TRAVESSIA

| |

Por Maíra Dal’Maz

penduramos cortinas tortas com o silêncio da noite, mas quem segura o varão é a palavra que fala que jamais haverá pássaros a serem dados de presente. casco de tartaruga, casco de boi, casco de mãe e barata. rede de palha mordida, banho de bica depois da chuva, a língua da noite cobrindo nossos calcanhares com cheiro de musgo e restos de concha. e um gosto de alga marinha no fundo da garganta, gosto de nado, cortina calada. alga é fundo, gosto de nada. sempre que inspiro com a força dos algodões — força de enterrar — algo de mar explode entre os dentes: um grão de areia, o leviatã, a pedra empacada na traqueia, as malas abertas sob a sombra do coqueiro. gosto de mar em costa. bagunça de solo animal, sentindo o cheiro do tempo.

nunca senti calor à noite, ainda que meus cabelos não moldassem a armadura que é o meu rosto, que é o meu focinho, que é o meu casco. é bonita a rua com a sua boca remexendo minha cortina de pele, minha cortina de pelo, essa mandíbula torta como os verbos, como as palavras que erramos. levanto o olhar quando você sorri alto, quando seu riso late, quando sua mandíbula tremelica como rabo de cobra no cio. está sonhando com as águas sem entender que são fundas, viscosas, com um ninho. você não sabe o que significa água, mas a enxerga da mesma cor que eu, animal que não sabe onde começa.

Remedios Varo, Encuentro

você me acorda cada vez que empurra minhas costas com a gramatura da ferida, que é o fato de suas pernas saírem do porto, quatro patas que arrastam víveres, arrastam cios perdidos. levanta a cabeça quando movo um pouco de álcool para dentro, uma rua com movimentos frios, leitura inquieta entre asas e corcundas. o globo da morte, agora, gira, gira, substituindo seu queixo trêmulo por uma roda de gatos de rua.

ainda não esqueci daquele que nunca pôde olhar para as estrelas. saudade que se esconde no crânio. não esqueço que saí do ralo direto para a cama. sal e cabelos, luz amarela, troncos, dentes, latas abertas, um caudal de objetos que não ligo. estar de barriga para cima é uma dádiva, e não morremos apenas por nos encontrarmos nesta posição.

vem se aninhar perto do meu focinho, com o teu fôlego, sonhar com a travessia. vontade imensa de esquecer a fome, a vergonha, o nosso cio arrancado. meu carinho é um dedo torto levando comida na sua boca, vem, estou com as cobertas, os cascos, as garras, as mãos, a posição mais antiga — ventre contra ventre, coisa contra coisa. casco no fundo da garganta, bicho que não sei. nós, um nome bifurcado. cavamos e  cuidamos, como se roem as coisas, com ferrugem e devagar.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!