Por Nuno Brito*
Num dos trabalhos do curso Abordagens Artísticas e Interdisciplinares aos países da língua portuguesa, curso da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, pedi aos estudantes um poema livre cujo título e ponto de partida fosse o último verso “Olá Liberdade” do poema “Flor nascida do silêncio” do poeta moçambicano Albino Magaia. Tínhamos acabado uma unidade sobre a guerra colonial e falamos sobre ressonâncias do outro lado do Atlântico e sobretudo sobre a especificidade desta palavra em português; “Alô Liberdade” de Chico Buarque e o movimento de resistência à ditadura dos dois lados do Atlântico, a música como resistência e começo dos movimentos de libertação em África.
Há definitivamente uma vibração própria desta palavra em português que pelo seu passado histórico, cultural e artística a faz tão única na nossa língua, quase como a palavra saudade, temos um dia para ela em Portugal, e revisitamo-la constantemente através da música, da literatura da arte e da cultura, mas também da forma como nos vemos e relacionamos. De todos os poemas dos alunos – todos eles foram livres e abundantes em criatividade e poder imagético – um chamou mais a atenção pelo seu poder reflexivo de aproximação ao conceito, o poema de Dante Reedy Solano era assim:
Olá Liberdade
I awake every morning
Treating you as if you were tomorrow
Or at least what my mind makes of tomorrow
Are you a riddle or the answer to it?
I wonder if you are something that is even real
Or just whatever we see in the distance.
Oh sweet liberty, I can understand the boredom
Some may have with you.
When perhaps you haven’t even shown your true
colors
Will I see them ever,
I don’t know.
But I can say this much…
You’re allure is much more powerful than your status quo.
(SOLANO, 2022)
Como ponto de partida este poema mostrava também como uma palavra se for exageradamente repetida pode perder o seu sentido, significado e poder de realização, “imagino se és verdadeiramente real / ou alguma coisa que vemos à distância”, dirigindo-se a voz do poema diretamente a um conceito que se figura como esvaziado: “posso entender o aborrecimento que alguns podem ter contigo”, compreensão que ganha vitalidade e poder argumentativo com a dimensão da afirmação segura: “mas posso afirmar isto… o teu fascínio é muito mais poderoso que o teu status quo”. O estatuto, o estado e o estanque que a palavra pode sofrer está ligado a um esvaziamento possível do conceito e não à sua essência e potencialidade infinita de fascínio: “As cores verdadeiras” terão de estar presentes também na nomeação da palavra como estão no seu sentir por dentro. Pensar por isto esta palavra a vários ângulos é por isso cada vez mais necessário, e pensá-la é então reconstrui-la e retirar as montanha de pó de que falava Guimarães Rosa:
“Primeiro, há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original […]
“Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida.” (ROSA, 1965)
Retirada daquilo que a torne estanque é preciso vê-la nascer outra vez e é cada vez mais necessário cinquenta anos depois do 25 de Abril pensar a palavra Liberdade por dentro, por fora e por todos os lados, a várias luzes e perspetivas possíveis. Este foi também o trabalho imenso de Regina Queiroz no seu livro “Liberdade”, exercício de uma apurada responsabilidade com a palavra, com a reflexão, com a análise e o argumento. Um livro cheio e em cheio que pensa a palavra a fundo e a várias luzes, debruçando-se sobre diferentes tempos da Antiguidade Clássica, à Idade Média e Moderna, chegando até aos fenómenos contemporâneos que mais nos tocam como a inteligência artificial, as alterações climáticas e a liberdade de género. Recorrendo a fontes de diferentes campos do saber como a filosofia, a sociologia, a psicologia e a antropologia, Liberdade pensa a fundo e por dentro “um dos conceitos mais intrincados, contestáveis e complexos da história do pensamento humano” (Queiroz, 2024, p. 17). Este é um ensaio composto por quatro capítulos onde é pensado o conceito ao longo da história não só através da reflexão dos que a fizeram mas apontando também as suas omissões: “Há omissões questionáveis em todos os períodos históricos referidos no livro, como por exemplo, Empédocles e Epícuro na antiguidade clássica greco-romana, Duns Escoto na idade Média, David Hume na época Moderna, Bentham, Heidegger, Husserl e Sartre na Época Contemporânea. (Queiroz, 2024, p. 17). Liberdade de Regina Queiroz é um livro de uma grande coragem e de um forte poder argumentativo mas também de uma organização consistente e de uma grande claridade e vitalidade que permite ter uma panorâmica ampla sobre posicionamentos tão diferentes como os de Platão, Aristóteles, dos filósofos estoicos, de Santo Agostinho e São Tomás, Montaigne, Kant, Rousseau, Locke, Marx ou Nietzsche articulando-os em conjunto e pensando a evolução de um debate humano continuo que se confunde com a própria história política, cultural, das ideias e das mentalidades do nosso mundo. Um livro que nos adentra sobre a conceções de liberdade em diferentes sistemas de pensamento, como a liberdade enquanto responsabilidade em Platão, Santo Agostinho, Nietzsche, ou a liberdade como autorrealização em John Stuart Mill e John Rawls, passando pela ideia da liberdade enquanto autonomia em Immanuel Kant, Friedrich Hegel e Karl Marx.
Na primeira parte da obra Regina Queiroz analisa com toda a atenção a ideia de liberdade como responsabilidade e como ócio no pensamento clássico greco-latino e no pensamento medieval, mas também a liberdade como não interferência assim como os paradoxos que esta última ideia apresenta para na segunda parte do livro se debruçar sobre as conceções alternativas de liberdade que acentuam a autorrealização e a não-dominação assim como na forma como fenómenos contemporâneos mais recentes desafiam as inúmeras conceções deste conceito. Na unidade que conclui este livro: “Os desafios à liberdade no século XXI” Regina Queiroz posiciona a forma como numa quarta vaga de industrialização o tema da liberdade tem de ser revitalizado para pensar as alterações climáticas e o Antropoceno e incorporar o desenvolvimento da inteligência artificial no seu debate assim como repensá-la à luz da liberdade de género.
Como um todo orgânico Liberdade pensa com profundidade, atenção e forte poder de reflexão objetiva e rigor um conceito que é cada vez mais necessário ver e repensar a partir de dentro, para que a ideia não caia num estado estanque e não seja afastada enquanto um status quo exterior, e para pensar a liberdade a partir de dentro, das nossas relações humanas e da nossa relação com o passado e os desafios do futuro, este é um livro essencial e cada vez mais necessário a este 2024 de profundas revitalizações. Entre várias vitórias possíveis, também ele, uma celebração da liberdade, cada vez e sempre mais necessária.
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Referências:
QUEIROZ, Regina. Liberdade. Coimbra: Edições 70, 2024.
ROSA, Guimarães. “Diálogos com Guimarães Rosa”, entrevistado por Günter Lorenz, Vide online: http://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html.
SOLANO, Dante Reedy. Olá Liberdade. [Poema escrito durante o curso: Artistic and Interdisciplinary Appraches to the Portuguese Speaking Countries: Spring 2022, University of California Santa Barbara.
*Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É doutorado em Literaturas Brasileiras e Portuguesas pela Universidade da Califórnia em Santa Barbara. É autor dos livros de poesia e conto: Delírio Húngaro (2009), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022). Atualmente é Professor Visitante da Universidade de Búfalo em Nova York.