Posso dizer que foi o surgimento de algo novo para mim, um nascimento de uma sombra, que buscava intensamente sua dualidade, um equilíbrio. E até peneirar esse equilíbrio, lapsos de acontecimentos e sensações indesejáveis, minavam os meus dias e minhas noites. Em meio a essa turbulência emocional, resultou em um rompimento e um distanciamento entre a matéria (corpo) e algo não palpável, que era a minha “alma”.
E era ela que precisava de um refúgio, até tudo se aconchegar e se estabelecer um entendimento. E esse refúgio, resultou em minha colagens com viés surreal. Onde eu misturo sonhos, fantasias, devaneios, inconsciência, ausência de lógica. Como parte do meu processo artístico, como um atributo inquietante e bizarro da minha vida diária, em busca do meu autoconhecimento. Esse estímulo, vem de sensações não concretas de irrealidade e rompimentos diários, que precisam de uma organização e uma amenização. E essa organização abstrata só é acalmada, na hora que eu parto para uma criação.
Não me particularizo a nenhum artista específico. Não me agrada estar engessado. Mas posso dizer, que toda a vanguarda surrealista, da época do movimento do André Breton, me fascina. Posso citar Max Ernst como matriz de um conceito, por suas colagens transcendentais e incomuns. E os filmes do David Lynch são certamente pontos de referências quando eu buscava uma linguagem preto e branco. Outro alimento que não vivo sem, é a música e isso é uma base fundamental nas criações. Acho que me encontrei, em um caminho de expressão.
Como desenho zero, esse mecanismo certamente me conduziu a personificação artística. Utilizando o Photoshop como ferramenta principal, trabalho com sobreposições, cortes e texturas. O material utilizado são imagens geralmente de livros, ou catálogos de domínio público. Os temas que levo na pesquisa, diversificam muito. Desde materiais de geometria, física, matemática, química, astrologia, biologia, botânica, medicina, teologia, anatomia, contos, etc. Nenhuma composição é junta, cada parte é construída, se adaptando até chegar a atmosfera que eu anseio.
Não tenho nenhum xodó, mas posso dizer que as composições atuais estão bem mais maduras e me dão brilho nos olhos. Acho que colocaria as atuais como destaque. Elas demostram firmemente o que sou hoje. Mas não tenho desdém de nenhuma, amo todas. Cada uma em seu momento. Para finalizar, vou deixar um poema do Fernando pessoa.
Nesse relato, ele usa um de seus codinomes, Álvaro de Campos.
– Esta velha angústia
Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que…,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim…
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!
Para conhecer o trabalho de Bruno Café Sforcin acesse:
https://bruno-cafe-sforcin.minestore.com.br/
São Paulo, 2020.