Por Alex Sampaio Nunes, autor de “Ressuscito na Cidade Suicida” (2017) e colaborador da Acrobata com uma série de resenhas/diálogos sob o título de “Vozerio Piauiense”.
“Cores sob nossas peles” é o primeiro livro de Noé Filho, piauiense, nascido em Teresina no ano de 1990 e graduado em Administração. Publicado em 2019 pela editora Quimera, com prefácio de Alisson Carvalho, o livro contém, em 78 páginas, doze contos com temática LGBTQIA+. Está disponível em formato físico e digital pelo site da editora.
– Noé, por que você escreve?
– Escrevo para me transbordar. Escrevo para (me re)descobrir outros universos. Escrevo por uma profunda necessidade de extravasar a minha curiosidade. Escrevo porque acredito que toda escrita é uma ferramenta poderosa de transformação. Escrevo porque é um direito meu enquanto cidadão vivente deste mundo.
O livro é ilustrado. Na abertura de cada conto há uma ilustração – todas elas são de corpos dançando. Cada figura possui uma parte em preto e branco, e outra parte colorida. As partes coloridas das figuras oscilam entre as seis cores da versão mais atual da bandeira do movimento LGBTQIA+. Considerando a temática e o título, natural a opção por um livro ilustrado – colorido. A diagramação foi feita por Mônica Alves e toda a narrativa visual foi produzida por Carlos César.
Comecei a ler “Cores sob nossas peles” a partir das ilustrações. O título me provocou a necessidade de começar a leitura pela narrativa visual. Deixei o texto escrito para depois.
As ilustrações constroem uma narrativa própria, ou seja, não são reproduções, em imagens, do texto. Elas vão além do texto escrito, no entanto, não perdem conexão com a temática e com as histórias. São riscos e desenhos de corpos humanos com traços simples, com alguma cor que não os preenche por completo. As cores utilizadas são aquelas do arco-íris. As primeiras ilustrações, que acompanham os primeiros contos, são pintadas em cores quentes, chamativas. À medida que o livro avança, as figuras vão ganhando tons mais frios, até o roxo, cor frequentemente associada à espiritualidade, à magia, ao mistério. A dinâmica dos traços e das cores leva a uma ilusão de movimento dos corpos humanos: quase sempre a parte colorida é a parte que se move. É uma dança.
– Carlos César, como foi a concepção da narrativa visual?
– O autor me passou os textos e me deixou livre pra criar a capa e as ilustrações do miolo (parte interna). Li as histórias e fui criando o conceito visual. Pensei na dança porque as narrativas do livro são muito fluidas e percebi o movimento das emoções dos personagens. Foi assim que criei essa “dança das emoções”. As ilustrações não são fixas, elas foram feitas pra passar a sensação de movimento, a sensação da montanha russa de sentimentos dos personagens.
– Noé, viver é fingir uma dança ou é tentar dançar do nosso jeito?
– Viver é fingir uma dança. Viver é tentar dançar do nosso jeito. Tudo são viveres. Agora, acredito que viver sendo protagonista da sua própria vida é dançar do nosso jeito e aprender a não se incomodar com as críticas de quem vive a fingir uma dança.
Parti para o texto escrito. Num primeiro momento, divaguei: “olha só que engraçado, as palavras também são desenhos!”.
O estilo objetivo (com frases curtas, parágrafos curtos, histórias curtas) dá velocidade à leitura. Soma-se a isso o enredo sem qualquer atraso de conflitos, sem cenas duradouras que os antecedam, de modo que tudo é posto ao leitor de forma rápida, fulminante. O efeito de tamanha velocidade é que é possível terminar a leitura do livro num só fôlego.
Os personagens centrais dos textos são transexuais, homossexuais e bissexuais. Cada conto possui um conflito diferente vivenciado por esses personagens, desde o término de relacionamento amoroso, até dificuldades de autoaceitação, situações de bullying, e demais violências físicas e psicológicas. Mas há um conflito geral, que atravessa todos os contos do livro: o preconceito (velado ou direto). Ou seja, o livro, para além dos dramas individuais dos personagens, expõe a opressão diária da sociedade sobre a população LGBT+.
– Noé, como foi o processo de escrita de “Cores sob nossas peles”?
– Foi um processo muito desafiador, porque me propus a escrever um livro bastante planejado. O livro tem 12 contos. Sendo que tem dois contos inspirados em cada cor da bandeira LGBT+. Três contos com protagonistas lésbicas, três contos com protagonistas gays, três contos com protagonistas bissexuais e três com protagonistas transexuais. Seis contos com protagonistas homens e seis contos com protagonistas mulheres. Então, para escrever fiz muita, muita pesquisa. E fiz várias entrevistas com pessoas que se identificam com cada uma dessas orientações sexuais e identidades de gênero, para que os contos pudessem ser de fato representativos da realidade de todas essas pessoas. E graças a essas pesquisas e entrevistas, pude me aprofundar em universos que nem sabia que não conhecia. Além disso, enviei todos os contos escritos para pessoas que se identificam com a orientação sexual ou identidade de gênero de cada personagem para que eu pudesse ter esse retorno: se os meus contos estavam de fato retratando a vida dessas pessoas. Resumidamente, eu diria que o processo de escrita do “Cores sob nossas peles” foi um mergulho nas minhas mais profundas angústias e um exercício intenso de empatia.
– Noé, você tem algum receio de que seu livro seja visto como panfletário?
– Não. Da mesma forma que não tenho receio de me verem como gay. Por que eu teria receio de que digam algo que corresponde à realidade? É um livro extremamente panfletário. E bote panfletário nisso.
– Noé, como é ter seu livro lido por aqueles que não fazem parte da população LGBTQIA+?
– É claro que, para nós da população LGBTQIA+, é fundamental lermos livros de escritores que também sejam LGBTQIA+, porque, com certeza, esses escritores vão escrever histórias que jamais um homem ou mulher cis heterossexual saberiam ou poderiam escrever. Mas acho fundamental que nós escritores LGBTQIA+ sejamos lidos por toda a sociedade. Isso é imprescindível, necessário, URGENTE. U-R-G-E-N-T-E! Então, fico extremamente feliz quando vejo pessoas cis heterossexuais comprando e lendo meu livro, porque no final das contas é justamente com essas pessoas que mais precisamos dialogar e discutir inúmeras questões.
O livro é feito de pequenos, mas grandiosos, recortes das vidas dos personagens. Grandiosos porque tratam de uma parte da vida que se confunde com o próprio conceito de viver: ser quem se é.
Somos muitos.
Na forma, um livro simples; na temática, um livro complexo. Desconstruir preconceitos, repensar a diversidade, reorganizar discursos de dignidade humana: eis a magia. “Cores sob nossas peles” é um livro necessário.