Afonso Henriques Neto nasceu em Belo Horizonte, MG, e mora no Rio de Janeiro desde 1972. Já publicou 12 livros de poesia e participou de várias antologias no país e no exterior, entre elas 26 poetas hoje (organizada por Heloísa Buarque de Hollanda) e Poesia. br (organizada por Sergio Cohn). Tem no prelo, pela Editora Azougue, seu primeiro livro de contos, Relatos nas ruas do espanto.
No Osso Profundo
flores borbulham nos céus, estou sentado por toda a madrugada
sobre o imenso crânio cravado na montanha
de sementes da insônia a embrulharem no assombroso
o futuro, paralisia que se gruda nua em nossa
jorrada nudez, todos a rolarem sonâmbulos
em vazios de ruas negras, não há roupa que possa servir de medida
para ocultar a vertigem da morte, a eternidade
do silêncio, carnes a escorrerem dos ossos,
plantação dos demônios, há uma sombra
que só pode ser satânica fraturando em guerra as paisagens
do mundo, me ergo do crânio que se desfaz
em pérolas absurdas, em pedaços de céus maltrapilhos,
vou prosseguir a viagem que se enterrara no fundo das tripas
agora que tudo se dissolveu na amoníaca manhã,
maníaca sementeira de faces desacordadas,
eu procuro a nossa idiota história entre o sombreado
do primeiro bosque esfaqueado nas bocas que não podem
gritar, não podem gritar mas berram, se retorcem,
guincham no centro das cordilheiras em cabeleiras envilecidas,
barbas de milho malcheirosas, às margens do primeiro
bosque a que deram o nome de paraíso, ali
onde se ergueram as primitivas árvores da destruição
para que se precipitassem os corpos em flores do céu
emurchecido, pois há vozes quebradas porque há verbos
nunca formulados por todos os lados desse jardim
de almas esquisitas, fermentados campos de concentração, babas
de sobrenaturais espasmos atômicos, fantasmas em massa desde a gloriosa
história com que o paraíso se entronizou na loucura
de onde agora são vomitadas gelatinas de ossos, uma caveira
do tamanho do infinito, por isso os berros, as ordens desordenadas
para que os adolescentes delirem e se esfreguem e se
masturbem contra os esqueletos do universo, porcas
vegetações entre pedras que voam nos vácuos, buracos
infernais que a tudo devoram, pois as carnes se evaporam
e as novas lavas se endurecem nas mesmas pedras
de outrora, e as luas escorrem mais uma vez
nos leites estagnados, nos cometas infecundos,
memórias sem dentes, estamos nus, minha flor,
estamos feridos até os confins do espírito, minha flor, minha
dor dos diamantes sem remédio, os silenciados
ardem carnavais nos sais desenraizados, florações para sempre moídas,
um dia foderemos no espocar dos raios, minha flor,
impérios vêm e vão na flutuação dessas nuvens de agonia, gases
que destruirão os pulmões das sequentes gerações, sensuais
minas do espanto sobre neblinas em ruínas
Mais Uma Balada
En ce bordeau ou tenons nostre estat.
François Villon
o cancro não mente, semente
imperdoável, quanto há de ser notável
dileto, seleto esqueleto violáceo,
olho fígado cu da tempestade
o cancro não se faz pela metade,
ilha sobre ilha, armadilha de flores,
rebrilhar do sol sobre bouba sem boutade,
neste bordel onde trepamos à vontade.
a guerra não sente, demente
olhar o que há na TV, paz, passeata, matinê
de gritos brancos sob treva oca, a cama
em que imagens podres babam sem alarde
sementeira de bombas, asco que tanto arde
quanto, destarte, planeta se desfaz em dores,
cólica sem arte, fermento que já vem tarde,
neste bordel onde trepamos à vontade.
o cósmico silente, áurea lente
abrir-se d’olho cego abstratamente,
nem queira vir de verso que em reverso
sonharás perverso dom do diluir cidade,
pois quanto senti nem me lembro: invento
o vento sem tempo, flutuar odores
no vago, vaso vazio da emporcalhada verdade,
neste bordel onde trepamos à vontade.
envoi
senhor, dos males que tanto temo
livrai-me, turvo tumor tudo quanto late
no planeta torvo em pústulas do demo,
bordel onde trepamos dessarte.
Visita
Bateram à porta,
bateram, esmurraram
o tempo irremediável.
Talvez dentro da casa
ardesse ausência
punho de sombra
batendo, batendo.
Se fosse possível ver no escuro
uma cólica de ouro
um contorcer-se de crepúsculo
um arrepio de fumaça
e máscara vazia
recamada em prata baça.
Se fosse possível arrancar
os verbos dos mortos.
As luzes tremem desprezo
vaga-lumes em avesso.
(E o inútil esmurrando,
estuprando o inconsolável).
A Lua Voava
a lua voava nua
na madrugada vermelha
mas onde estaria aquela
que de tão bela ofuscara
do sol a dança amarela?
no quarto ora deserto
um distante acordeom
depunha a melancolia
numa poça de néon
(quando os risos eram sol
no embebedado novelo
ouro a suar no lençol
tanto mel em desmazelo)
pois onde estaria aquela
alma de primavera
que no tempo se perdera
vaga sombra na janela?
gritar gritar que ela venha
com seu corpo de centelha
a lua voava nua
na madrugada vermelha
Ainda Cão
palavras arruinadas tombam em carvão
sobre cidades cambaleantes.
do invisível o cão fantasma espreita
com babas e dentes de aurora fraturada.
bicho que se desprende da sombra
e se arrasta por fábulas secas
esquecido dos versos que amanhecessem.
tudo era modo de falar do sonho
do anseio de ganir frescor em meio à febre
rosa de pus, camélia hepática
contradição feroz em dicionários enterrados.
aurorais palavras que se acendessem
nos olhos de improvável divindade
(vinho a fulgir em guelras do dilúvio)
enquanto o cão ainda se arrastasse
na nuvem suja da respiração das coisas.
Na Casa De Fernando Pessoa
Visitar-te, Pessoa, no museu-casa da rua Coelho da Rocha,
em Lisboa — onde passaste os três últimos lustros de vida —,
me deixa a difusa emoção do percorrer espaços raros
onde poesia se mistura ao indefinível silêncio
que em cada objeto perdura,
tal se o poeta fosse simplesmente entrar, tirar o sobretudo
e se assentar à estreita cama, depois de, no caminho,
colocar o chapéu sobre a cômoda-escrivaninha.
Ah, mítica cômoda-escrivaninha! Foi sobre ela, em pé,
que em 8 de março de 1914 o poeta escreveu de enfiada
metade d’O guardador de rebanhos
(“desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim
o meu mestre”, dirá um alumbrado Pessoa),
para em seguida, também a fio, escrever
as seis partes do poema “Chuva oblíqua” (“foi uma reação
de Fernando Pessoa contra a sua inexistência”, dirá também o poeta
diante da tempestade de pássaros que se chamou Alberto Caeiro).
Três meses depois irromperiam quase que simultaneamente
nas brumas do alheamento
Ricardo Reis e Álvaro de Campos,
o primeiro, discípulo em feitio clássico de Caeiro, o segundo,
vulcânico antípoda futurista aventureiro.
Aproveitei a distração do guarda do museu
para me esticar e tocar a madeira da cômoda-escrivaninha
tal se estivesse a buscar invisível contato
com a impassível sombra de Caeiro,
enquanto uma absurda luz se infiltrava pela janela
a vir pousar a ilusão de ser
no diamante deste quarto a espargir
névoas do sonho de não existir.