Por Alex Sampaio Nunes*
“Um outro universo ou tonal” é o quinto livro de Francisco Gomes, piauiense, nascido no ano de 1982, no Município de Campo Maior. Mora em Teresina desde os sete anos de idade. Iniciou, mas abandonou as faculdades de História e Letras.
O livro foi publicado pela editora Caravana, possui 76 páginas e está disponível para vendas no site da editora e com o próprio autor.
— Francisco Gomes, por que você escreve?
— Escrevo porque é uma necessidade. É através da escrita que vivo, resisto e existo. Ou seja, escrevo para ressignificar a minha vida, a minha existência. Escrevo para me desautomatizar.
— Francisco Gomes, como surgiu o título?
— “Um outro universo ou tonal” é resultado do sopro epifânico em pleno outono do ano de 2020. Surgiu depois de eu ter ouvido a conversa de um casal na praça Pedro II sobre o outono aqui em Teresina ser imperceptível. A moça dizia que era possível perceber a estação aqui na cidade e, para isso, bastava ter sensibilidade e parar para observar, mas o rapaz insistia em dizer que não. A partir daí, de repente, veio o “estalo”. O Inesperado me tocou. Naquele momento, fui instigado a pensar sobre. Vi que a moça estava certa, pois bastava reparar com atenção, que seria possível perceber o outono, como cada estação bem definida. Claro que se tivéssemos o hábito de contemplar, certeza, tudo pareceria como é. Enfim… Então vi que as estações do ano, aqui, são outros universos. Por isso, claro, o outono em Teresina é um outro universo outonal (ou Tonal). O título é a matriz dos poemas; o leitmotiv polissêmico que guia a poesia no Todo-poético-estético da obra. A assonância dita o ritmo e a melodia aportados nos significados do título (ou Tonal). O título, na verdade, trata-se de um título-tema. Ou como tem afirmado o escritor, poeta, crítico literário e membro da Academia Piauiense de Letras Dílson Lages Monteiro sobre o meu trabalho: “É uma poesia sobre o próprio estranhamento, a começar pelo título”. É realmente o OSTRANENIE, ou simplesmente Estranhamento, termo utilizado pelo formalista russo Viktor Chiklovski em seu trabalho “Iskusstvo kak priem” (“A Arte como processo”) ou “A Arte com procedimento”, que está presente em minha obra, a começar pelos títulos; característica identificável em meu trabalho. A minha digital poética começa pelos títulos, basta observar os trabalhos anteriores. Minha dicção poética depende desse artifício estético-poético, que está entranhado em meu (in)consciente de vivências perceptíveis de mundos e alinhado ao “make it new” de Ezra Pound e, claro, está flertando com poetas-teóricos, como Maiakovski, Mallarmé, T. S. Eliot, Octavio Paz, Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges.
O livro está dividido em quatro partes: “Noites que se acendem”, “Madrugadas incandescentes”, “Manhãs transfiguradas” e “Tardes que se apagam”
O poeta usa os ciclos da noite e do dia pra dar o tom do seu texto. A sugestão é de que há algum tipo de luz interna durante a noite/madrugada e alguma transformação quando amanhece. Por fim, a tarde se apaga.
Na primeira metade do livro (noites e madrugadas), tive a sensação de estar diante de um monstro urbano, uma espécie de lenda (como a lenda do lobisomem das zonas rurais), mas real.
Como se o poeta urbano (em vez de se deparar com algum lobisomem) se transformasse, ele próprio, num monstro.
Ou, até mesmo, uma dessacralização, uma espécie de queda espiritual combinada com elevação artística – tudo intermediado pelas forças da natureza.
Ausente
De mim mesmo
Ao sentir o gosto de março no equinócio
No mormaço da noite decomposta
Sob uivos e balbucios
Da poesia-monstro
Do humano antiquíssimo
Que habita o próprio nome
Outrora
Francisco-santo
Agora
Francisco-homem. (pág. 13)
…
Na soturna escuridão
O silêncio sagrado purifica
A poesia em revelação.
O antigo me habita. (pág. 21)
Há espaço para o onírico no plano das imagens criadas. Há, ainda, insônia.
No livro “Um outro universo ou tonal”, de Francisco Gomes, li a poesia encontrada por mãos perdidas no escuro. Li a poesia que tateia o não dito, guiada por uma luz interna.
Sem rastro
folhas estáticas no quintal
da insônia. (pág. 27)
Sem limites.
há linguagens na noite (vazantes de outros mundos). (pág. 27)
…
A alongadaindagora
noite
revela-se
em
açoite (pág. 28)
…
Venho de lugares
onde
os caminhos traçados nas mãos
são cultivados em desertos frios
de outonais madrugadas
ancestrais. (pág. 42)
Na segunda metade do livro (manhãs e tardes) acontece uma quebra. De repente, a busca no escuro acaba e várias são as possibilidades diante da luz externa. As inúmeras buscas se transformam em inúmeras opções. Dá uma sensação de alívio. Os olhos do leitor ficam abertos e expostos a tudo ao mesmo tempo.
Ofuscado, o “eu poético” vê a luz externa entardecendo e apagando. Já é um prelúdio da escuridão. E nada se pode fazer. O que resta é ser engolido pelo novo ciclo.
Eu poderia tomar um café
no Centro da cidade
observando o mundo
com a certeza
de que meu corpo não seria observado.
(…)
Eu poderia…
Poderia sentir o amor-à-primeira-vista
das putas sob
a escaldante manhã carente de maio
de desejos e fiéis clientes
Poderia
divagar às margens do desassossego
de todas as manhãs
sendo orquestrado
pela Primeira Sinfonia de Brahms.
E posso. Mas não! (pág. 51)
Só o nascer do sol
faz sentido em meu império
inca na virilha extemporal
quando
do pútrido
estrume
brota a flor
de inigualável
perfume. (pág. 53)
…
Morremos ao cair da tarde
sob o belo céu púrpura-jazz
em segredo
sem alarde. (pág. 73)
— Francisco Gomes, como foi o processo de escrita do livro “Um outro universo ou tonal”?
— Foi um processo prazeroso. Fiz os 43 poemas entre os meses de março e junho de 2020. De lá pra cá, antes de lançá-los em livro, fui lapidando, acrescentando ou retirando (o famoso processo transpirativo). Os poemas foram escritos em vários lugares e momentos específicos. Tive que flanar por aí. Captar e ser capturado pela poesia. Às vezes escrevia poemas em casa, outras vezes na rua. Enfim… Foi um processo natural, sem forçar a barra. Foi um período em que contemplei com mais frequência e observei o movimento do vir a ser de uma forma despretensiosa, sem procurar algo. Apenas me deixei levar pelo viés fenomenológico. Aprendi muito com a feitura livro. E pude perceber, de fato, que a Inspiração, a Transpiração e a Piração são minhas companheiras indispensáveis.
— Francisco Gomes, fale sobre as ilustrações do livro. Qual a intenção delas? O leitor pode construir uma narrativa visual?
— A linda capa foi assinada pelo artista plástico Jonas Vieira e as ilustrações do miolo são assinadas por mim. As imagens, capa e ilustrações do miolo, penso que se completam, pois além de estarem no campo da abstração, carregam infinitos significados. Sobre intenção, sou despretensioso. Quando meu editor (Leonardo Costaneto) me mostrou a arte da capa, não titubeei. Gostei de cara. Vi ali possibilidades que conversavam intimamente com a obra. Tá tudo no plano psicológico. As cores, as formas… A minha intenção em ter escolhido a imagem, claro, foi pura identificação. Me remeteu à infância. Vi naquela arte um cenário de como eu via o que eu não sabia descrever na infância. E vi que casava muito bem com os meus desenhos, pois foram feitos na infância e retratam as vigílias do tempo (noite, madrugada, manhã e tarde). E sobre o leitor construir uma narrativa visual, pode e deve (se quiser e puder). Acredito que uma das intenções das imagens é essa também: dar um norte ou (des)rumos para os leitores.
— A poesia é um monstro?
— Vai depender do olhar de quem olha. No meu caso, a monstruosidade que vejo na poesia tem a ver com a grandeza de ser algo inutilitário e que pode ter infinitas formas e significados. E tem também o lance do mistério e magia que a poesia envolve e nos enlaça. Alquimia pura. É esse o monstro que vejo na poesia.
— Você tem insônia?
— Às vezes. Mas no meu caso, percebi, a insônia tem ligação direta com o meu processo de criação. Toda vez que entro no estado especial, ou seja, quando estou produzindo, a insônia se instala. Depois que o livro é materializado, aí sim, a insônia se despede, mas já deixa um “até breve!”.
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Alex Sampaio Nunes, autor de “Ressuscito na Cidade Suicida” (2017) e colaborador da Acrobata com uma série de resenhas/diálogos sob o título de “Vozerio Piauiense”.
Finalmente um poeta que faz poesia com prazer, porque a maioria repete o velho chavão segundo o qual fazer poesia é sofrimento.
Embora eu tenha gostado das suas explicações, Francisco, eu acredito que a escrita criativa, seja ela prosa ou poesia, ela conversa com o leitor. E Leitor, nessa troca dialogar, vai levar consigo ele percebeu ou não da beleza daquele. Um bom texto nos toma pelas mãos e se faz escrito. Forte abraço.