Por Sara Pardo Del Río, Jornalista e escritora
Março, 2025
Buenos Aires, 1975.
Ao fundo, pelas ruas da capital argentina, soava um tango cantado por Jorge Falcón, um artista recente da época cuja voz provocava o levantar das taças argentinas à vontade de um canto estrondoso e fascinante. Por aquelas ruas caminhava uma jovem de uns 20 anos: cabelo preto, tez branca, magra, de baixa estatura, com um andar elegante e sutil, e um carisma como nenhum outro.
— Leticia, Leticia, para! — gritava Marita, sua amiga de toda a vida.
Mas Leticia, distraída pelo enamoramento juvenil que sentia por Agustín De Las Casas, seguiu em frente para vê-lo de perto, sem saber que Agustín, o motorista do açougue La Tampa, seria seu vil assassino.
No centro de Buenos Aires, em uma sexta-feira, 2 de março de 1975, Leticia caminhava pelos bares próximos à casa de Marita Cortés, uma jovem de origem judaica e pais espanhóis que haviam fugido para a Argentina durante a Guerra Civil. Marita era uma jovem mimada, envolvida em uma imaginação ridícula e luxos que não se podiam explicar. Conheceram-se no colégio para senhoritas.
Leticia Díaz, enquanto isso, era filha de um operário e uma dona de casa. Tinha uma beleza inconfundível, limpa e serena, e uma amabilidade que não lhe fazia justiça nem ao seu passado nem à sua realidade. Vivia na invisibilidade que lhe impunha o machismo de seu pai e o mutismo medroso de sua mãe, o mesmo que herdou e aprendeu. Era excelente em tudo. Talvez por isso Marita se juntava a ela, porque de Leticia aprendia, embora não tivesse a mesma necessidade. Leticia, sim. Ela queria fugir de sua casa, dos gritos, das pancadas na mesa, do rosto entristecido de sua mãe, da ira compulsiva de seu pai frustrado.
Sua motivação era ser professora ou secretária. Mas ao se graduar no colégio, sequer pôde se inscrever em cursos ou na universidade. Em casa lhe perguntavam para quê, que sua única preocupação devia ser conseguir um esposo que lhe desse casa e filhos sadios. Os sonhos de Leticia se espatifavam cada vez que seus pais transgrediam suas ideias. Mas esse mutismo, esse medo, a levou justo a fazer o que eles queriam.
Em 2 de março de 1976, indo comprar uns fios e material de costura que sua mãe Rosaura lhe havia encomendado, conheceu Agustín. Um caminhoneiro do açougue La Tampa. Galã da época, silencioso, gostava de sentar-se para ouvir tango no centro. Leticia gostava desse silêncio, desse mistério que emanava dele. Agustín a olhava passar sem dizer muito.

Leticia, quase sempre desmerecida, sentia que a vida não podia lhe oferecer o mesmo que a Marita, como conhecer um Fernando Toledo, filho do banqueiro amigo de seu pai. Sentia que estava predestinada a repetir a vida humilde de sua mãe. Tinha a esperança de que, se Agustín se interessasse por ela, fosse menos violento que seu pai.
Passaram algumas semanas de olhares, flertes e sinais entre Agustín e Leticia. Soavam então as garrafas de cerveja chocando entre os malandros com quem Agustín se juntava, acompanhados por suas queridas. Na noite de 16 de abril, Leticia e Marita passaram perto do bar onde Agustín costumava gastar sua quinzena. Já bêbado, Agustín gritou:
— Ei, você, bonita! A baixinha! Sim, você, vem cá. Te convido ao que quiser, a você e sua amiga a fina.
Leticia, cegada pela emoção de receber atenção pela primeira vez, aproximou-se. Pediu um drinque com rum, limão e Coca-Cola — mais Coca-Cola que rum — para que em casa não notassem que havia bebido.
Marita a olhava com insistência, pedindo que fossem embora, que não era o lugar nem o momento. Leticia desviou o olhar e ficou.
— Vai você, guria. Eu quero uma copa. Pela primeira vez na minha vida quero viver algo diferente. Te ligo amanhã.
No dia seguinte, Marita ligou para a casa de Leticia. A mãe atendeu:
— Bom dia, Marita. Olha que a Leti está meio agoniada, chegou ontem à noite e está com tonturas. Vou deixar o recado para ela te ligar daqui a pouco.
Passadas as 10h da manhã, Leticia, com um pouco de ressaca, ligou para Marita com ilusão. Contou que havia conhecido o homem de sua vida. Marita, desgostosa, disse que não acreditava que aquele fosse um homem para ela, que merecia algo melhor.
A amizade inabalável de Marita e Leticia sofreu uma ruptura naquele dia. Não foi por ciúmes nem ambição, mas por cegueira. A cegueira traumática de nunca ter sido valorizada, nem de menina nem de adulta. O pai de Leticia a havia tratado tão mal que, em seu ser incorruptível, pensava que Agustín era o melhor que lhe havia acontecido.
“Pobre Leti!” – pensava Marita.
Passaram os meses e, um dia, chegou à casa de Marita uma carta de Leticia:
Querida, vou me casar. Sei que não nos falamos há muito tempo, mas me acompanhe no dia mais importante da minha vida. Esteja ou não de acordo com o
homem que escolhi, sempre te escolhi como minha amiga da alma, minha irmã. Não me deixe sozinha. Tenho tanto para te contar…
— Leti.
Em 12 de agosto de 1977, Leticia se casou. Marita lhe levou um diário grande, uma caixa de lenços e um crucifixo que havia comprado na Itália especialmente para ela, com um cartão que dizia:
Te dou o mais importante: folhas para que desabafe a fúria interna que carrega no talento do que escreve, uns lenços para que limpe a pureza de sua dor e um sinal de sua fé sobre uma humanidade que não te merece. Te quer, Marita.
Leticia, com o olhar arrependido, obrigada pela tortuosa pressão de seu pai e pela ousadia de um anel barato, casou-se. Passou sua lua de mel em Bariloche e depois uns dias no Chile. Foram momentos bonitos, mas aí emergiu a verdadeira personalidade de seu esposo.
Um homem frio, inútil, mantido. O primeiro a permitir que ela trabalhasse, mas só para convertê-la em sua escrava. Após o casamento, Leticia conseguiu emprego como caixa em uma sapataria. Agustín havia sido despedido do açougue por roubar carne e revendê-la. Leticia não sabia. Só queria ajudá-lo.
Ele a vigiava, a controlava. Quando se embriagava, dava-lhe surras tão fortes que ela terminou mancando, perdendo a mobilidade de dois dedos. Olhava para o chão. Já não havia luz em seu olhar. Apenas sombras.
Foi pouco mais de um ano. Leticia não voltou a falar com ninguém. Trabalhava, servia Agustín, trancava-se no banheiro para escrever no diário que Marita lhe deu, limpava-se com os lenços e rezava em silêncio a Deus para que Agustín se cansasse e fosse embora com alguma das queridas com quem lhe era infiel.
A morte…
13 de fevereiro de 1978.
Drogado, bêbado, violento e com pouca lucidez, Agustín preparou uma serra, duas facas e dezesseis sacos de lixo. Em dois deles jogou os poucos farrapos de Leticia; nos outros catorze, cada um tinha uma etiqueta. Às 16h daquele dia, pôs em volume máximo um aparelho de som com os tangos mais famosos da época, sobretudo aqueles que falavam da traição de uma mulher. Às 19h, cansada, com fome e a quinzena adiantada, Leticia chegou em casa. Pediu a Agustín que abaixasse um pouco o volume, serviu-se de um chá enquanto esquentava a comida, deixou sobre a mesa da cozinha o dinheiro e tirou os sapatos. Agustín disse: – “Você está tão bonita, tão bonita para terminar assim, que pena você me dá…”.
Leticia, acostumada a esse tipo de comentários, olhou para ele sentenciando-o, tomou o chá, entregou-lhe o dinheiro, ele guardou e disse: – “Vem, senta. Olha essas sacolas que não têm papelzinho branco, joga sua roupa que está no quarto”. Leticia obedeceu pensando que aquela era sua liberdade…
Às 20h30, voltou a pôr o volume do aparelho de som, que retumbava nas paredes. Gritou com Leticia: “Abaixa e cala a boca!”, bateu nela o máximo que pôde, esfaqueou-a com selvageria vinte e nove vezes, pegou a serra e começou a empacotar cada extremidade em cada saco. Marcou-os, depois limpou tudo, jogou bórax e todo tipo de líquidos de limpeza. Na carroça do açougue para quem vendia tráfico de gado, colocou o corpo de Leticia e a enterrou em um terreno nos arredores de Buenos Aires, com uma cruz e uma placa que dizia: “Adeus, bonita”.
Durante meses, a voz de Leticia se apagou, mas uns cães mastins encontraram uma sacola sobressaindo daquele terreno. Um fazendeiro as tirou e encontrou os restos de Leticia. Entre seus pertences encontrava-se um papel com o endereço da casa onde Agustín vivia, como se ela quisesse dar pistas de quem a matou. Também estava em um rosário o número de Marita. Ela foi a primeira a ser chamada, contaram-lhe tudo e ela culpou Agustín. Ligou para os pais de Leticia. Seu pai foi à casa do genro, olhou-o cortante e olhou a foto de sua filha; sem arrependimento, disse em voz baixa: “Quem sabe o que você fez com esse filho da puta para que ele a matasse assim? Você é a culpada do que te aconteceu”. Marita, envolvida em raiva, cuspiu em seu rosto e disse: “Vá embora! Você é pior que o próprio assassino, vá embora!”. A polícia chegou e prendeu Agustín, que já tinha outra ficha na polícia com muitas acusações. Marita ficou sozinha procurando algo de Leticia no quarto, pegou as fotos, jogou as coisas de Agustín fora e, debaixo da cama, havia um azulejo que soava oco. Marita o quebrou com um martelo e encontrou o diário, os lenços e o crucifixo. Sobre o diário dizia: “Para: Marita”. No diário, Leticia contou seus piores momentos, seus dias, sua vida. Nas últimas páginas pedia perdão a Marita por não lhe dar atenção e suplicava que, se algo lhe acontecesse, fizesse justiça, que falasse, que não deixasse sua voz se apagar.
Dias depois, já com o corpo inteiro de Leticia que o necrotério havia devolvido para enterrá-la, Marita confessou por que nunca se interessou por nenhum homem. Disse: “Minha querida Leti, eu te amei, eu te amei com minha vida, você era o amor da minha vida em um mundo onde ninguém é livre, nem de pensar nem de fazer. Não havia em meu corpo alma para ninguém que não fosse você. Eu fui quem deveria ter se casado com você e beijado seus pés e sua cabeça, mas como aquele tango que te dediquei um dia no colégio, beijando sua bochecha: ‘Me proibiram de te amar’. Adeus, amor da minha vida, me perdoe por não ter a valentia de te separar de seus medos”.
Da voz de Leticia, restou apenas um último eco no papel e o silêncio característico de sua dor que todos recordavam. A mãe de Rosaura nunca se perdoou por ter dado aquele exemplo, tomou forças e sem pena pôs o pai de Leticia na rua, onde morreu moribundo e esquecido. Marita lutou eternamente buscando justiça para Leticia. Agustín morreu na prisão torturado por dois homens que só estavam lá por tráfico de armas.
Nota da autora:
Esta história é fictícia, mas se baseia na lembrança de incontáveis mulheres assassinadas por feminicídio em todo o mundo, especialmente nos anos 70. Naquela época, o conceito era invalidado e a justiça ignorava a alarmante cifra de mortes femininas, inclusive nas mãos de quem compartilhava o lar com as vítimas. Esta crônica se inspira na memória histórica de silêncio que nos acompanhou, onde mulheres como Leticia foram estatísticas esquecidas. A crueza desta narração busca refletir uma realidade vivida por muitas.