Allan Jonnes (SE) mora em Aracaju. É poeta e membro do Coletivo Sarau Debaixo. Estuda jornalismo com certo desgosto.
TODO CHÃO SERÁ PALCO TODO MURO SERÁ MURAL TODA CIDADE POESIA
O Sarau Debaixo é um coletivo. É preciso começar dizendo isso, um coletivo com doze cabeças. As doze pensam e trabalham. O sarau nasce dessa necessidade de pensar a cidade para além das paredes e sob as paredes. As pessoas perderam a relação com o espaço comum, do mesmo modo que perderam a identificação com o que hoje se pode chamar brutamente de natureza. É corriqueiro ouvir que a natureza vai se vingar do ser humano escrotão e poluidor. Como se o ser humano não fosse também a natureza, e os carros e os viadutos e as ruas são fossem também a natureza – transformada em tijolo e cinza e fuligem e borracha e fedor. Ocupar esses lugares e intervir taticamente transformando-os em coisa viva e em movimento é uma das opções que estão dadas no mundo inteiro, e foi a que a gente escolheu.
O viaduto do D.I.A era um entre os muitos não-lugares da cidade de Aracaju. Uma cidade geométrica, calculadinha, quadradinha, perpendicular, arrumadinha, um tabuleiro. Com uma encruzilhada desocupada em cada esquina. O verdadeiro vazio da ação, a doce província, a mais modesta das capitanias hereditárias desse país – limpinha e bem comportada aos domingos, nossa Aracaju. Sendo assim, era urgente o vexame, como dizia Mário Jorge, o poeta morto mais vivo em todos os cantos da cidade. Morreu de trânsito, por ironia, noutro viaduto.
O viaduto do D.I.A é outro, tem parte com a encruzilhada, o mergulhão das sete curvas de retorno, das sete voltas, sete pistas e uma multidão de pilastras pintadas de marrom da cor do mar. É ali que acontece o sarau. Todas as terças da terceira semana do mês, haja noite ou não haja. E as pessoas aparecem, devagarzinho, mas pessoas aparecem, de acordo com os nossos cálculos as edições têm em média cento e cinquenta pessoas, fosse a polícia contando eles diriam que não chegamos a trinta e oito doidos e desocupados. Mas é de coração.
A gente usa um som e três microfones que são alugados, a grana é toda da colaboração das pessoas. Na verdade, a gente vende cachaça, zine, bottom, camiseta. É com esse dinheiro que se paga tudo e não se pede nada pra ninguém. Alguns aparecem lá para gritar, outros cantam, outros tiram a roupa, outros aparecem pra rimar de improviso, se enterrar na areia, outros se penduram no viaduto e descem agarrados em tecidos de acrobacia, jogam bola de malabar, cospem fogo, outros recitam poema, tocam tambores, discursam, não importa. O microfone é aberto. Todos vão lá para reagir contra a cidade e pelo direito a ela.
No meu ensino médio, estudei em escola pública e lembro que ainda que a quadra de esportes estivesse vazia e as bolas desocupadas e os estudantes estivessem em algum horário vago, as pessoas não podiam usar a quadra. Ninguém podia usar a quadra que ninguém estava usando. Era preciso pedir permissão, protocolar um ofício pra jogar meia horinha de bola. Não havia nada que fundamentasse essa não-permissão, só não podia. É essa a lógica que funciona, é essa a relação das pessoas com o espaço público.
Estamos caminhando agora para o segundo ano do sarau e nunca enviamos nenhum oficio, estamos ocupados. É urgente esse tipo de provocação. A gente compreende a cultura como um direito básico assim como a educação, a saúde, o transporte coletivo etc. O direito a cultura é sempre dos mais sabotados, negados e protelados. É por isso também que a gente está na rua. E vocês dirão, “Mas e a literatura?”. Acreditamos que esse lugar fedorento e sujo e feio e poeirento é também o lugar dela. Há um movimento nacional de saraus que se espalha para além das instituições, que ocupa os bares, as calçadas, as estações de ônibus, etc. A literatura é também a palavra que se move em direção ao outro. As pessoas produzem, conversam, se interessam. É outro modo de fazer literatura.
É comum ouvir entre escritores e curadores de eventos o discurso da inclusão, “Nossa, que bonito esse movimento das ruas, vamos chamar aqui o pessoal da poesia oral, da poesia falada”. Já quando se referem aos poemas “dos livros”, chamam só pelo nome de “poema” ou “poesia” mesmo. Estamos habituados a isso. Embora a gente saiba que, na verdade, no início era o som e a oralidade. Hoje nos parece que por um lado há uma poesia oficial, legítima, e por outro – seus subprodutos.
A literatura é também um espaço comum (não um lugar comum), e ocupá-lo incomoda. É contra esse tipo de pensamento que a gente se levanta. Dizer isso não implica dizer que as pessoas da rua, os poetas que se manifestam na rua ou por meio da oralidade não precisam ter nenhuma espécie de reflexão e zelo com aquilo que estão produ-zindo. Há uma espécie de abandono e vazio da experiência estética que invariavelmente cede lugar tão somente a mensagem, aos textos sem esquinas, à catequização em linha reta, ao palanque. Como há também o inverso disso, tão desinteressante quanto. Não adianta empilhar tudo que se pensa em um bloco de frase, chamar de poema e achar que isso é ser subversivo, isso foi subversivo há muito tempo, hoje é mais do mesmo.
Por outro lado, lançar um livro é muito fácil, quem fizer o mínimo de esforço consegue lançar o próprio livro. Há uma espécie de inflação de coisa avulsa e não refletida, um fetiche, a necessidade de uma legitimação que muitas vezes vem assim irrefletida: “Tenho um livro, agora sou escritor, podem me chamar de escritor, olhe aqui o livro que eu escrevi!” Isso é uma cilada. Isso é o espectro, a parte podre do espetáculo. O sarau que pensamos e queremos é outra coisa. E ele segue sendo detonador de sensibilidade e interesse nas pessoas para com a literatura, ocupando o exato lugar onde a escola da nossa geração falhou. Nós sabemos que isso é irreversível, no entanto, há ainda muito que se possa fazer. Avante.