Tecido pela sororidade, afetos postiços narra pela verve da comicidade histórias de vida de duas manicures, Jéssica e Danielle. Temos a polifonia do salão de beleza como espelho do mundo, e as manicures como grandes parabólicas.
As narrativas se retroalimentam num giro de ouroboros. Assuntos cotidianos atravessam esses dois femininos, tão plurais que visibilizam muitas vozes. O ofício da manicure, os afetos, a família, aplicativos de celular, o lazer, o sexo, a maternidade, a fofoca dos famosos, o resumo da novela, o horóscopo diário e as violências cotidianas de gênero, assim como as desigualdades de gênero, raça e classe, são temáticas abordadas nos contos. É no encaixe com letras de pagodes, bregas, arrochas e louvores que essas personas expressam camadas de uma vida popular, comum a qualquer periferia dos grandes centros. Nomes de esmaltes constroem as outras camadas da narrativa. Elas esmaltam unhas, também discursos.
Os contos foram escritos durante os processos iniciais de pesquisas dramatúrgicas e investigações historiográficas da peça Memórias de uma Manicure (Bonecas Quebradas Teatro, 2023 – Projeto contemplado no Edital Eletrobrás 2021), na qual Gabriele Rosa assinou o dramaturgismo.
Conheça o conto “adote um cara”, que compõe a obra de Gabriele:
sol em virgem, romântica, 33. na pochete, guardo o mundo. eu só precisei de cinquenta e sete caracteres. na vida, só tive ronaldo. broca frouxa. o motor não lixa. nunca cheguei no polimento. elas me convenceram, talvez eu precise mesmo me sentir desejada. não sei balançar nessa rede. justo no dia que coloquei a calcinha do avesso. trinta minutos e nada. seguiu o dia. observar é uma ação, sabia? ronaldo tem ódios de estimação: lavar calcinha no banheiro é um deles. por que estou em um site de namoro? aqui as mulheres escolhem, é uma espécie de compras no supermercado. disto eu entendo bem. minha avó me ensinou. sorte. mas daí colocar um cara dentro do carrinho, achei inusitado. unhas roídas de batom vermelho. na xícara da minha avó transborda coca-cola. derramei no sofá, inferno! trinta e oito notificações. sou um sucesso. entre um perfil e outro, lá se foram duas horas. eles só podem conversar comigo se eu deixar. gostei. só beijar, só beijar. quero o seu amor… é esse! meu primeiro carrinho. tentei ser eu mesma. lembrei de todas as recomendações: não seja você, se invente… não deu. a gente não vive de entrelinhas. meu desejo era consumir e ser consumida, principalmente. cada um só vê aquilo que os olhos percebem – mateus, 5-137. vinte minutos depois e nenhuma resposta. tirei do carrinho. testei outro. e outro. depois mais um. vinte e oito carrinhos cheios. a novela das 21h está pegando fogo… e eu perdendo. até consegui evoluir com um cara: rui. dezessete frases depois e me pediu um nude. deus me livre. bloqueado. será que estou na categoria certa? só falei coisas normais: meu sonho de envelhecer, criar meus filhos, usar minha camisola de seda e ser feliz. amo sutiã bege. não falei sobre trabalho, tampouco sobre meu marido, ex-marido. naldinho, o amor é um alicate amolado. te procuro em tudo que faço. ver teu sorriso em todos os lábios. e tua voz me dizendo ‘te quero’. te peço pra voltar. eu nunca deixei de te amar… sem bateria. abarrotada de mundo. deglutir argila, invadir cutículas. amontoada. bem mais que cinquenta e sete caracteres.
Gabriele Rosa é natural do Rio de Janeiro. Historiadora e dramaturga de processos, assinou o dramaturgismo da peça Memórias de uma Manicure (Bonecas Quebradas Teatro, 2023 – Projeto contemplado no Edital Eletrobrás 2021). É autora de afetos postiços (Ofícios Terrestres, no prelo, contos), Dias medidos em xícaras de café (Editora Urutau, 2023) e de Não consigo me desvencilhar desse óbito ( Editora Primata, 2023), entre outros livros. Colabora mensalmente com a coluna memórias táteis, intempéries e outras derivas, na Revista Ruído Manifesto. É aluna do CLIPE Poesia 2023 (Casa das Rosas).
O livro está em pré-venda pela Ofícios Terrestres Edições no link a seguir:
