uma outra lógica de circulação, os “grandes e importantes curtas com uma estrutura de produção”. Esses festivais, com uma lógica mais tradicional, carregaram consigo o longínquo fardo da necessidade de corroboração de um processo de “retomada do cinema brasileiro” que, mesmo com todas as iniciativas governamentais, centradas nas leis de incentivo, continuava patinando na necessidade de ocupação de um mercado dominado pelo produto hegemônico estrangeiro. Por isso, caíam na doce ilusão de tentar mostrar que o cinema nacional era “forte” e “bem feito”. Ao longos dos anos, o circuito dos festivais foi amadurecendo, contribuindo decisivamente para um maior debate crítico, conferindo visibilidade a essa produção. Entre outros, podemos citar a Mostra de Cinema de Tiradentes (MG), o CineEsquemaNovo (RS), o Janela de Cinema (PE), a Semana dos Realizadores (RJ), o Panorama Coisa de Cinema (BA) e o Olhar de Cinema (PR).
Estava se desenvolvendo um outro cinema que acreditava na precariedade como potência e via no processo, e não necessariamente no produto final, um dos pontos-chave de uma nova forma de produção, menos hierarquizada e mais flexível, dialogando com o documentário e com a videoarte, que via uma relação de cumplicidade entre o cinema e o mundo, entre a criação e a vida. Ao longo desse novo século, essa geração “tomou corpo”, fortaleceu-se, diversificou seu processo criativo, amadureceu, de modo que hoje é possível afirmar que constitui uma nova cena, ou ainda, uma nova geração. Dos primeiros curtas-metragens em vídeo, foi crescendo a certeza de que também era possível fazer longas-metragens com o mesmo espírito criativo, com o mesmo modo de produção. O tabu do “primeiro longa” foi reduzido: nos últimos anos, um conjunto de longas-metragens foi produzido ou sem nenhuma grana estatal ou com orçamentos menores que R$200 mil.
Entre eles podemos citar: Estrada Para Ythaca (Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti, e Pedro Diógenes), A Fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande), Meu Nome é Dindi (Bruno Safadi), Sábado à Noite (Ivo Lopes Araújo), Pacific (Marcelo Pedroso), Acidente (Pablo Lobato e Cao Guimarães), Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa (Gabriel Mascaro), A Casa de Sandro e Chantal Akerman, de Cá (Gustavo Beck), O céu sobre os ombros (Sérgio Borges), Pingo d´água (Taciano Valério), Aquilo que fizemos com as nossas desgraças (Arthur Tuoto), Batguano (Tavinho Teixeira), entre tantos outros, com grande repercussão crítica nacional e com participação em grandes festivais internacionais, como Locarno e Rotterdam.
Com modos de produção mais flexíveis, com orçamentos mais baratos, fugindo dos modelos tradicionais de organização e captação típicos do “cinema da retomada”, é possível comprovar o amadurecimento de uma jovem geração do cinema brasileiro nos últimos dez anos. Filmes de todos os tipos estão sendo realizados em praticamente todos os estados do país. O hibridismo entre bitolas, formatos, gêneros é uma característica dessa geração. A exploração das fronteiras entre o documentário e a ficção, ou ainda, o entrecruzamento entre diferentes campos artísticos, como o teatro, a dança, a performance e as artes visuais comprovam o desejo de investigar, relativizar ou expandir as fronteiras e as prévias demarcações.
São muitos os desafios para a expansão dessas produções. Esses filmes ainda perma-necem pouco vistos, restritos muitas vezes ao circuito dos festivais. As possibilidades das redes sociais e das plataformas de vídeo na internet ainda permanecem na grande maioria do caso ainda muito pouco exploradas. No entanto, o cenário é muito mais promissor que há vinte anos, no sentido de que hoje temos um cinema brasileiro mais plural, com mais alternativas para quem deseja se iniciar numa produção audiovisual.
De outro lado, a presença do filme estrangeiro em nosso mercado é cada vez mais avassaladora. Um filme como Jogos Vorazes chegou a ocupar simultaneamente mais de 1.000 salas de cinema em território nacional. Se aumentam as possibilidades para os nichos de mercado, eles permanecem sendo uma nobre exceção, trincheira de resistência, contra o progressivo avanço dos oligopólios globais, das grandes corporações midiáticas que dominam o mercado cinematográfico não apenas do Brasil, mas de boa parte dos países do mundo, inclusive de economias robustas, como a Alemanha e a Itália.
É preciso, portanto, avançar em muitas outras frentes. Mas é um bom começo. Aguardemos os próximos capítulos!