Cleber Baleeiro nasceu em Macarani/BA e vive em São Bernardo do Campo/SP; é poeta, editor e professor e doutor em Ciências da Religião; publicou cinco livros de poemas, sendo o mais recente A carne das coisas se desdobra (Forja).
voltar
voltar à casa
depois de muito tempo
estrangeiro em terra exótica
caminho de espelhos
imagens tortas
uma criatura horrenda observa
esmagado por uma porta
ver-se deformado
ver a decadência
é triste!
esperar na calçada
em que se há de passar
em breve
olhar-se nos espelhos
passar com pressa
não gostar do que se vê
rua
folhas não estalam
sob a pressão
dos pés
pedras tombam
caladas
à frente
não se ouve
som de passos
a rua é o silêncio
que escapou de alguém
e vaga
rio e menino
o rio de barba longa
em canto quieto
me viu menino
quase minação
viu como meu ventre
se alargou
acompanhando as margens de meus ombros
e como a pele de minhas mãos
tornou-se grossa
em trabalhos e afagos
como a passagem de suas águas
viu de menino
eu me espalhar em afluentes
e desaguar em homem
e meus cabelos se tornarem brancos
e mais ralos
como seu leito na seca
o rio quieto
mais velho que eu
enquanto permanece
me vê passar
em forte correnteza
o outro do outro lado da mesa
levanto meus olhos durante o jantar
e me vejo jantando
do outro lado da mesa
cuspo no prato em que comi
ou talvez no que ele comeu
de susto ou de desgosto
de me ver sentado ali
devorando meu feijão com arroz
e me afundo na cadeira
de susto ou de desgosto
ao desconfiar que talvez
o feijão com arroz nem seja meu
vejo a mim mesmo
do outro lado da mesa
jantando com a mesma fome
com que janto deste meu lado
ele levanta os olhos e me vê
do outro lado da mesa
com uma fome igual à sua
comendo um feijão com arroz
que não sabe se é seu ou meu
antecipação
não saber o que se esconde
sob aquele suspiro
que encerra a cadeia de suspiros
desespero pela possibilidade
de acordar e ser noite
sentir a iminência
dos olhos não mais se abrirem
após uma das milhares de piscadas
viver sob os escombros
de uma vida que já não existe
mesmo antes de não mais existir
