Por Alex Sampaio Nunes, autor de “Ressuscito na Cidade Suicida” (2017) e colaborador da Acrobata com uma série de resenhas/diálogos sob o título de “Vozerio Piauiense”.
Asas de Pedra é o primeiro livro de Nayara Fernandes, piauiense, nascida em Teresina no ano de 1988, e atualmente acadêmica de Jornalismo. O livro foi publicado em maio de 2017, pela editora Edith, de São Paulo, composta por um coletivo de artistas, dentre eles o escritor Marcelino Freire, vencedor do prêmio Jabuti do ano de 2006 com o livro “Contos Negreiros”. O prefácio é do poeta e agitador cultural Sérgio Vaz. No total, são 78 páginas de uma poesia livre que nos prende. O livro está disponível pela editora e pela própria autora.
– Nayara, por que você escreve?
– “Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras”, diria Mário Quintana. É impossível racionalizar razões as quais um escritor dedica horas, meses ou anos a constituir (muitas vezes) uma só frase, quiçá uma ou mil obras. É o hábito sem consciência do ato a linha tênue entre o real e o abstrato que nos transporta ao ápice da escrita, onde não há porquês concretos. Há um sentir em queda livre. Os olhos são cegos, mas o coração guia.
Asas de Pedra possui duas partes: [(VOOS)] e [(PEDRAS)]. A forma como a autora escreveu esses títulos, envolvidos por colchetes e parêntesis, chama a atenção. Os títulos de todos os poemas, que são números, também estão envolvidos por esses sinais gráficos. Essa maneira de destacar – em especial com o uso de colchetes – também é utilizada em várias palavras, versos ou partes de versos dos poemas.
[(3)]
queira-se!
como se quer o outro
: [defeituoso]
mas se quer
porque se ama
se quer em suma
[carne e osso] vícios muitos
[(8)]
o vazio é cheio
o cheio é meio
o meio é raso
funda alma funda
um [razio] coração profundo
[fundura] escorre pelos poros
filtra nas veias
[findura] escapa pelos polos
finca nas artérias
dentro [ardor] se agrega
dentro [a dor] se secreta
adernando o agudo
adornado agridoce
ríspido gosto do vaso
estro histérico de um corpo eriçado
Certa vez, num dos encontros do coletivo “Leia Mulheres Teresina”, no qual a obra analisada era o Asas de Pedra, dei a minha impressão sobre esses sinais gráficos, que também são usados em algumas palavras/expressões/versos ao longo do livro. “Assim é possível ler os poemas com ou sem as palavras em colchetes!”.
Não satisfeito, perguntei se havia um significado mais profundo e de onde surgiu a ideia. Ela se negou a responder. Desde então, tenho refletido sobre isso e, agora, enquanto escrevo esta resenha/diálogo, me veio uma hipótese: o uso de ambos os sinais gráficos nos títulos talvez tenha um sentido estético, visual, como se fossem desenhos de asas batendo em torno das palavras “voos” e “pedras”.
– Nayara, você destacou com colchetes muitos versos e palavras, fazendo com que os poemas possam ser lidos incluindo ou excluindo as palavras em destaque. Existe algum outro sentido para o uso desse recurso? Os títulos [(VOOS)] e [(PEDRAS)] estão destacados tanto com parêntesis quanto com colchetes. Qual a motivo?
– Traquinagens criativas. Literatura é atiçar o alívio e reduzir o sofrimento, duplicar a alegria e dividir a dor. Deste modo, a leveza na estética dos versos evita mil males e prolonga a vida dos versos. O livro é dividido em dois capítulos, onde o poema [(14)] do primeiro capítulo surgiu como protótipo dos outros. Parêntesis e colchetes dão alusão às próprias prisões da alma humana desde os títulos.
[(14)]
O amor é réu
Ora fel, ora véu
[(e)terno céu]
O amor ousa, abusa, insulta
[suscita cura nas loucuras]
O amor é juiz a fazer jus à vida
[jazz é melodia dos desejos ardentes
No trincar dos dentes que oculta alarde
(alma geme radiante-solitária)]
Abrigo dos amantes, alimento dos amados
Cafetão da lua – a puta que pariu a poesia
[o amor é a ilusão real da vida]
A sensação de ler Asas de Pedra é parecida com a de arremessar pedras o mais forte possível – até ganharem voo.
Do título aos poemas, as ideias opostas são a chave para a leitura. Relações antitéticas e paradoxos aprofundam os sentidos dos versos. A ênfase é no que nos faz humanos: medos e angústias, inseguranças e pesos, mas também leveza e coragem.
Pedras, se não arremessadas, são imóveis. Asas, se usadas, são voos e preenchem nosso espaço.
Já li o livro várias vezes, e mesmo agora Nayara Fernandes me ensina a ler – a interpretar.
– Nayara, em poesia, a interpretação mais superficial é a literal. Como você recebe interpretações literais de seus poemas?
– Não gosto de palavra acostumada, visto que quando muito reprisada sua expansão limita-se à monotonia. À medida que invisíveis aos olhos da importância, morrem antes mesmo de nascerem. Assim é o conceito sobre deficiência, o qual (socialmente) a imagem nunca supera a realidade. “Quando tenho uma preocupação, uma dor ou um amor, tenho a sorte de poder transformar em poesia”, diria Mario Benedetti.
– O inegável, que vivemos a negar diante do próprio espelho, é que somos feitos de abismos, medos e labirintos. Às vezes desequilibramos, às vezes caímos, às vezes somos incapazes. Movido contrariamente, “Asas de Pedra” é o chamado para um mergulho dentro de si mesmo, onde sobrevivemos o influxo de incertezas e erros, inseguranças e pesos das escolhas feitas diante do acontecer humanos. De modo que o estado poeta indifere a condição deficiente, porque sensibilidade é inorgânica.
[(8)]
cresci entre flores
vesti-me dos ventos
moro numa casa sem paredes
[tenho asas no peito]
o horizonte é
quem me governa
– sou inteira
[no ninho perfumado dos pássaros]
– Nayara, o livro possui muitas referências a dores, como “ferida”, “dores”, “dor”, “cortes”, “chagas”, “fira”, “sangro”, “sangrando”, “lesa”, “sofríveis”, “deletério”, “espanca”. Escrever machuca ou cura?
– Os dias são crias de famintos desejos, ferozes saudades, silenciosas lembranças: aceitá-los é tornar seu. Deste modo, “Asas de pedra” revela diversos submundos nos contextos das palavras em destaque, os quais a sensibilidade é inorgânica e a deficiência é cegamente surda. Afinal, todo e qualquer escritor alimenta um caos dentro para dar luz fora. É preciso entender que viver é a ilusão da ordem, a vida é a própria desordem encarnada. Entre o espinho e o sangue escrever é morrer e renascer a cada segundo.
[(19)]
a vida é um corte
que [sempre sangra
e não] nos mata
entre os punhos ocos os socos
os ócios os pulsos e os ossos
no tamborilar [dos silêncios]
onde o corpo se põe [e se opõe]
prenhe de versos
prenhe de inércias
a vida é uma eterna morte
[doer, dói invariavelmente]
feito faca sem gume
o tempo mastiga a memória
o vazio a angústia
arrancando de mim todos
os pés os caules as raízes
amputado do próprio corpo
deixaram-me o coração na mão
à deriva o que me salva é a poesia
[(16)]
se o coração bate
o que sinto espanca
não sinto muito
[sinto tanto]
quanto o horizonte
sente liberdade
que pássaros me recitam
cantam fora o que há [dentro]
encurvado no peito
quieto no silêncio
espreitado em qualquer
suavidade [intrínseca]
concreta doçura amarga densa
e onde cantam os pássaros
amanhecem em mim raios di’versos
recitando minha alma
conta o passaredo
leveza roubada do vento
: eu
tenho asas de pedra
– Nayara, explica como você conseguiu publicar o livro pela editora Edith.
– “Asas de pedra” é um poema composto em 07/2014, destinado à postagem semanal de um blog alimentado à época. Em meados do ano seguinte integrei as oficinas de criação literária do Projeto Quebras — idealizado e ministrado por Marcelino Freire — que projetava descobrir novos poetas longe dos grandes centros urbanos. Na ocasião, tendo conhecido meu trabalho, Freire fez o convite para lançar (o agora livro) pelo Selo Edith.
– Nayara, lembra daquela volta de carro que a gente deu depois do sarau na Praça Pedro II?
– Uma viagem turística dentro de minha própria cidade. Nossa vida é a história do nosso coração, é a nossa história, é a história de Teresina.