5 Poemas de Guilherme Krema

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Crédito foto: Yasmin Vilanova

Guilherme Krema é produtor cultural e escritor, radicado em Bento Gonçalves/RS. Formado em Artes Visuais, lançou seu primeiro livro em 2023, ‘As Voragens’, pela editora Litteralux.


aftersun

meu corpo
sabe de coisas
que não sei

duas propriedades
do mesmo
oscilar

sussurrado em som surround:
trocaria a velocidade desses carros
pelo conforto dos teus braços
me levando para a cama

na penumbra
ruídos de vhs clareando sofá e cortinas

meus olhos sabem coisas que não sei

as palavras
pai e morto
                         (dad & dead)
já nasceram
inseparáveis 


crepúsculo dos deuses

em cada centímetro de tela
um banquete para os olhos
mastigarem sem pressa
                            a carne dos atores
                            mortos
ainda conservadas e lustres

em cada centímetro de tela
debaixo da maquiagem olheiras
marcas        do sexo da neurose
                        das drogas da sujeira
da noite anterior

ainda assim sob nosso testemunho
tão belos os dois ousando se querer
na televisão de cinquenta polegadas
quase setenta anos depois

amor não me deixe esquecer
ao fim da película todos morreriam
ao fim da película todos morreremos
cinema é apesar de tudo tanta imagem

é preciso suspender a descrença
para duvidar que a mosca pousou
na maçã do rosto do galã
não como um acaso
muito menos um agouro
mas como absolvição
                imortalizada em lentes
                panavision 


estranhos prazeres

um acidente de carro na esquina da tua casa
corpos dilacerados por engrenagens
exposto tsunami de ossos metálicos
ponta de olho: ponta de arame
línguas: carne feltro ferro e plástico

um acidente na esquina de tua casa e o carro
metamorfoseado em humano me abraça
arde um céu de fuligem
tempestade de gengivas necrosadas

em slow motion a loura freia
desce da moto
ice eyes staring my burning chest
“como sobreviveu
a esse capotamento?”

sinceramente eu
não sei talvez desejo
tesão de morrer 


telecine

a tatuagem
desce do alto da cabeça
atravessa as costelas cruza
atrás do joelho esquerdo
e só minha língua (e essa câmera)
sabe onde termina

nossos mortos foram separados
por cidades e distâncias incalculáveis
mas hoje se reconheceram
ao partilharmos suas importâncias
na estética do tele-visor

latejando na tela
dramas de família
histórias de pais mortos

do quarto de hotel não assisto
aos aviões abandonando a noite
(mas pela trilha sonora
digerindo meus ouvidos)
sei que estão lá 


curta-metragem

             voice over:
escrever como quem liga a câmera
esticar o verso em linha contínua
para poder retroceder

posicionar a flecha em outro ponto do filme
me colocar de consciência presente
bem no meio do teu caminho
                          fazer uma visita como quem
                          se dá um presente fora de época

               flashforward
reuni na sala de cinema
todas as pessoas que lembram de ti
na esperança de que pudessem
com suas imagens mentais
projetar teu corpo em meio a poeira
acumulada de décadas

um lampejo de luz
o que consegui foi
esse holograma
irrevogável
da tua ausência

              .fade out

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