Em “O Corpo de Laura”, escritora usa o duplo para abordar o papel da linguagem no resgate da voz de um eu-lírico feminino ferido desde a infância; o livro faz parte, junto de uma plaquete de mesmo nome, de um projeto de investigação poética premiado pelo edital ProAC.
“Essa perspectiva é reveladora e redentora para o Corpo de Laura: ser uma letra, ser uma língua, construir um Corpo com a Palavra e, por isso mesmo, conhecer a Felicidade.”
Maíra dal’Maz, poeta e doutoranda em literatura pela UFRN, no prefácio.
O livro “O Corpo de Laura”, da poeta e jornalista paulistana Laura Redfern Navarro (@matryoshkabooks), é fruto de um exercício experimental e poético que, junto de uma plaquete, compõe o projeto homônimo vencedor do edital ProAC 2022, promovido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. Publicada pela Mocho Edições (Mocho Edições, 152 pág.), a obra conta com a orelha assinada por Luizza Milczanowski, escritora e mestranda na linha de Sociedade, Direitos Humanos e Arte pela UFRJ, e prefácio da poeta e doutoranda em literatura pela UFRN Maíra Dal’Maz.
De caráter essencialmente poético, “O Corpo de Laura” é organizado em uma estrutura narrativa e explora um processo de evolução da personagem que desemboca no resgate da própria voz pelo encontro com a palavra. Construída a partir de uma mescla de experiências autoficcionais, de uma atmosfera onírica inspirada na estética da cinematografia de David Lynch — principalmente no que diz respeito ao encontro com a personagem Laura Palmer, do seriado Twin Peaks — e, até mesmo, da escuta e a leitura de outras mulheres, a obra trabalha a linguagem como acontecimento do corpo a partir da perspectiva feminista contemporânea.
Luizza Milczanowski evoca essa questão ao dizer, no texto de orelha, que “Com sua poesia sensorial, a autora explora um corpo que é linguagem e matéria, possibilidade, espaço e passagem. A presença do plástico, essa série de moléculas artificiais que podem ser moldadas em diversos objetos, parece aludir a tudo de superficial que existe em um corpo de menina para se coisificar mulher. Um corpo que se desintegra e se interroga. Laura se contempla, ora desnorteada, ora fascinada: quem sou eu? ”, analisa.
Essa presença plastificada relacionada à existência feminina se mescla ao empréstimo de recursos visuais e estéticos próprios da geração da autora, compondo ainda mais camadas ao trabalho, que se situa em um espaço assumidamente contemporâneo. Isso se vê, por exemplo, a partir da utilização de um artifício cyberestético conhecido como Liminal Spaces, cujas imagens se propõem a captar o vago e o vazio em objetos e lugares reconhecíveis, produzindo uma sensação dupla de nostalgia e estranhamento.
Assim como na plaquete, a autora explora o recurso do duplo para, em suas palavras, compor de maneira subjetiva uma textualidade mais plural, que, mesmo tendo um nome próprio, abrange um coro de experiências e angústias coletivas que atravessam as subjetividades e os corpos das mulheres. “A ambiguidade que o título do livro carrega, podendo se direcionar a mim, à Laura Palmer ou a qualquer “Laura”, ou seja, qualquer mulher comum, me interessou por dar conta de abarcar o que busco na obra, já que transmite tanto a ideia de uma identidade subjetiva quanto reflete a opressão e a subversão dentro do contexto do corpo feminino”, afirma.
Como projeto, “O Corpo de Laura” é fruto de uma pesquisa poética que se ampara na investigação da interação entre a escrita e a fotografia e acontece em diálogo com a trajetória da personagem Laura Palmer, da série Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost. Livro e a plaquete têm como marca o uso de fotografias como um reforçador dessa atmosfera sensorial e profundamente imagética que compõem o universo e a memória da personagem.
A Laura por trás das Lauras: o encontro da escrita com o corpo
Laura Redfern Navarro é paulistana e nasceu no ano de 2000. É poeta e jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero. Desde 2019, mantém a plataforma literária @matryoshkabooks em diversas redes sociais, incluindo Instagram, Medium e Newsletter. Foi aluna dos cursos Poesia Expandida (2020) e do Curso Livre de Preparação de Escritores da Casa das Rosas – CLIPE – Poesia (2021), ambos pela Casa das Rosas.
Seu trabalho artístico investiga a linguagem enquanto corpo, experimento e subversão nas vicissitudes do feminino. Nesse sentido, questões políticas relacionadas ao mundo da escrita feita por mulheres perpassam sua obra não só como parte de seu processo criativo, mas como uma afirmação política consciente.
Isso permeou o projeto “O Corpo de Laura” desde sua concepção, que também foi fortemente influenciada pelos estudos relacionados ao seu trabalho de conclusão de curso que teve como objeto de pesquisa o livro de poemas “O Martelo” de Adelaide Ivánova. A autora analisou a poesia, enquanto linguagem, e sua capacidade de produzir e de construir o protagonismo do corpo em meio a experiências de dissidência e trauma.
Seu processo criativo tem como matéria-prima as sensações, os sonhos e as intuições. O que surge disso se desdobra em textos em pequenos cadernos e fotografias, edições amadoras de imagens e uso de ferramentas como o Google Docs, mas inclui também um espaço para troca com o outro, algo perceptível no livro que conta com poemas em diálogo com diversas autoras, como Samara Belchior, Tóia Azevedo, Flora Miguel, Geruza Zelnys, Maria Isabel Iorio e Yasmin Nigri, e epígrafes de Stella do Patrocínio, Alejandra Pizarnik, Bruna Mitrano, Gertrude Stein, Laura Assis e Sylvia Plath.
“Leio muito, compartilho minhas impressões de leitura, gosto de ouvir as impressões dos outros, recomendações de livros, etc. Sinto que isso se torna um tecido que vai se concebendo conjuntamente, como a escritora argentina Tamara Kamenszain fala no ensaio dela, ‘Bordado e Costura da Escrita’. O corpo, ou seja, criar, também é calor e afeto“, comenta.
Depois do lançamento do livro, a poeta pensa em se dedicar ao desenvolvimento das contrapartidas do ProAC, que envolvem oficinas de criação literária e palestras. E afirma desejar investigar processos criativos, em especial a partir do atravessamento do outro, tendo como ferramenta a escrita.
Confira o poema de abertura do livro:
“Laura deita meio de soslaio
na cadeira de balanço
pensativa (o semblante é de quem se perdeu)
pergunta-se se é possível separar
o Belo & o Terrível”
Conheça um pouco da escrita poética de Laura:
UM CONSELHO
O Duplo
é um espelho, diz Alejandra Pizarnik;
é ele que
recolhe
pássaros e narcisos
qualquer coisa da vida
que se encontra no chão
o palpável é valioso,
ensina a poeta, mas lembre-se
aquilo que você quer quebrar
é i m a t e r i a l
PISTAS DO CORPO DE LAURA
- O corpo é um conceito físico porém abstrato. Não sabemos se é sonho; se é linguagem; se é pele. O corpo é limbo em qualquer natureza ou definição. Trata-se de um espaço.
- Sabe-se que o corpo pode ser tanto o espaço em si quanto o instrumento que mapeia um espaço.
- Quando o corpo é o instrumento, é possível determinar a sua forma? Trata-se de uma bússola, de um sismógrafo ou de um equipamento moderno, como o GPS? Ele faz barulho?
- Quando o corpo é o espaço, é possível encontrá-lo no mapa-mundi? Ele se localiza em regiões rochosas, íngremes, desérticas ou polares? Ele tem nome?
- Se o corpo que mapeia o espaço partilhar do mesmo nome do corpo que é o espaço, no que isso implica? É possível diferenciá-los? Seriam ambos o mesmo corpo?
Como identificar o corpo de Laura?
DANCE OF THE DREAM MAN[1]
I
saio do Lugar de Origem
uma Terra em Outro Plano
[caverna]
de esmeraldas,
o mundo em volta
já não tem tanto
/brilho/
e sei que
se eu pisar em falso
irei
c
a
i
r
vertiginosamente
no país das maravilhas
II
à minha frente tenho a presença de alguns homens,
e são homens graúdos e bonitos
feito a [sombra],
mais de uma
[sombra]
o ambiente é o escuro
consigo enxergar somente
pelo excesso
*flashes*
temmuitobarulhomuitaluzmuitomedocomofazprasairdaquisemserengolidameudeus
III
me sinto uma troglodita agora,
ao menos estou usando
um vestido cor-de-rosa
brilhante de lantejoulas
como se tivesse acabado de apanhar rubis
e os incrustado no Corpo,
é tão chocante
que parece que posso
e x p l o d i r
a hora que eu quiser
IV
o Terrível não tem rosto mas ele está estampado na face desses homens ao meu redor:
um deles idêntico
ao pesadelo que tive ontem,
passando de relance
misturado à fumaça
e à multidão
o outro está
aqui como está
todos os dias
em algum momento da história, reconheço que ele deixou de ser uma intrusão
V
[ ]
agora, o braço dado no meu
bochecha com bochecha
olha pra foto
/estamos nos preparando para a valsa/
sinto uma imensa vontade
de inexistir
quando percebo:
somos novamente Homem & Mulher
VI
por um momento tento imaginar
todas as combinações possíveis
de Homem & Mulher
que fossem bonitas
como meu vestido:
*eu & o Belo
*eu & Leland Palmer[2]
que dançava num terno muito parecido
*Laura Palmer como eu
*Laura Palmer & o Belo
E, por fim:
Laura Palmer no lugar do Belo,
e o Belo no lugar
do Terrível
VII
resolvi dançar a valsa espalhando
os rubis pelo palco,
alguma coisa saía dos meus pulmões,
era temporada de Peixes
e eu me movia para dentro de um sonho,
desses que têm o esmaecimento perolado do David Lynch
VIII
por um momento o mundo
era um lugar totalmente /diferente/
e meu
[real???]
IX
quando retornei à Matéria,
vi Leland Palmer o meu agressor
que eu perdoei
mas ele tinha a cara do Leland Palmer,
e, por esse motivo,
eu vi o rosto dele
também
por sorte,
foi nesse momento
precisamente que a valsa terminou,
e por sorte consegui sair correndo correndo
X
ainda assim,
por um único instante:
o mundo
estava na ponta
dos meus dedos
num poema,
parecia éter,
esse que é tão difícil
de apanhar;
percebi que havia registrado
todo o silêncio de meu Belo
no rosto de Leland Palmer
que na verdade tem outro nome
um nó muito bem arrematado nessa minha angústia
de ser corretamente Bela o tempo inteiro;
a minha vingança
foi ter chegado
ao ponto Nevrálgico
da Beleza,
vivendo um Deslumbre
todo meu
Laura Redfern Navarro (2000) é aquariana, poeta e jornalista graduada pela Faculdade Cásper Líbero. Desde 2019, produz conteúdo sobre literatura e criatividade na plataforma @matryoshkabooks. Pesquisa corpo e linguagem nas vicissitudes do feminino. Foi aluna do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE-Poesia) em 2021. Participa da equipe de poetas do portal FaziaPoesia, Em 2022, venceu, em primeiro lugar, o Edital de Publicação Inédita em Poesia do ProAC com O Corpo de Laura.
[1] Referência à música homônima de Angelo Badalamenti, que integra a trilha sonora de Twin Peaks
[2] Personagem de Twin Peaks, pai da protagonista Laura Palmer)