Por Alex Sampaio Nunes, autor de “Ressuscito na Cidade Suicida” (2017) e colaborador da Acrobata com uma série de resenhas/diálogos sob o título de “Vozerio Piauiense”.
“Sentimento posto” é o primeiro livro de Luis Sátiro, piauiense, nascido em Teresina, no ano de 1985. Graduado em Geografia pela UFPI em 2012, atualmente o autor é professor. O livro de poemas conta com 106 páginas e foi publicado pela editora Viseu (do Paraná), em 2021. Disponível para vendas no site da editora.
— Por que você escreve?
— Não há muito tempo, eu li o ensaio do George Orwell Por que escrevo e, nessa obra, ele elenca quatro grandes motivos para escrever: i) puro egoísmo; ii) entusiasmo estético; iii) impulso histórico; e iv) objetivo político. Interpretando um pouco o que diz Orwell, eu diria estar entre os três primeiros motivos (risos). Pelo menos em Sentimento Posto, meu primeiro livro, não há um objetivo político claro, apesar de eu tocar no assunto em alguns poemas, como, por exemplo, em Arremedo de palavras. Nessa obra, escrevo para ser quem sou no exato momento em que escrevo: criador, inventor, talvez (risos). Hoje, apesar de escrever poesia não ser algo que vem sempre quando eu quero, tornou-se uma necessidade, mas é difícil mensurar.
O sentimento é o instinto do poeta.
O tempo está posto.
“Sentimento Posto” é um título certeiro.
Ao terminar a leitura do livro, percebi: li dez anos de arte. A passagem do tempo é muito presente na obra. Ao final de cada poema, o autor colocou a data da composição, sendo este um recurso bastante expressivo para demonstrar que o tempo está presente – e passa. Penso, no entanto, que mesmo o poema mais antigo, o primeiro, datado de 2010, acabou passando por releituras, revisões, reescritas (talvez!), reinterpretações, de modo que ainda está em construção. Afinal, escrever é um ato de atualização; ler, também.
Traduzir o tempo pelo olhar poético é um dos fundamentos do autor.
“O sentir de mudanças,
Todo conteúdo em fluxo
Esposando outras formas
De seguir no mundo” (Quando me é permitido perder tempo)
O tempo é feito de memória. O livro, como disse Borges, é a extensão da memória. Mas o tempo também é esquecimento.
“Minha memória não é só rio agitado
São margens desmatadas, erosão (…)” (O reclamo das águas)
Ao contrário da primeira impressão, a de que datar os poemas seria fixá-los no passado, as datas nos permitem entender que o livro inteiro está em transformação, em passagem. O autor que viveu há dez anos já não é o mesmo de agora. Aqui se percebe que o “eu poético” do livro se desmembra de seu autor, tornando-se autônomo.
Para além dos tempos, ao longo do livro, encontramos poemas introspectivos e poemas de conteúdo social.
“Almas que se perdem
em pedaços de si
deixados em certos pontos
do caminho até aqui” (Amores perdidos)
“ratos roedores de rua
filhos da noite fria e escura
vítimas da suburbia
zumbis do crack, ânsias nuas” (Ratos roedores de rua)
Quase sempre os conteúdos se misturam. O eu poético é constantemente atravessado pelos conteúdos interno e externo, numa dança de sentimentos e de reflexão.
“Não canto versos para mudar o curso
Que segue a enchente.” (Não canto versos para…)
Publicar poesia é se expor. O sentimento está posto. Se o tempo passa e a verdade dos versos permanece, ainda que com outros sentidos e novas interpretações, como é o caso deste livro, significa que a experiência passou a ter um potencial coletivo. É um livro para ser lido. Daí a identificação do leitor. É assim que o leitor acaba por se apropriar do “eu poético”, tornando-se compositor do poema ao tempo em que o lê. Publicar é inaugurar novos tempos – a cada leitura, uma nova composição.
Tudo isso porque a literatura, além de solitária, é o outro.
— Como foi o processo de escrita do livro?
— Quando comecei a escrever Sentimento Posto, eu estava num momento meio estranho. Então, não sei dizer exatamente como. Mas, posso tentar! Foi por volta de 2009, quando eu era estudante de Geografia, na UFPI, e eu passava por uma fase de mudanças, digamos assim […]. Escrever versos tornou-se um hábito e uma necessidade. Eu escrevia sobre o que me dava na telha, não havia objetivo nem clareza, sequer método. Acontecia algo, as ideias me percorriam, e por fim eu as transformava em versos. Sentimento Posto nasce da necessidade de registrar o que se passava comigo, no início. Depois, à medida que eu fui me acertando, um olhar mais atento voltado para o mundo ao meu redor, foi tomando espaço também. Então, eu diria que Sentimento Posto nasceu desses dois olhares: um mais voltado para dentro de si e outro mais voltado para o mundo ao redor, sempre oscilando entre um e outro.
O processo de escrita se deu no ritmo dos acontecimentos, e essa coisa de registrar as datas serviu como uma maneira de organizar e arquivar os poemas, primeiro em cadernos depois no computador. Eu escrevia quase que diariamente, principalmente durante as madrugadas de insônia. Isso me acalmava. Cada poema recebia título e data de nascimento, às vezes eu registrava até mesmo o horário. Daí que quase tudo que eu escrevi entre 2010 e 2019, com um hiato entre 2013 e 2016, segue desse modo. Na verdade, até hoje faço isso. E à medida que os arquivos foram se avolumando, o livro foi tomando forma. Até cultivei um blog durante certo tempo, com o mesmo título da obra, mas o deixei de mão. Sentimento é sensibilidade, ato ou efeito de sentir e sentir-se. Posto, conjugação do verbo pôr no particípio passado. Sentimento Posto é aquilo que foi feito deixado guardado transformado ressignificado e agora posto nas páginas que compõem a obra.
— Creio que um dos temas do seu livro seja a passagem do tempo (pela estratégia de colocar as datas em que os poemas foram compostos). Quais outros temas você trabalhou?
— A passagem do tempo é central na obra, certamente. Mas, falar do tempo inclui também o espaço, afinal, nada em nossa existência está situado fora do tempo e do espaço. Então, mesmo quando não se faz referência ao espaço, ele está lá! O livro trás certa tensão entre a individualidade do poeta, descrito como “parte”, e o coletivo, descrito como “todo”. Eu digo para você ler, porque nada é definitivo na obra, há sempre espaço para interpretação! O poeta fala de violência, medo, morte, vida, deixar coisas para trás, seguir em frente, resignar-se… Imagina o que acontece na vida de alguém no passar de quase uma década! O livro é o poeta fazendo seu mundo ao ponto que faz-se a si.
— O primeiro poema do livro é de 2010 e o último é de 2019. Como você lida com a passagem do tempo?
— Na obra, o eu poético percorre uma trajetória de quase década (2010-2019), e vai progredindo em seu mundo entre mundos, onde o sentir das mudanças, convertido em conteúdo-fluxo, esposa outras formas de seguir no Mundo. Ousando reconstruir o habitar que tanto maneja, recriando, a partir do já criado, o que sua massa plástica e educável conseguir. Para daí cantar versos, mas não simplesmente versos para agradar os sentidos, nem mimar o próprio ego, e sim para sair de si, e alcançar o outro – o leitor, quem sabe: para sentir o gosto, para saber o que há do outro lado e enxergar a si com outros olhos. No fim, é como o fechar de um ciclo, esse voltar os olhos para dentro de si – sabendo que há sempre recomeço. Aos poucos, fica a certeza (se é que existem) de que mudamos muito, com o passar do tempo, porque estamos sempre em busca de uma vida melhor: viver da melhor maneira possível!
Lidar com o tempo é simplesmente estar aqui: ser quem sou agora sem nunca deixar esquecer quem fui para daí compreender a mim em movimento, e com o que resta disponível (re)fazer-me a mim para seguir em frente. Mas não se trata de um ato puramente individual, pois ninguém é o que é sem o outro, sem se relacionar com os outros, sem estar situado em algum lugar no tempo e no espaço.