Mas quando o poeta diz: muvuca, pode estar querendo dizer febre intermitente

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Por Maria Dolores Rodriguez*

Mostre-me um homem são e eu o curarei, Black Alien

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Muvuca:
origem
⊙ ETIM(1976) prov. quicongo mvúka ‘febre intermitente’

o livro “Muvuca”, de Jorge Augusto, lançado pela paraLeLo13S (Salvador/BA),tem uma recusa. a recusa de Deus junto à uma completa descrença em qualquer espécie de salvação. a recusa de “deus” que se apresenta, inclusive, negando quase toda possibilidade de fé, as religiões e signos religiosos, porque a voz poética vê nesses elementos uma estrutura apaziguadora da existência que ela não aceita e que, tragicamente, nega, apesar de falar com pretas-velhas, orixás e a própria poesia. é um passeio nos escombros do mundo.

um mundo sempre impossível que, na voz cansada do sujeito lírico, ainda oferece alguma coisa que o faz viver e na qual ele crê: a linguagem. há um ensaio de uma negação generalizada que parece ser um prolongamento do sujeito para a poesia, da poesia para o sujeito. e se materializa no uso constante de alguns advérbios e estruturas lexicais de negação. “nem isso, nem aquilo”, “nenhum”, “nunca”, “sem isso, sem aquilo” etc. etc. etc.

a voz poética é de um despossuído, que quer mostrar pra todo mundo, parece, que a posse é uma ficção. ninguém nunca vai conseguir se apossar de alguma coisa se o fim esperado residir na crença em um mundo que está despedaçado. somos os condenados da Terra.

tem duas seções do livro em que esse universo lexical fica suspenso – ao menos, por um instante. ao menos, na repetição dos termos, mas elas não exatamente extinguem esse ponto. apesar da desilusão negra em relação a um mundo antinegro, carcerário e violentamente destituído de sentido, o mundo é onde o poeta habita e o mundo é também seu grande laboratório de tentativas de fazer dessa conjuntura emplastada de merda, um acontecimento possível.

seu diálogo é com muita gente: com os concretos; os simbolistas (negros); a crítica literária, especialmente, um tipo de crítica, aquela que sempre falha de um jeito específico; com um público leitor que espera a cura, o remédio numa literatura tão impossível quanto as nossas próprias existências.

é um segundo livro matizado com essa impossibilidade, não há possibilidade de cura, nem de amparo do ser, nada serve de mureta pra encostarmos nossas costas cansadas – nem a linguagem que, por vezes, trapaça.

penso nas razões que levam a voz de Muvuca pra esse mundo destroçado pela força do racismo, da doença, da melancolia negra. ao mesmo tempo, uma grande marca dessa voz é também a procura e, portanto, a própria vida. porque se ela aparece em desilusão profunda com esse mundo da maneira que ele é, ela também é encantada com a procura de sentido – para além da linguagem. é uma voz transeunte.

em alguns momentos, eu, como leitora, fico cansada junto com o autor, não porque o seu sem-sentido me desanima, mas porque o seu sem sentido é sem paz. ele percorre caminhos variados, distintos. e mesmo a repetição mostra que ele passa mais de uma vez pelos mesmos caminhos desenganados. por isso, ele ainda é um crente… apesar de negar Deus. Nietzsche está relativamente apaziguado com a sua negação. não está apaziguado com o mundo, mas com sua negação. a voz de Muvuca não está apaziguada.

o amor também aparece como uma força íntima e constitutiva, mas ainda se mostra de maneira tímida. mas o amor, ao contrário do amor de Jovina Souza, está. e, talvez, seja o único caminho de repetições que o autor não demonstre chateação em repetir. a danação do amor parece divertir a voz poética, que, ao contrário do que acontece com outras camadas e demandas, entende que essa repetição, esse looping de tentativa, erro, fracasso etc., é mesmo o jogo. o que faz o amor ser o que é.

oriki, haikai, Conceição Evaristo, Fanon, Arnaldo Xavier, Valéry, Black Alien, Cuti, vó Helena, um pai e uma mãe (ainda que oculta). a linguagem pode ser um quebra-cabeça desse mundo fodido, mas montá-lo também não nos levaria a nada.


Maria Dolores Rodriguez é poeta, artista visual, crítica literária e cultural e pesquisadora. Professora, na área de Literatura, vinculada ao Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Doutora e mestra em Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É autora do livro-objeto “Procurem Luisa no Mercado de Arte Popular” (Estúdio Arumã, 2021) e do livro de poesia “Oblíqua Glosa” (Organismo Editora, 2023).

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