Márcio Simões e os frutos de uma vida solidária / DOCUMENTA – Memória da poesia brasileira

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Por Floriano Martins

NOTA DE EDIÇÃO: As duas partes deste texto são entrevistas realizadas, respectivamente, em 2012 e 2015, para publicação na Agulha Revista de Cultura. O poeta, tradutor e editor Márcio Simões (Rio Grande do Norte, 1979) criou e dirige a Sol Negro Edições, dedicada à feitura de livros artesanais e que tem em seu catálogo livros de Yvan Goll, Aldo Pellegrini, Vicente Huidobro, Hans Arp, Gregory Corso, dentre outros.

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Entrevista 1

FM | De onde vem essa paixão transbordante pela edição de autores fora de mercado? Bem entendido, aqui o “fora de mercado” possui certa ambiguidade, segundo penso, pois de algum modo aponta na direção das falhas desse mercado. Qual a razão de ser da Sol Negro Edições?

MS | Vem da paixão pelos livros, por tudo que acredito que representam. De um modo ou de outro o “fora de mercado” foi o que sempre me interessou. O problema com o mercado, sem esquecer sua meia-irmã siamesa, a mídia de massa, é que atua em função da padronização dos gostos e das experiências, de modo que tudo aquilo que está “fora do padrão” não interessa e/ou é estigmatizado. Nesse sentido, uma das razões de ser da Sol Negro é justamente editar títulos que não interessam ao “grande público”, mas que possam interessar a um “pequeno público” representativo para uma editora que trabalha com pequenas tiragens, dando vazão a uma literatura – e um leitor – mais exigente e menos venal.

 FM | Toda pequena empresa almeja uma expansão de sua área de atuação. No caso de uma editora de livros artesanais, bem sabemos que a expansão será sempre de títulos, porém nunca de tiragem. É uma espécie de contravenção mercadológica. Evidente que há um amplo horizonte que permite a coexistência de inúmeros princípios editoriais. Em um país altamente deficitário no plano educacional, como o Brasil, o grande mercado atua contra ou em favor dessas defasagens estruturais?

MS | O panorama que apontas é amplo, de modo que arrisco ser leviano com opiniões categóricas. Mas, de maneira geral, o interesse do mercado – aí entrando as assim chamadas grandes editoras – é mesmo o lucro. Assim que se há uma demanda de leitura de baixa qualidade essas editoras vão atender essa demanda, sem cogitar se há uma deficiência educacional por trás disso. Creio que o déficit educacional flagrante do país atende a interesses outros – políticos, por exemplo – que não o das editoras, e que se houvesse uma demanda maior por literatura de qualidade ela também seria atendida pelo mercado. Gosto do que apontas como “um amplo horizonte que permite a coexistência de inúmeros princípios editoriais”. Penso que há espaço – e demanda – para projetos editoriais os mais variados, desde best-sellers e livros de bolso, edições de luxo ou artesanais, autores de amplo ou pequeno público. Sem dúvida que a valorização da leitura (bem como a democratização do seu acesso) anda a par da necessidade de uma educação de qualidade. E claro que as editoras poderiam desempenhar um papel fundamental nisso, mas para que algo desse tipo ocorresse para além das iniciativas individuais, sem dúvida louváveis (como as edições a R$ 5,00 da L&PM), precisaria haver um mínimo de parceria e vontade do poder público, o que não creio que seja o caso. Por outro lado, editoras que atuam unicamente em causa própria, utilizando recursos de mídia e publicidade para promover autores medíocres somente porque “vendem” ou são nomes que de uma maneira ou de outra têm ressonância nos meios de comunicação, agem de maneira no mínimo irresponsável, sem nenhum compromisso com o meio social no qual estão inseridas, atuando, desse modo, claramente em favor dessas “defasagens estruturais” que mencionas.

FM | Ao lado da Sol Negro Edições também atuas como coeditor da Agulha Revista de Cultura, projeto já existente desde 1999, que tem uma trajetória ambiciosa de tratar dos vícios de limitação de pautas e visões de mundo de outros periódicos dedicados à cultura e à criação artística. De que forma se funde essa tua dupla atividade editorial?

 MS | Tudo se funde em torno do trabalho do poeta. Esse é o ponto de partida e não poderia responder de outra maneira. Todo o conjunto de conhecimentos e habilidades para exercer as atividades editoriais que venho desempenhando surgiu dessa atividade fundamental, essa mania que nos leva a criar poemas, e tudo o que isso implica em termos de demanda existencial, cultural, humana etc. Fui leitor da Agulha Revista de Cultura desde o seu princípio, coincidindo com o início da popularização do acesso à internet por aqui. A revista, justamente pelo pioneirismo e amplitude dos temas – abrindo o leque de uma literatura ainda centrada quase que exclusivamente em certo formalismo e alguns nomes consagrados – teve papel importante na minha formação e acredito que também na de parte dos autores e interessados em literatura mais ou menos da minha idade, de modo que estava familiarizado com a revista e sua linha editorial quando surgiu a oportunidade de participar na sua editoria.

FM | E quem imprecisamente é o poeta que torna possível a existência da Sol Negro Edições?

MS | A pergunta traz em si outra questão: a partir de que perspectiva caberia uma (in)definição? Se o ambiente é o literário, este poeta deve ser buscado em seus poemas e nada que eu venha a dizer aqui poderá ajudar. Por outro lado, não sou menos poeta ao editar livros ou varrer meu quarto, mas ainda assim me sinto incapaz de dizer algo que ajude na caracterização do personagem sem ser tendencioso (risos).

FM | Um país curioso este nosso: com uma das maiores riquezas da terra em termos de formação mestiça de uma sociedade, no entanto o clero cimentou as ideias do burgo de tal modo que a cobrança periódica da hipoteca tem se dado na forma de uma hipocrisia que deforma ou paralisa o ideário popular. O mais curioso é como este cenário se tornou a regra de uma cultura que rejeita toda forma de autocrítica. O que significa ser poeta em um ambiente assim?

MS | Naturalmente que a maior parte do tempo este “ser poeta” não difere em nada do que ser qualquer outra coisa. A busca de uma consciência crítica do tempo e do espaço, por exemplo, é um princípio fundamental para qualquer atuação, em qualquer área. Me escapa exatamente de que hipocrisia estejas tratando, colocado assim como está, de forma genérica, embora esse mal perpasse as nossas relações de modo geral, e em especial a imagem acrítica – e destorcida – que o país vem construindo de si mesmo, fruto de seu meio cultural, e que inclui (ou mais propriamente exclui) seu elemento mais forte e vívido: a mestiçagem, principalmente em seus aspectos mágicos e não-domesticáveis. Nossa antropofagia ainda representa muito mais uma “mesclagem” da matriz europeia com elementos outros – como o estrangeiro que se enfeita com os adornos nativos para participar de suas festas – do que um mergulho enérgico no cerne de nossa mestiçagem constitutiva (e ainda inexplorada). Como criador, o que me interessa é escapar conceitualmente desta sociedade, especialmente de suas formas “naturalizadas” de pensar, suas “verdades absolutas” e presunções conceituais. Não me importa propriamente reformar o mundo, uma vez que não assumo responsabilidade por acordos e práticas que foram estabelecidas sem minha presença ou consentimento. Nossa sociedade é o que é porque os que estão no poder assim desejam, e os que não estão ou estão de acordo tacitamente (seja por medo ou interesse próprio), ou não discordam o suficiente. Merecemos cada uma das nossas mazelas. Sigo na perspectiva de uma rebelião, sempre individual, e não de uma revolução, que não tem dado sinais de viabilidade.

FM | A hipocrisia não te escapou em nada, considerando que a sintetizaste brilhantemente ao final de tua resposta. É terrível quando governo e sociedade se igualam em seus piores aspectos. E parece que estamos vivendo este momento. A tamanha falácia em torno da educação, tema que já é uma fístula irremediável. E a vulgarização espetacular de todos os valores. Voltemos aos livros, ou melhor, à Sol Negro. A editora tem um plano ousado de apresentação ao leitor brasileiro de obras completamente fora de ambiente editorial. Desde já estão anunciados para este final de ano livros de Yvan Goll, Pablo de Rokha e um encontro entre Vicente Huidobro e Hans Arp. Qualquer leitor minimamente atento, além do agradecimento, teria a curiosidade de saber o motivo do mercado editorial brasileiro não se interessar por obras como estas.

MS | A impressão que eu tenho é de que não há compradores (já não digo leitores) que justifiquem um alto investimento e tiragens expressivas. A tendência das grandes editoras é apostar no que tem retorno certo: daí o enxame de estrelas midiáticas e autores consagrados à exaustão nas livrarias. É evidente que aí os critérios já se vão todos por ladeira abaixo. Mas, como sugerido anteriormente, autores seletos, que, por suas qualidades intrínsecas, possam interessar a um pequeno público mais exigente, são viáveis de serem editados por pequenas ou microeditoras (como é o caso da Sol Negro), que lidam com tiragens restritas e técnicas alternativas de fatura dos livros.

FM | Sei que estás buscando parceria com as Edições Nephelibata, que dirige Camilo Prado em Santa Catarina. Há algo além da coincidente manufatura dos livros que te atrai em tal aproximação estratégica?

MS | A Sol Negro surge, em verdade, do encontro com a Nephelibata (editora já com 10 anos de atuação) e a figura singular do seu editor, Camilo Prado, que desenvolveu uma técnica de produção de livros que podem ser feitos até por uma única pessoa. Isso com uma qualidade que em nada deixa a dever aos livros feitos por meios mecânicos. Os livros da Sol Negro são feitos segundo esse procedimento, que me foi generosamente ensinado por ele. Editamos o Mattinata do pernambucano Fernando Monteiro em coedição, e estamos preparando mais coisas para breve, como as Três Novelas Exemplares, de Vicente Huidobro e Hans Arp. Além de uma afinidade natural, fruto de uma visão de mundo que coincide em vários pontos, a parceria fortalece as duas editoras, que além de trabalharem conjuntamente na preparação dos livros, contam com a divulgação e público uma da outra.

FM | Márcio, as discussões sobre novas perspectivas tecnológicas que podem eliminar o objeto livro como o conhecemos são de uma tolice impressionante. O que eu queria saber de ti diz respeito ao significado mágico do livro. O que um livro – não importa a forma como o mercado o faça chegar às tuas mãos – verdadeiramente significa na vida de uma pessoa?

MS | Um livro contém bastante do que costumamos chamar de vida em suas páginas. Não enxergo qualquer exílio da literatura em relação à vida. Ler e escrever são formas de viver – de estar vivendo – como qualquer outra. Às vezes infinitamente mais interessantes, criativas e envolventes que as nossas rotinas sociais. O que parece estar em jogo é uma de nossas maiores tecnologias: a escrita, cujo uso tem assumido uma vertigem impressionante em nossos dias (assim como a produção de imagens). Sem dúvida a leitura por meios digitais vai se disseminar, mas isso nos torna diferentes em quê? Mesmo considerando as maneiras pelas quais as tecnologias condicionam nossa percepção, ainda é o mesmo bicho humano fazendo suas leituras, seja num tablet ou num livro de papel. E o que determina isso é muito mais a subjetividade (individual e coletiva) e a capacidade imaginativa (e de processamento de textos) do que o suporte em que isso se dá. A partir daí tudo – e nada – são completamente possíveis.

FM | Esquecemos algo?

MS | Não me parece. Mas algo sempre fica para mais adiante, não? Muito obrigado.


Entrevista 2

FM | Como é possível definir um ambiente em determinada cultura de livros cuja ausência de conhecimento pressupõe fragilidade dela própria e seu convívio inevitável com outras culturas?

MS | A questão educacional – aí tendo em mente não apenas as escolas, mas nosso ambiente cultural – é o ponto fundamental quando se pensa em livros e leitura. Nossa educação pública é um horror e a das empresas privadas (também chamadas colégios) não anda muito melhor. De maneira geral, nossa educação tem se dado através da mídia, o que é um passo certo para o desastre. Daí essa fragilidade que apontas. Nesse ambiente, trabalhar para oferecer edições de boa qualidade e ampliar o leque de ofertas editoriais e culturais disponíveis (incluindo aí autores de outras nacionalidades) é uma meta que vale a pena perseguir, mesmo numa microeditora.

FM | O surgimento de uma opção virtual de consulta e aquisição de livros em sebos em todo o país, como é o caso da Estante Virtual, de que modo interfere em um mercado alheio à história e interessado unicamente em converter o leitor em consumidor?

MS | A Estante Virtual e os sebos de maneira geral são importantes veículos de circulação e mesmo de preservação de acervo, na medida que colocam novamente à disposição livros e obras fora de catálogo, fazendo-os ir para a mão dos interessados, normalmente a preços mais acessíveis. Mas é difícil mensurar sua interferência no mercado. A EV, sendo uma plataforma que permite a busca de um mesmo livro em sebos de todo Brasil, terminou por funcionar no sentido de uma padronização dos preços, e livros novos em geral só têm aparecido por lá com preços próximos às livrarias, enquanto os mais raros assumem valores exorbitantes. Sem dúvida ajuda na circulação, reaproveitamento e relocações de acervos, democratizando o acesso, mas não parece alterar essencialmente a lógica do mercado ou do leitor convertido em mero consumidor.

FM | A memória de livros no Brasil, no que diz respeito a nossos autores, é um deplorável histórico de cegueira editorial e voracidade estúpida de herdeiros de toda espécie. Há casos inúmeros de decisão financeira imposta por simpatizantes incultos ou cultos a uma simpatia criada em cativeiro. Como recuperar de si mesma a cultura literária brasileira?

MS | Novamente a questão me parece remeter a um problema de natureza cultural e educacional. Continuamos tratando a cultura como algo de segundo plano, exterior a nós. E quando nos voltamos para ela é sempre do ponto de vista do espetáculo, do mais fácil e do menos crítico. Se tivermos em mente que o principal veículo de formação de opinião é a mídia, basta dar uma olhada em como a cultura é tratada (e retratada) em publicações de grande veiculação para termos uma ideia do caminho que estamos trilhando. Alguns veículos de mídia parecem ter um programa intencional de banalização e descrédito dos bens culturais, voltados unicamente para a reafirmação estratégica dos valores ideológicos das empresas de que fazem parte. As exceções seguem sendo os indivíduos, ainda capazes de agir (e pensar) por si próprios.

FM | Como atua a Sol Negro?

MS | A pretensão é de ser uma casa editorial independente, sem vínculos nem com o poder público nem com a iniciativa privada. Os livros são vendidos pela internet, diretamente no site da editora. E a intenção é ter uma atuação editorial diferenciada, até mesmo pessoal, na constituição de um catálogo pautado pela edição de autores que ofereçam uma alternativa crítica ao “mais do mesmo” que é ofertado nas livrarias pelas grandes editoras. Até o final do ano sairão títulos de Yvan Goll (O fruto de saturno), William Blake (Visões das filhas de Albion), Aldo Pellegrini (Construção da Destruição), o de Floriano Martins, em parceria com a Viviane de Santana Paulo (Abismanto), dentre outros.

>>> POEMAS <<<

QUANDO ANJOS ALEIJADOS…

quando anjos aleijados decapitarem a boca aberta das trombetas
quando clarins incendiarem a nudez numa vegetação
quando a campânula estrebuchar num arco de chuva
as caravelas se abrirão num largo
e as amantes se enforcarão em claras flores de lótus

estampidos e paradas se baterão pela planície
o orvalho virá fecundando a tormenta ou a terra
a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras
louvarão essas vacilações do espírito
minhas anarquias, meus demônios


ESTOU FARTO DE VIVENCIAR A DESAGREGAÇÃO DO MUNDO…

estou farto de vivenciar a desagregação do mundo
nem uma sombra da intercomunicabilidade das coisas
uma mulher de seios fascinantes
repousa ao meu lado
e no entanto não posso tocá-la
estou identificado ao réprobo, ao carregador das chagas
ao que sofreu os anátemas
nada tenho com os capatazes do tempo
entretanto seus agentes invisíveis
não me deixam ter um instante de paz
apenas tu, Musa, não me abandonaste nem na loucura
escuto no pássaro o suspiro solitário de quinhentas nuvens
amanheço estrangeiro e mais distante
nenhuma parte de mim deseja pedir perdão, levantar uma súplica
crer na ressurreição dos mortos e na vida eterna


AURORAS DE BRAÇOS ESPARRAMADOS…

auroras de braços esparramados
sobre os pescoços dos montes

nuvens de brancos
nos olhos do azul

árvores em disparada
atravessando
as vestes dos vendavais

rios de duas cabeças
servindo a ceia
terrena das raízes

quem duvidaria
que a escuridão
na sombra

sabe onde
a luz esplende?


DONA DAS DELONGAS…

dona das delongas
a musa muda suas faces

pega emprestado o sorriso da manhã

contorna os olhos com rastros de noites estreladas
e trança ramos de entardecer nos cachos de meio-dia –

depois reluz de passagem nos cabelos da neblina
demora um segundo numa porta que se abre ao mar

pára um instante
num corpo de mulher

e se esvai novamente

como se revelasse
em toda epiderme da paisagem

o instante em seu interior de sóis
incendiando os dias


DURANTE UMA SESSÃO DE MÚSICA ETÍOPE

para Sopa, sufi-sadhu d’Osso

i.

a mente desmantela
a redoma de ar
o trombone bale
o sopro divino
atravessando o deserto
os caravanas pisam
os tambores graves
ao entardecer

ii.

vermelhos audíveis
rodopiam
num redemoinho

iii.

sax dos infernos
nascendo das tripas
de petróleo expelidas
no céu deserto motorizado –
flor violácea
espargindo a derradeira
malemolência das raças
pelas manhãs
ainda amando
o âmago renitente

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