Por Carlos André, poeta e editor
Há certa linhagem na poesia brasileira, geralmente localizada nos anos 70, que recebe diferentes nomes ao sabor dos analistas: poesia marginal, poesia mimeógrafo, poesia beat brasileira, poesia de desbunde etc.
Sem configurar um movimento coeso a que se possa chamar de escola literária, este período da poética nacional, no entanto, tem alguns traços em comum, dentre os quais múltiplas rebeldias, sejam formais ou discursivas, em textos que se opõem, de uma maneira ou de outra, às normas então vigentes.
Em alguma medida, esta discursividade questionadora me parece não haver abandonado nunca nossa poesia, visto nossos poetas estarem muito atentos às idiossincrasias que fazem de nosso cenário social um desastre contínuo de variadas injustiças desde sempre.
No entanto, muito de nossa produção mais recente tem se conformado a repetições pouco surpreendentes ou ousadas. Parte desta constatação a minha frequente crítica à poesia periférica de São Paulo, entre outras críticas, por exemplo. Me parece faltar intensidades a alguns muitos autores.
Eis que, para integrar esta discussão, vem de Santo André, ABCD Paulista, uma nova e jovem força a fim de balançar o coreto onde performam algumas normatividades.
Também músico compositor, educador, agitador cultural e performer, Igor Celestino estreia com o pé na porta do contemporâneo com o seu Cataclismo Avesso, pela Editora Clóe.
Já no primeiro poema do livro, intitulado Inconstitucional, o poeta nos diz a que veio:
“Enquanto sou puta
Desalmada deste
Estado de vícios,
Escarro ao carrasco
Deixo fluir meus atos, numa penumbra insaciável de alfaiates
– ilhados”
Flertando com reconhecíveis mestres, como o indelével Roberto Piva, Igor traz para o texto literário um amplo diálogo com autores de outras linguagens e formas de conhecimento, transitando facilmente sua literatura pelos territórios da História, Filosofia e outras linguagens artísticas:
“Invento-me no instante de Dante ditando
ao fim do entreato”
—
“Eu sinto a história do Brasil acontecendo na minha vida
Corpos atravessados pelo materialismo histórico & dialético”
—
“Talvez o que me falte seja
Simplesmente
Psicanálise
& ao país tão afundado em classes
Mais luta”
Assecla da orgia dos sentidos, na tradição mística dos poetas visionários, o autor também recoloca o corpo como problema central do poema, território de onde parte a para onde concorre a poesia possível:
“Sumo suor escorrendo
Entre nossos
receios & o bailar
da pele tátil
Arquitetando
o gozo”
—
“Decifrando a língua
à
língua
Te amar noite adentro morte afundo vida finda
Tempestades
Cometas
Dilúvios
Orgasmos
Mergulhando nas grutas abissais
Das tuas matas desvirginadas
Selva de Saliva
Eu gemo teu nome como quem mata o medo
De amar
& Chupo”
Contemporâneo da linguagem de seu tempo, transcreve sem pudores diferentes formas de enunciação, assimilando liricamente as conquistas da gíria suburbana e do gênero neutro. Uma poética que parte da rebelião concreta da linguagem para se colocar como insurreição em si mesma. Poesia que se entende como manifestação estética da visão poli-política do poeta:
“Vedetes, pivetes, leks e tiras queimando fumo
Contrabando de filmes de Godard
Sururu y gatas extraordinárias fervendo
Estribilhos, navalha na liga, vampiros
Antonio das Mortes e Macunaíma tirando um sarro
De caretas / carrascos”
—
“Quero o incêndio das coisas, o roçar das epidermes. Registro o cotidiano e me comovo de ser parte de uma trupe que cria. Sorrisos hereges nas lentes das câmeras de meus olhos. A incansável tentativa de ser ciborgue.”
Infusão (des)controlada entre forma e conteúdo que cativa o leitor que procura um pouco de desordem no ordenado cenário atual. Programa revolucionário para cabeças atentas:
“Não se afundar (não mais!) na lama dos filósofos
Barro alquímico onde se forja a mente
Ácido que dissolve a ilusão do Outro
Arcano estelar
na barraca dos enamorados
A Rave é um atentado ao moralismo:
Transe & fritação”
—
“Fecundo algo de mim no íntimo ventre do mundo
Vejo putas, fadas e anarquistas confabulando o atentado derradeiro”
massa!