Costurando reflexões psicanalíticas

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Na conferência de encerramento da II Jornada de Luta Antimanicomial (homenageando Nise da Silveira), as psicanalistas Milena Albuquerque, Filadefia Sena e o historiador Aristides Oliveira conversaram sobre os desafios enfrentados na prática psicanalítica contemporânea, bem a relação entre arte/psicanálise, o impacto histórico do Sanatório Meduna no imaginário dos teresinenses e a importância que o Projeto Casulo exerce no acolhimento das juventudes na Universidade Federal do Piauí. Outros temas foram abordados como os modos de elaboração da narrativa historiográfica do movimento psicanalítico, explorando a trajetória de Karen Horney como ponto de partida para refletir a questão de gênero nesse debate.

FILADELFIA: É bom finalizar hoje esse encontro, essa jornada, mas assim, é o momento da tarde que eu quero agradecer a muitas pessoas e também não deixar ninguém fora.

Primeiro a vocês que vão transmitir para nós dados importantes que a Psicanálise precisa se debruçar ainda, né? Isso vai ser interessante. Quero agradecer aos jovens que são monitores. Obrigada.

E a sociedade civil que está aqui com a gente. A sociedade acadêmica também está aqui com a gente. Meus alunos sempre estão aqui presentes. Obrigada. Há um lugar público que a gente pode participar e pode fazer parte dessa construção, não só teórica, mas histórica também. O projeto Casulo está comemorando oficialmente oito anos, mas eu conto sempre os dez anos, né Milena? Ele começa em 2015, dez anos atendemos aos jovens universitários.

Nós fazemos clínica psicanalítica desde a universidade, atendemos gratuitamente aos jovens. Isso é uma inspiração cada um de nós.

E isso é um sonho do Freud que se estendesse a toda a Budapeste, onde vai dar um pontapé inicial de toda essa trajetória de tornar possível a Psicanálise a todos os cidadãos e ele com isso quer criar uma política pública onde a Psicanálise possa ser a referência nos atendimentos.

E nós estamos fazendo isso. Essa é a nossa capacidade de reeditar o momento presente, a contemporaneidade, o que Freud fez em 1800, quando começa, no final dos anos de 1800, século XIX e século XX.  Então ele deixa um legado para a humanidade. 40 anos de estudos.

E nós pensamos que somos continuadores. Com aquilo que ele não deixou completo, porque eu também penso que o conhecimento não tem o conhecimento completo. Eu penso que os tempos vão dando a nós os desafios para pensar novamente a psicanálise.

Sou eu filha de psicanalista, a Milena é psicanalista, formamos lá no Casulo pessoas que querem trabalhar com a psicanálise e estamos fazendo esse trabalho aqui na universidade, onde fomos acolhidos neste centro. Foi o CCHL (Centro de Ciências Humanas e Letras) que disse: “venha, nós queremos você aqui”. E nos deu as condições físicas para estarmos aqui e atender as nossas juventudes.

E eu digo isso com muito orgulho. Pessoal, mas tudo isso de horas de atendimento? A cada semestre a gente contabiliza quantas horas a gente tem de atendimento. E a contabilidade do ano passado foi de que o primeiro período de 2014.1, foram 1.052 horas de atendimento. Se a gente divide isso para cinco psicólogos, a gente vê o quanto de trabalho isso é de 2024.2 foram 1.372 horas.

Parece que eu tenho isso gravado porque eu passei… nós estamos na reta final de uma pesquisa sobre saúde mental das juventudes. É um trabalho inédito que será lançado nesse segundo semestre pelo Casulo.

Análise promove o cuidar dessas pessoas através do Casulo. É isso que nós fazemos.

Casulo, hoje, um professor pensa: “ah, eu não sabia que o Casulo fazia tudo isso, eu achava que era só atendimento”. Ele pensa que atendimento não tem estudo. Não tem uma continuidade, eu não posso nem dizer que sou psicanalista se eu não for capaz de também ser analisada, estudar, também fazer supervisão, É um tripé significativo dentro do trabalho que a gente faz.

E nós fazemos isso.

Hoje, o Casulo acolhe jovens que estão nos cursos de psicologia fazendo clínica psicanalítica. Então, pra nós, e isso numa instituição pública, pra nós é tudo de bom, tá certo?

Então é com um coração muito aberto a vocês que estão aqui, ao respeito a vocês, que hoje a gente traz para a nossa conversa, para finalizar esse evento que começou dia 9 de junho, que a gente traz a Milena, Mestra em Filosofia, Psicóloga de Formação, e ela vai trazer para nós nessa conferência, eu chamo de conferência pública, tá?

Porque eu sempre dizia que a loucura não conhece confinamentos, não deve conhecer confinamentos e as nossas palestras serem públicas. Mas como é de tarde e a universidade não tem uma estrutura de tomadas que a gente possa colocar algo para funcionar, então a gente tem que vir para essa sala de aula.

Mas nós vamos ter uma Universidade Federal no futuro que ela vai ter os ambientes públicos capazes de promover essas condições. E também é o nosso clima, e isso eu quero deixar vocês confortáveis.

A nossa conferência Arte e Psicanálise, com a Milena: “O visível e o oculto verso e o reverso da mesma moeda”.

Vamos ver o que ela tem nesse título tão instigante, o que ela tem a nos dizer sobre a arte, sobre essa moeda de duas faças, sobre esse lugar também do oculto e do que é visível, do que se vê e do que não se vê.

E também temos o Aristides Oliveira, que nós conhecemos em Floriano, foi em Floriano que nós fomos fazer uma fala sobre o Casulo, e ele fazia discotecagem, eu me encantei com as músicas que ele trazia do meu tempo.

Eu já sou velha, eu digo assim, as coisas eram do meu tempo, a vitrola era do meu tempo, a música da Elis, as músicas que ele trouxe eram músicas que eu estava menina de 14 anos, eram as músicas que o meu pai ouvia, que eu ouvia, que a minha mãe gostava de deixar tocando em casa, Então era isso, essa proximidade é muito boa.

Quando eu digo assim, quem me introduziu hoje, a Milena me fez lembrar isso, quem me introduziu na psicanálise foi meu pai. Ele tinha um amigo que era médico, francês, e que tinha uma coleção de Freud em francês. E quando ele voltou para a França, ele me deu para o meu pai essa coleção.

E o meu pai lia em francês para mim. Psicanálise. Era uma garotinha. Eu já nasci nisso.

Eu já nasci nesse ambiente, mas o Aristides vai trazer a Karen Horney e o apagamento na historiografia da Psicanálise. Por que houve esse apagamento? O que a Psicanálise não traz dela que podia ter utilizado? Tem uma história tão boa aí por trás, tá?

Então a gente vai ouvir esses dois estudiosos da área, tá bom? E já a gente vai agradecer a vocês por isso. E no final nós teremos o resultado dos trabalhos que foram apresentados hoje pela manhã das produções acadêmicas.

Filedélfia, Aristides e Milena.

ARISTIDES: Oi gente, boa tarde a todos e a todas. Gostaria de agradecer a presença de vocês aqui. Fico muito feliz em poder colaborar um pouco com essa discussão envolvendo psicanálise, porque eu sou um psicanalista de formação, eu sou estudante de psicanálise, estou entrando nesse universo e tenho feito algumas leituras que tem me inquietado.

Sou um historiador me metendo no meio de psicólogas, de psicanalistas, eu tô entrando nesse universo agora, e eu estou muito feliz por isso, e queria trazer um pouco dessas leituras que eu venho fazendo. E aí coloquei o nome da minha fala de “Karen Horney e o apagamento da historiografia da psicanálise”.

Porque sempre me interessei na História por entender como as narrativas são construídas. E dentro desse universo de estudar as narrativas históricas, a gente vê que existe uma elaboração discursiva que imortaliza figuras e apaga intencionalmente outras.

A gente vê isso na História quando a gente fala, por exemplo, dos cânones como Gilberto Freyre, que os historiadores têm medo de questionar, a grande maioria tem medo de questionar, uma figura controversa. Então, sempre gostei de estudar esses nomes marginalizados. Esses nomes que foram colocados de escanteio e o que a gente faz para trazer esses nomes de volta e problematizá-los.

Quando estou lendo Freud e a história da psicanálise, paguei uma disciplina na formação que chamada “História Política do Movimento Psicanalítico”. Aí o professor começou a falar e ele mostrou uma espécie de organograma com vários nomes e muitos homens brancos, europeus, ocidentais. A Karen Horney ficou ali no canto. E aí perguntei: “professor, e aquela ali, quem é? Você não falou muito dela. Você falou aqui dos discípulos do Freud, dos nomes que acompanham o Freud. E notei que a Karen ficou ali no canto. Quem é Karen Horney?”

Ele disse: “é uma psicanalista alemã e pronto. Passou o slide e foi embora”.

Isso ficou na minha cabeça, né? E o tempo todo ele se referindo a homens, psicanalistas homens que tem uma importância muito grande. Aí ele cita a Melanie Klein, um nome mais conhecido, mas a Karen Horney nada.

E eu pensando: “não, essa mulher aí… alguma coisa aconteceu para ela não ter tanta importância para o professor”. Agora eu estou fazendo uma leitura paralelo com as obras do Freud, porque enfim, a gente tem que ler Freud, não tem como escapar disso.

Conheci esse livro dela, “Os Novos Rumos da Psicanálise”, e foi nele que eu senti o primeiro impacto e comecei a compreender essa questão do apagamento dela. Um apagamento que não foi gradativo.

Geralmente as pessoas dentro da história, elas passam por um processo de apagamento. No caso dela, não. Ela foi realmente retirada de cena e teve que criar o seu espaço de protagonismo, já que boa parte dos discípulos, dos seguidores de Freud, colocaram ela de escanteio.

Então, a minha perspectiva é estudar a historiografia e a historização da psicanálise para entender como foi que a Karen Horney e outras que devem ter no meio do caminho, que eu vou descobrir nessas leituras, como é que essas engrenagens discursivas operaram para tirar, remover a figura da Karen dessa narrativa da psicanálise.

A primeira coisa que eu percebi quando fui pesquisar as obras da Karen foi justamente a falta de bibliografia atualizada sobre ela. Recentemente, a editora Auster lançou um livro dela, que é “A Personalidade Neurótica do Nosso Tempo”. E eu achei curioso, não existe outras obras atualizadas sobre ela.

E aí eu descobri uma pesquisadora que escreveu – ela é de Porto Alegre – uma tese, a Patricia Mafra, chamada “A Recursa da Vagina, Karen Horney e o Feminismo e a Feminilidade na Psicanálise”. Eu comprei esse livro e fui lendo pra entender porque a Karen realmente é tão difícil de ser acessada.

O livro Patrícia me serviu de orientação pra conduzir essa pesquisa em andamento. Então a Karen, no começo dos anos 30, em 32, ela foi para os Estados Unidos e ocupou o cargo do Instituto Psicanalítico de Nova York, em 35, mas por ela ser uma dissidente, digamos assim, uma questionadora da obra do Freud, ela foi expulsa do Instituto em 1941 por esse motivo.

“Você não é do nosso grupo, você não é do nosso meio. questionar Freud? Como assim questionar Freud?” Uma mulher, nos anos 30, questionar o pai da psicanálise, o fundador da psicanálise.

E por essas divergências, ela e vários outros psicanalistas, como Eric Fromm, que era muito ligado a ela também, inclusive ela trabalha muito com ele nas suas pesquisas, foram removidos do Instituto e ela criou a Associação Americana para o Avanço da Psicanálise, que existe até hoje.

Para vocês terem uma ideia desse processo, eu gosto de dizer essa palavra: intencional, um processo intencional de remoção da Karen Horney e do processo de contribuição para a história da psicanálise.

E ao longo da minha fala eu vou explicar porque ela foi tão marginalizada. Certo?

Então, a Patricia Mafra, ela já chega colocando a pauta em dia: “quem atrapalha a narrativa oficial e questiona o cânone deve ser removido”.

Ou seja, a Karen é como se fosse uma “pedra no sapato” da narrativa do movimento psicanalítico guiado e construído pelo Freud. Chamavam ela de “militante”, a escrita dela faz parte de uma “sedução feminista” muito inspirada no calor do momento, “ela não está agindo com a razão”, simplesmente pelo fato de ser mulher.

E isso nos anos 30, em que o machismo, essa questão da estrutura patriarcal na construção das práticas sociais ser muito forte ainda hoje, imagina naquele período.

Então, por ela ser uma das psicanalistas que marca o ponto de partida para construir uma psicanálise feminista, ela acabou sendo maldita pelos psicanalistas homens brancos, europeus e norte-americanos daquele período. Porque ela vai exatamente questionar a centralidade da figura masculina na teoria psicanalítica.

Esse é o ponto que coloca ela como uma figura não muito bem vista no meio psicanalítico daquele tempo.

A Patricia Mafra cita a Rosemary Balsam e ela diz: “foi observado que quem desafiou a centralidade do complexo de édipo foi condenado a sair desse meio”. Então a Karen teve que criar os seus próprios caminhos, teve que criar o seu próprio meio para difundir as suas obras. Aí, voltando à questão dos livros, né?

Quando fui procurar, achei uma editora que atualmente publica Karen Horney (A Personalidade Neurótica de Nosso tempo): a editor Auster. Descobri que as últimas publicações da Karen Horney no Brasil, elas foram editadas nos anos 60 pela editora Civilização Brasileira, que comprou na época os direitos autorais da Karen e depois disso não há nenhum registro que coloque ali a obra dela em evidência.

Aqui nós entramos na discussão que envolve o mercado editorial, quando se fala de livros sobre psicanálise. Temos Companhia das Letras, que publica psicanálise, principalmente pelo braço da Zahar. Tem a editora Blucher, Artes & Ecos, Paidós, mas a Karen não está em nenhum desses lugares.

Então assim, a minha pergunta é: “o que que desinteressa tanto o mercado editorial brasileiro em não trazê-la de volta? Qual é o mistério ali que tira Karen Horney desses catálogos editoriais?” Não dá para achar natural uma figura que teria uma contribuição muito grande pra trazer pra gente não estar entre nós.

E eu conversando com pessoas experientes da área da psicanálise aqui em Teresina, achei curioso que muita gente disse: “não, eu nunca li, já ouvi falar”. Então, voltando para o livro da Mafra, que eu estou compartilhando com vocês, ela fala uma coisa interessante: “Freud também arrogou para si o direito de determinar as fronteiras e as disputas que deveriam ser estabelecidas no campo durante a sua vida, que ao nosso ver, põe em risco justamente a amplitude e a abertura à diferença dessa discursividade”.

Ou seja, a Karen traz uma linha de pensamento que vai na contramão do pensamento freudiano e quem tem um controle institucional da historiografia e dos nomes que se destacam naquele momento da psicanálise é o próprio Freud.

Então, a Patricia vai dizer que o Freud, no caso aqui, a crítica que ela faz a ele, é o fato dele concentrar em suas mãos a questão do monopólio da autoridade científica.

Isso no campo da psicanálise, porque segundo ela, o Freud, por ter ali o seu movimento muito bem, como é que eu posso dizer, íntegro, fixo, seguidores que são fiéis aos seus ideais, ele vai garantir ali a possibilidade de criar uma rigidez em questões que ele coloca como fundamentais e que não podem ser ameaçadas por nenhum outro ou outra psicanalista que vá colocar em risco a sua lógica do complexo de édipo, a sua lógica fálica. E a Karen foi justamente essa figura que se rebelou por esse monopólio da fala freudiana naquele tempo, certo?

Então, quais são os pontos que ela coloca que Freud, digamos assim, não aceitou, ignorou e todo esse movimento psicanalítico centrado na figura dele acabou marginalizando a Karen?

O primeiro ponto que a gente tem que destacar é o reforço que ela dava dentro do processo de terapia, dentro do processo de análise, a valorização das experiências emocionais e o questionamento em torno do excesso de intelecto e razão na prática do tratamento psicanalítico com os pacientes.

Então ela era uma defensora do afeto, da proximidade entre o analista e o paciente e diz, nessa obra que eu tô colocando pra vocês aqui, que o afeto é o ponto-chave de conexão entre analisando e analista. Ela defende a aproximação e não o distanciamento entre esses dois elementos.

Apoia a inserção dos fatores culturais na análise do desenvolvimento psíquico.

E aí no estudo das neuroses, que foi o livro que eu citei, recém-lançado, ela diz que, para estudar a neurose não podemos ficar presos somente ao fator biologizante, mas existem elementos dentro da prática psicanalítica que deve ser colocado à cultura como ponto de reflexão dentro do desenvolvimento humano.

Ela vai chamar atenção nesse período para a construção de uma ponte de diálogo interdisciplinar com a antropologia e a sociologia, tentando criar novas conexões com outros campos do conhecimento. E o ponto mais polêmico dela, que é o que vai torná-la uma figura rejeitada no meu psicanalítico, é a rejeição da inveja do pênis como um fator estruturante para os estudos psicanalíticos, até para entender a própria feminilidade.

Os homens deviam ter a inveja do útero, que é o útero que gera a vida. As mulheres vão ficar presas a uma ideia de falo como centro de tudo?

E foi engraçado, assim, no auge da minha ignorância, assistindo as aulas sobre Freud, eu ficava: “meu Deus, tudo se resume a um pênis mesmo?”

Tudo é pênis, pênis, pênis.

E quando eu conheci a Karen, ela vai dizer: “será que tudo se resume a uma inveja de pênis? Será que o útero não tem uma importância muito maior, que é o gerador da vida? Será que tudo se resume ao complexo de castração? Será que tudo se resume ao complexo de édipo?”

Então, ela diz que a teoria da feminilidade de Freud carrega esse problema que expressa a vagina como um órgão que não seria erógeno.  Aprendi com Horney que não podemos colocar o pênis como o ponto central e o clitóris como um lugar de inferioridade, como um lugar que está em segundo plano.

Horney em 1926: “até onde a evolução das mulheres, como retratada hoje na análise foi medida por padrões masculinos e até onde, portanto, essa falha em apresentar com nitidez suficiente a verdadeira natureza feminina?” Ou seja, o que torna Karen uma figura maldita naquela época, marginalizada e hoje pouco conhecida por nós é justamente o fato dela questionar o androcentrismo na teoria psicanalítica.

São essas provocações que ela faz lá nos anos 20, nos anos 30 que vai ser fundamental nos anos 60 para a criação do pensamento psicanalista feminista, que vai se apropriar da própria Horney e de Lacan para reforçar esses argumentos que questionam o primado do falo, o primado do pênis como o centro da análise freudiana.

Então, entrar nesse debate, a Horney querendo colocar a mulher como o centro da discussão na psicanálise e não torná-la dependente desse androcentrismo, do homem, do falo, de tudo girar em torno dessa inveja do pênis, expõe não só uma discussão teórica da psicanálise, mas também expõe aí confrontos políticos e institucionais, que a gente que está na universidade a gente sabe que existe também disputas de poder na construção das narrativas sobre qualquer campo do conhecimento.

E quando você escreve uma determinada narrativa sobre um período, você vai editar aquele passado. E você vai colocar os seus e vai tirar os dissidentes.

Então, quem é que escreve a história da psicanálise? Quem é que narra a história da psicanálise? Quem é que escolhe que personagens devem ter voz?

Então, a discussão que eu tenho pensado é justamente o que a Karen coloca lá atrás, que a sua marginalização enquanto nome para ser parte desse rol de destaque na psicanálise acabou construindo aí um discurso que reforça a ideologia repressora sobre as mulheres que poderiam estar tendo a visibilidade nesse campo, mas acabaram sendo colocadas de lado.

A Horney buscou questionar a naturalização desse apagamento. Quem apaga esses nomes? Quem é que faz essa engrenagem funcionar para legitimar e deslegitimar?

Então, para fechar a minha fala, trouxe uma rápida citação da Patrícia Mafra, para dar um arremate na minha reflexão:

“Estabelecemos um encontro com vozes anoitecidas, como dizia Mia Couto, que não se emudeceram, pois não houve violência capaz de fazê-las calar e continuam somando mesmo sem encontrar escuta, porém que foram obscurecidas pelo silêncio institucional, contam dos processos de marginalização de uma mulher e suas compreensões dissidentes das normas e parâmetros estabelecidos para aceitação como teoria da verdadeira psicanálise? Seriam intocáveis os totens e os tabus teóricos estabelecidos pelo pai?”

Agradeço a atenção de vocês. Valeu.

MILENA: Obrigada, Aristides, pela sua contribuição.

De fato, ouvir um pouco a história da Karen é algo novo, principalmente na Jornada.

Como a gente está iniciando esse processo, acredito que, enfim, tende a trazer um pouco quem é que está no foco principal. No caso, ano passado a gente homenageou Freud, Marx. Esse ano a gente traz a Nise da Silveira.

E acho que é bem interessante esse diálogo que a gente vai construir aqui, passeando um pouco pela Karen, pela Neusa, que eu vou trazer também um trecho desse livro dela, Neusa Santos Souza, que é uma psicanalista negra brasileira, e a Nise, nossa homenageada.

Eu não posso falar por todas as mulheres, mas eu acho que faz meio que parte do ser mulher a construção de um sentimento, de uma carreira que às vezes é meio à margem, justamente porque o mundo ainda é dos homens, o mundo ainda é muito machista, ainda é patriarcal.

Mas o motivo de ser interessante é a gente estar aqui hoje na Universidade Pública, durante uma transmissão pública sobre psicanálise, mas no evento voltado à saúde mental, a luta antimanicomial, e contextualizar o pensamento dessas autoras. E já encaminhando a minha sala sobre arte psicanálise, encontrei um texto muito curtinho, de uma página apenas, da Neusa Santos Souza.

E me cheguei para trazê-lo, inclusive por estar na curadoria da exposição e por sempre a jornada está transitando aí nesses espaços entre ciência, arte, psicanálise. E aí ela questiona assim: “a quem serve a arte?”

E responde: “em primeiro lugar, a arte deve servir ao artista e servir em todos os sentidos, servir como atividade criadora, campo de realização de possibilidades inventivas do sujeito e atividade produtiva”. E continua mais à frente, ela traz que isso também vale para o louco, né?

Quando ela se encaminha para o trabalho com psicóticos e ela elabora o trabalho que apresenta nesse livro, que foi fruto de pesquisas de pós-graduação dela.

E aí ela traz assim: “o tratamento dos loucos pode ser definido em sua essência pela recuperação dos laços sociais. Laços em que o paciente venha a se afirmar como sujeito. Sujeito de direito, sujeito responsável, sujeito de desejo. Nesse sentido, criar vínculos nos quais sua palavra e seu desejo possam ser ouvidos e respeitados”.

Ela fala da importância de se ouvir, dos loucos, do que eles têm a falar. E finaliza dizendo que a gente lembre que a arte, em primeiro lugar, serve ao artista e serve também aos outros, à instituição, ao mercado, a todos nós.

“E que ela possa servir a tantos outros é prova da potência da arte e de um complexo de forças outras que se enfrentam aí. Isso não é mal, o perigo é invertermos a ordem das coisas e esquecermos que em primeiro lugar está o artista, nosso artista louco, e depois o mais. Há o artista, portanto, sua obra, sua arte.” Então quando a gente vem aqui após oito anos de trabalho e lança uma jornada sobre a luta antimanicomial, precisamos entender que contexto é esse que a gente tanto está falando, se posicionando epistemologicamente, como também o contexto que estamos inseridos hoje.

E essa fala não foi uma fala pré-pronta, foi muito sobre sentir, esses dias de jornada, o que tá aparecendo, o que que tá visível, o que que tá oculto, que eu acho que todo mundo que tá aqui, quem acompanhou a jornada esses dias, não participou na mesma intensidade. Alguns participam de uns momentos, outros não, mas enfim, é uma jornada intensa até para que se possa ter escolhas, quem tá afim de vir pras transmissões de psicanálise, quem tá afim de ir para instalação, quem tá afim, de construir um debate, acaba somando, ficando. E aí eu quis trazer essa fala mesmo de encerramento, resgatando um pouco a vivência durante esses dias.

O Walter Trinca, na obra A Arte Interior do Psicanalista, faz uma leitura interessante sobre esse trabalho entre arte e psicanálise e me remete também a uma crítica que foi feita lá dos anos 2000 para cá sobre uma suposta crise na psicanálise.

A psicanálise é ameaçada ao desaparecimento, um discurso que há muito tempo vem sendo plantado, mas ele nunca cola. Se colasse, nós estaremos hoje, em 2025, resgatando, posso dizer, essa ciência, esse modo de produção de um conhecimento. Quando ele fala dessa crise, ele fala que a maior dificuldade da psicanálise é a questão da transferência, que é o meu objeto de estudo.

E pensar a psicanálise a partir da arte dá um outro lado interessante sobre essa questão, porque o autor fala que a maior dificuldade da psicanálise é que cada analista vai suscitar uma transferência.

Então, como é que vai acontecer? Como é que vai se regulamentar?

Como é que, enfim, vão criar um sindicato?

Ficam tentando colocar a psicanálise em caixinhas, as quais ela nunca se preocupou muito em ocupar, justamente por ser um pensamento que está dentro mas também está fora, tem algo que aparece e desaparece, por mais que Freud, por exemplo, tenha se posicionado como homem no seu tempo e realmente isolado outras pessoas que furavam mesmo com a teoria dele. A gente precisa entender que aquela era a teoria dele.

E ele é mais um psicanalista que, apesar de ter fundado, através de suas observações, de seu método que é rigoroso, quem estuda Freud sabe que ele tem um método bastante rigoroso de pesquisa. Ela ainda sobrevive. A mesma psicanálise que sobreviveu à invasão nazista.

E também a outra. Depende de onde a gente se aproxima.

Walter Trinca diz:” em que espaço interior vive um artista nos momentos de alegria criadora? Seu colorido poderia assemelhar-se ao espaço interior de um psicanalista nos momentos de seu trabalho?” E aí ele mesmo responde. Nessa conversa aqui.

“Parece que há um fundo comum onde se alimentam os artistas e os psicanalistas verdadeiramente sensíveis e criativos. Existem estados mentais no psicanalista que não são muito diferentes dos conteúdos internos que servem de matéria-prima a um pintor ou a um escultor bem inspirados”.

“Eles têm em comum a alegria de conter dentro de si, cada qual ao seu modo, a sua arte”.

Dentro dessa temática da arte, eu trago um pouco da Nise da Silveira também, no contato dela com o Jung, onde a gente percebe que existe uma influência da psicanálise no trabalho de ambos, mas que ambos foram por outros caminhos, contextualizaram essa psicanálise para eles.

E aí ela fala assim para o Jung, nosso plano de desenvolvimento está inserido dentro de nós. E acho que isso aqui serve para muitas reflexões que a gente fez esses dias também sobre os ex-internos do sanatório Meduna, esses sujeitos que estavam lá.

Se esse plano de desenvolvimento está inserido dentro de nós e se nos desviamos dele, são esses desvios que fazem sobressair a neurose. Então ela acredita que a cura seria um resgate desse seu plano individual, desse seu desejo, do que lhe faz seguir mesmo, desenvolver, querer viver, em outras palavras.

E ela, desse modo, encontrou uma maneira de ser uma psiquiatra no seu tempo, mesmo não concordando com o que a psiquiatria de sua época dizia. Voltando um pouco para Freud, também sobre psicanálise e arte, tem um texto que eu acho brilhante, que está nas Cinco Lições de Psicanálise, de 1910 em que ele diz que basicamente a diferença da psicanálise para outros métodos psicológicos da época. Ele faz uma metáfora, fala que os outros métodos são um quadro, onde você está ali o quadro, outra pessoa tem que vir com as tintas, jogar ali essas tintas, misturar para fazer algo, fazer algum sentido, enquanto a psicanálise seria mais parecida com escultura, onde ela já está contida na madeira. Um pedaço de tronco já contém uma obra de arte.

Então o trabalho da psicanálise seria mais nesse ponto de lapidá-la através do manejo transferencial, mas entendendo que o motivo é sempre o sujeito. Quem conduz a análise é sempre o sujeito.

Então, eu vou seguindo, encaminhando essa linha de raciocínio que eu estou tentando trazer para vocês. Em uma análise muitas questões são colocadas sobre o sujeito. E, às vezes, a gente não dá muita conta do que está à conta. Por que a analista perguntou isso? “Por que ela agiu de tal modo? Será que isso é de propósito?” Sempre ficam questões que são questões do sujeito. E essas questões, elas atravessam questões sobre o ser, quem eu sou, quem ele é.

Questões sobre o ter, questões sobre o poder, o valer.

E essas são questões onde sempre o que está em par é o outro.

O outro da relação, quem que me limita de poder se não o outro? Quem que vai dizer assim, você não pode sentar de perna aberta, você não pode ir para tal lugar sem um casaco. Sempre são construções que são tecidas nessa relação em par com o outro.

E essa travessia edipica, ela também fala dessa travessia pelo outro e fala de funções mesmo, sociais. E de um símbolo, que mais do que um símbolo, é algo que marca a pele, marca o corpo.

A gente vai crescendo e vai lidando com essas marcas, esses tramas, esses atravessamentos, mas precisamos lembrar que somos sujeitos históricos também, vivendo agora. E mais do que acessar a teoria a partir dessa perspectiva sócio-histórica, a gente precisa entender a quem que servem as ideias de hoje também.

A quem que servem os protocolos, a quem que servem as burocracias, a quem que servem os diagnósticos? Porque, como a gente estava falando na estrada para Floriano, sobre a questão da depressão. A gente nunca falou tanto sobre isso, as pessoas nunca procuraram tanta ajuda, nunca tiveram tanto acesso à medicação. E o que a gente vê é uma terapêutica que não funciona, porque os dados não estão diminuindo, os números não estão diminuindo.

Embora existam tratamentos eficazes, o que a gente vê é um maior acesso a essa terapêutica convencional, mas a gente não vê resultado. E as pessoas estão impacientes por resultados, e isso eu falo por mim também, como cidadã.

Então, estar numa universidade pública, eu fiz essa fala meio que pensando nos jovens, que geralmente é o nosso público do Casulo, é saber que aqui a gente vai ter acesso apenas a um pequeno número, um pequeno número de pensadores, de escritores diante da vasta produção de conhecimento.

E hoje esse resgate vem sendo feito pelas clínicas de base popular, que são clínicas que não estão dentro das escolas mais conhecidas, são as clínicas herdeiras da Casa das Palmeiras, da Nise, do Juliano Moreira, do trabalho da Neusa. E essas clínicas vêm há muito tempo gritando por uma escuta a nível nacional e internacional E a gente vem ouvi-la, vem chegar para entender essa noção de uma clínica pública através da Elisabeth Danto, que é uma historiadora.

Por isso que esse trabalho, ele não é distante nosso, e por isso que nossa equipe é multidisciplinar.

A gente sabe do trabalho que faz, mas como nomeá-lo é uma coisa que você vai entendendo depois, principalmente quando você está nesse campo da psicanálise. Nesse caminho de conhecer autores e pensamentos, A gente precisa parar mesmo para pensar criticamente sobre o que a gente está fazendo, sair dessas caixinhas entendendo que a gente está fazendo escolhas e essas escolhas também vão nos estruturar enquanto sujeitos históricos e vão também estruturar um futuro, vão estruturar uma história, um contexto que é o que a gente vive hoje.

Então, o visível e o oculto, porque sempre tem algo que desaparece para que outra coisa apareça. E esse modus operandi, também é o modo do inconsciente. E quando se fala que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, é justamente por isso, porque a cada palavra que eu escolho dizer, para que vocês entendam, vocês escutam uma palavra, deixam outras de lado, mas ao mesmo tempo elas só fazem sentido dentro de um contexto, dentro dessa fala de 15, 20 minutos que transmitirei aqui.

E para uma palavra aparecer, é necessário não silenciar, mas deixar outras de lado. Deixar essas outras ali, se necessário, desaparecerem. Acho que tem certas coisas que a gente precisa deixar desaparecer mesmo. E nem vou citar nomes, porque senão seria fazê-las aparecer e não é o que eu quero.

E existem as palavras às quais a gente nunca terá acesso, que talvez esse seja o inconsciente mais próximo do inconsciente da psicanálise, mais distante do inconsciente fenomenológico, que já traz essa proximidade maior da consciência, de um inconsciente que está mais próximo da consciência, do que daquilo que a gente nunca chegará a saber, digamos assim.

E sobre essa jornada, mais uma vez agradecendo mesmo a quem esteve presente todos os dias, assim como a do ano passado, onde a palavra libertar foi a palavra que marcou e a gente levou o lema de libertar os modos de existir, Esse ano a palavra que me marcou foi contradição.

Foi basicamente isso que aconteceu no primeiro dia, no segundo dia, no terceiro dia. Então, eu quis pensar um pouco sobre esse sujeito da contradição.

Como seria pensar um espaço onde o sujeito da contradição possa existir, aparecer, não tenha que ser silenciado, enfim, comprimido ou…

Eu não sei a resposta, mas tentei trazer algumas reflexões aqui como provocação mesmo, para deixar de inquietação para vocês e, já de convite também para gente continuar esse debate em outros momentos.

Uma palavra me marcou pessoalmente nessa jornada, dita no primeiro dia durante a mesa de historiadores, a contradição. Repetida no segundo dia e agora no terceiro enveredamos por contradições nítidas, como o debate entre Nise da Silveira e Clidenor de Freitas.

A primeira, a psiquiatra, conhecida como a rebelde, e era uma boazinha também, e ele era um bonzinho, mas também era um torturador, como disseram na exposição, ele era um bonzinho torturador. E aí conhecemos, ao longo desses dias, um pouco mais dessas figuras e saímos com mais perguntas sobre esses limites éticos, talvez. Mas o importante é que nós tocamos nessas contradições.

Tanto de algo que, como o Aristides está trazendo, quem escolhe essas palavras que são ditas, essas pessoas que se destacam, isso tudo diz de um lugar de poder. E o que a gente fala aqui também diz de um lugar de furo.

A gente tentou deixar a exposição sobre o Meduna bem sem explicação, por exemplo, para quem chegasse pudesse interagir com ela, contar suas histórias, interpretar mesmo a sua vivência.

E lá tinha até um potinho, uma caixinha, para as pessoas colocarem as impressões. Justamente nesse sentido, de trazer essas palavras para dialogar. E conhecer mais esse sujeito, da contradição, o que as pessoas têm a falar sobre ele. E a gente também toca em outras contradições mais sutis, mas não menos complexas.

Justamente por sermos sujeitos nesse tempo histórico e porque exalamos por uma prática que preze a ancestralidade, mais do que a ancestralidade na psicanálise, quando a gente fala de Brasil, Piauí, essa ancestralidade que está presente aqui e que se mantenha, como é que a gente vai resgatar uma ancestralidade, vai manter uma tradição que é sempre íntima, mas também dialogar com as futuras gerações, com a novidade.

Eu acho que são desafios colocados para esse sujeito da contradição. Como é que eu posso falar? Que também somos nós? Sujeito da contradição, que também somos nós. Que estamos aqui? Presentes em momentos diferentes de nossa vida.

Tem gente na graduação, na pós, tem gente da Psicologia, Direito, História, Enfermagem, de várias outras áreas. Tem mães, não-mães, filhos, filhas, pais. Mas nós vivemos juntos, estamos habitando juntos esse espaço, essa sala, porque não o planeta?

E aí tem uma frase que fala sobre festa e fresta, que quando a gente está feliz, a gente está bem, a gente faz festa, e que quando a gente se reprime, a gente escapa pelas frestas. E a luta anti-manicomial, de certo modo, ela foi uma luta que escapou por muito tempo por essas frestas, momento de ditadura, momento de ameaça, a conquista de direitos.

E a gente tá aqui hoje percorrendo esse caminho do qual tanto se fala quando a gente pergunta sobre saúde mental no Piauí. É uma coisa de um não sei, não sabe para onde encaminhar, é algo a ser feito, é um caminho a ser percorrido.

Mas nós precisamos entender que nós estamos percorrendo esse caminho. Não é sobre esperar, é realmente não só um lugar de escuta ativa, mas também cada um dentro do seu campo de atuação. Você não precisa ser um psicólogo, um psiquiatra para ser um promotor de saúde mental. E nós estamos construindo a cara dessa cidade hoje, da cara desse estado, a cara desse país.

E ouvimos também esses dias que o Meduna ainda é uma ferida aberta no imaginário teresinense. Talvez seja importante, enquanto profissional, se perguntar como é que a gente vai tratar essa ferida e acho que já é algo que a gente faz quando se debruça sobre ela com sensibilidade, afeto, partindo dessas abordagens que incluem, que são abordagens mais inclusivas, combatendo o trauma social através do enfrentamento dos estigmas, do preconceito, do racismo, do machismo, da transfobia, combater o silenciamento com a fala tanto de denúncia, de você denunciar esses crimes, esses silenciamentos, quanto na fala de você também se prestar a ouvir o outro.

Precisamos entender que nós somos mesmos contraditórios, que nós sobrevivemos entre essas contradições e são elas que nos fazem singulares. São elas que nos fazem únicos. Tanto que quando alguém morre, ninguém vai dizer assim: “ah, ela tinha tanto sucesso, estava com tantos reais na carteira”. A pessoa vai falar assim: “mas ela tinha um jeitinho de sorrir”, vai falar de algo dela que… “Ah, mas aquele olhinho trocado dela, aquele cabelo sempre assanhado”. São essas marcas que fazem da gente sujeitos singulares.

E na psicanálise percebemos esse outro lado da mesma moeda o tempo inteiro, que se encontra, não existe um início e um fim, você não sabe onde você começa e termina. É através da fala sobre a depressão que a gente vai agarrar algo onde ele possa elaborar, onde ele possa ficar mais um dia, mais dois. A gente não tá preocupado em curar ou em salvar vidas. Eu acho que esse caminho, quando a gente vai por frestas, ele é sempre devagar, um dia mais, dois dias, enfim, até que o sujeito possa sair, de fato, dessa crise. E esse é um caminho na clínica que ele se traça de inconsciente para inconsciente, ele não é só intersubjetivo, tem algo que escapa da intersubjetividade, que tem a ver com esse jogo de forças intrapsíquicas.

Mas, apesar de cada um ter uma dinâmica, acho que uma fala pública serve também para a gente pensar em como prospectar a vida, em como desejar viver e em como fazer desejar viver. Será que é possível? Será que é algo que a gente pode se comprometer com o outro?
E se seria próximo, eu volto a trazer o Trinca, se seria algo próximo da missão do artista, ver a beleza e ouvi-la. Seria possível ouvir uma pessoa de modo semelhante a um músico sensível que ouve sons delicados, ainda que em psicanálise seja duro e carregado de sofrimento, o que a gente escuta?

Eu acredito que sim.

Um lema que a gente leva aqui no Casulo é de lutar por política de vida contra cada política de morte, a necropolítica, como a gente escuta por aí. E por isso as clínicas têm que ser gratuitas e contra toda política de silenciamento, um poder falar o sujeito, um sujeito que vai ao divã, poder falar e se expressar, um sujeito que vai lidar com a questão do reconhecimento para ele mesmo, mais do que o reconhecimento social.

E aí eu quero ressaltar que no caso do Casulo, a gente lê Freud, que é um autor estrangeiro, e agradece muito pelas contribuições dele, mas é meio como quem chega a um novo lugar. Por exemplo, quando eu vim morar em Teresina, eu aprendi muito mais sobre Sobral, que é a minha cidade natal, justamente por ter saído dela e ter algo para comparar. Então lemos Freud também um pouco nesse sentido, a gente também traz para a nossa realidade. E nesse ponto é onde a gente se aproxima da psicologia social para contextualizar e da nossa experiência pessoal.

E quando a gente faz um espaço como esse, de trazer as queixas, de trazer o Svera, que é um artista que foi marginalizado pela sua condição, quando traz aqui os meninos da história para uma fala pública, A gente está contextualizando o Brasil, a gente está contextualizando o país, na reforma psiquiátrica, enfim, fazendo nós mesmos esse trabalho nesse tempo histórico. Seja nas falas públicas ou na intimidade do divã, é o que a gente faz.

Alimentamos nossos próprios desejos nesse processo, como de realizar essa Jornada. Ainda assim, é uma correria gigante, mas não tem outra coisa que nos une aqui, senão o desejo de construir esse momento e de continuar debatendo sobre isso. E como disse a professora Filadélfia ontem, o Casulo não pertence mais a ela, nem a mim, nem a Minéia, nem a nós que estamos aqui. Hoje ele é da UFPI (Universidade Federal do Piauí), ele é da comunidade. Quando escutamos alguém dizer que virou uma espécie de manifesto por saúde mental, o que é que isso diz também? Que saúde mental é essa da qual a gente está, não só falando, mas acho que querendo mesmo. Porque aí a gente também se implica no conceito. Esse conceito serve a gente?

E vocês também são responsáveis por manter viva essa chama, cada um com sua própria arte. Isso porque a arte tem essa virtude de aliviar a espécie humana, como diz o Trinca.

Vou ler a citação para não me equivocar:

“A arte tem a virtude de aliviar a espécie humana e, por extensão, no que depende dessa espécie, toda a vida desse planeta, da violência, da insensibilidade, do absurdo, da loucura, da miséria, em suas múltiplas e variadas formas”.

Então seria loucura dizer que o maior ato de resistência que nós hoje podemos ter é querer viver, e mais, fazer desejar a vida, construir algo sobre o que nos dá desejo de viver, lutar por esses modos de viver, defender a integridade das vidas, passando necessariamente pela luta por direitos humanos respeitados, que é uma luta antiga, que está o tempo inteiro se atualizando.

Então é isso, queremos aqui contextualizar mesmo essa luta, tanto a luta antimanicomial como a nossa luta com o Casulo, encher essa luta de presentes, que somos nós presentes aqui, parcerias, afetos, acolhimento, que é outra palavra sempre presente nas ações do Casulo.

E é isso, quero dizer que é muito bom vê-los todos aqui. nem sempre firmes, nem sempre fortes, mas vivos e presentes, que sejam sempre bem-vindos e me sinto enormemente grata mesmo pela contribuição, por ter aprendido muito durante esses dias.

E é isso. Até ano que vem. Obrigada pela experiência.

FILADELFIA: Nós não tínhamos nenhuma audácia tão grande.

Na verdade, quando nós começamos o casulo aqui, na UFPI, não tínhamos pretensão nenhuma. Mas tínhamos desejo. Tínhamos desejo.

E o desejo chega pela busca e procura de uma pergunta que não tem resposta.

Quando a Milena diz a psicanálise, o divã, ele não vai te dar essa resposta. Ele não tem resposta. A resposta é a construção que você vai fazendo ao longo do seu tratamento. Esse é o que eu posso chamar tratamento. É um processo de acompanhamento nesse olhar para si mesmo.

Eu tenho observado muito na clínica que a nossa dificuldade é tomar o lugar da vitimização, é sair desse lugar, e tomar o lugar do, não gosto da palavra não, mas eu vou usar, do protagonismo da história nossa, de se reconstituir, de se retomar e de olhar para se dizer, mas bom, é essa a história que eu tenho.

Sim, liderado por mulheres.

Mas eu tinha uma coisa assim, como o Aristides traz a questão da Karen, eu li a Karen na graduação. Isso faz tempo. E a graduação ainda, logo quando eu saio. E ele na Universidade Federal, pela primeira vez na minha vida e eu tive acesso a ela. Mas eu queria dizer assim… não foi só ela que foi interrompida pela psicanálise… ou por quem está fazendo a psicanálise… mas nós temos duas grandes figuras… o Lacan foi expulso, gente…
Porque ele pensa uma psicanálise, a Sabrina sabe muito bem, né Sabrina, os nossos estudos têm mostrado os motivos que faz o Lacan ter: “ó cara, vamos sair, você não dá certo na IPA, é que a internacional, a Organização Internacional da Psicanálise, você não dá certo na IPA, você tem conceitos e compreensão de clínica diferente da nossa”. E aí eu ficava pensando…

O próprio Freud dizia para a gente… cada análise é você reeditando no momento em que você oferece o divã a alguém… é você reeditando, reconstituindo do seu modo, porque aí isso é nosso, o meu modo de fazer análise, de fazer psicanálise, difere do que a Milena trabalha, difere do que o Edvaldo que está começando vai trabalhar, difere do que a Carla trabalha, de cada psicanálise que existe no planeta.

Então, volto àquela ideia primeira. O que é principal para nós? Estudar sempre. Fazer análise sempre. E depois desse processo não esquecer da supervisão. Então é um tripé bastante significativo dentro desse processo. Mas eu vou pegar para completar para dizer que não é só a Karen que foi meio que excluída, né? Distanciada desse lugar feminino ficando aí nessa margem, né? Mas o Carl Gustav Jung também.

E ele era a pupila do Freud. A pupila do Freud que tinha todo um investimento do Freud naquele jovem, inteligentíssimo, e ele disse: “ó Freud, eu estou além de ti. Eu estou com o inconsciente, mas o meu inconsciente não é esse que tu está falando. O meu inconsciente é o inconsciente coletivo, são os arquétipos, os simbólicos”.

E aí ele vai trazendo outras coisas. E eu fiquei pensando um dia, que bom que houveram essas pessoas. Eu não queria que todo mundo pensasse como Freud mesmo, não. Era preciso que outras pessoas levantassem outras bandeiras e mostrassem para nós outras percepções de psicanálise, de clínica.

Então eu penso que isso seria interessante. Lacan rompe com o tradicional da psicanálise.

E eu digo, quando eu tenho aquela frase lá no Casulo, nós estamos, sim, fazendo, mas estamos fazendo dentro da nossa realidade no Nordeste. Uma vez eu até brinquei. Eu queria que o nosso Casulo tivesse redes para atender.

A gente até chamou de psicanálise na rede, né?

E todo mundo ficava achando que era psicanálise numa rede, rede social. Mas é uma rede mesmo. O nosso divã seria uma rede. Porque é a nossa cultura, é o que diz de nós. Então tem essa pegada nordestina, cearense, piauiense, e eu penso que nós estaríamos fazendo a diferença.

Essas divergências temos que ter. Temos que pensar diferente e temos que mostrar que essa diferença tem um modo de pensar de outro modo. Não é só por divergir, mas é de trazer o novo que pode surgir com essa divergência. Então, a fala de vocês é muito bem-vinda nesse sentido de provocar esse momento.

Mas eu queria dizer do chão da nossa saúde mental, como pensamos o conceito, quando nós estávamos em Picos, Milena lembra? E falávamos do conceito, as fichas individuais dos pacientes do Meduna e o que é que se classificava como condição da doença. Vamos imaginar isso.

O que era, o que antecedente dele trazia, o que era que no momento que ele estava sendo internado, ele estava dizendo o que ele estava sentindo, ou quem trazia esse sujeito para o atendimento no Meduna, o que é que ele dizia que ele estava sentindo.

Então o conceito de saúde mental de lá difere muito do que a gente pensa hoje no Casulo.

Por isso que nós estudamos o dicionário de Psicologia latino-americana com o conceito de saúde mental trazido pelo Pedro Renan, e pelo Aloísio Lima, uma figura linda, né Milena, nós conhecemos.

Quando ele diz que a saúde mental é multideterminada. O que é que faz adoecer você? O que é que faz adoecer a Milena, a mim, a Elano? O que é que nos faz adoecer?

Existe todo um social aí promovendo e construindo isso.

Então vamos pensar que o Casulo hoje, a partir da sua abordagem sócio-histórica e de fundamento epistemológico do marxismo, ela vai trazer essa contradição no próprio conceito, na própria compreensão do que é essa saúde mental.

E estamos continuamente fazendo isso. E acreditamos, eu não sei se eu disse para a Milena, mas como é bom trabalhar psicanálise com juventudes. A aderência que a juventude tem dos seus conceitos, dos seus fundamentos e como eles conseguem verbalizar, reconstruir, organizar o que está no inconsciente. E o processo vai fazendo isso. Outra coisa que eu queria dizer para vocês. Quando eu estava observando as artes produzidas no Meduna e me contaram o seguinte.

O fundador colocava músicas clássicas, trazia imagens e quadros de artistas clássicos, e mandava que os pacientes pintassem. Então, eu compreendi que ele não compreendia nada de psicanálise. O inconsciente está aberto. Então, não tem como dizer que isso é resultado do inconsciente.

Quando ele deixava esses artistas mais livres, e aí eles se manifestavam em outras imagens. Tem essa questão. E outra coisa também é na capacidade que nós precisamos organizar, e nós vamos olhar para além.

Eu acho que é o que a Milena disse também, de olhar o reverso, de olhar o outro lado, de pensar isso também. Então, o Casulo está nessa dinâmica, construindo, aprendendo, aprendendo com as juventudes. O Casulo é composto por juventudes, estudantes da UFPI, estudantes da Santa Agostinho, AESPI, estudantes de várias faculdades de Psicologia, Medicina, Filosofia, da Pedagogia.

Nós somos diversos. Isso é o que faz de nós o que somos, como Casulo. Essa diversidade capaz de dizer de nós. Por isso que nós somos uma equipe multidisciplinar. Não tinha como ser só psicanalista. Ou vocês acham que foi fácil para a Freud ter só médicos ricos começando a psicanálise?

Às vezes até compreendo, viu, professor Aristides, que ele precisava ser mão forte, porque senão, se estava no começo de construção teórica de um pensamento, se ele deixasse em aberto isso, como seria?

Talvez a gente não tivesse a psicanálise que nós conhecemos hoje. Mas cabe a nós hoje transgredi-la. Eu dizia que, um tempo atrás, que eu precisava transgredir algumas coisas.

Minha mãe dizia: “calma, vá com calma, você transgride demais”. E eu tinha uma professora na universidade que dizia, vem pra TCC, vem pra TCC, você vai amar, você tem condição. Eu ia dizer, não professora, eu não tenho condição de entrar nessa caixinha. E ela ficou muito zangada comigo por muitos anos por causa disso.

Mas o que eu quero dizer para vocês, estamos aqui fazendo o que nós não imaginávamos fazer. Tem uma coisa que está aparecendo muito na internet, que eu comecei a ver, mas porque conta da história de quem foi maltratado, quem sofreu e quem foi morto. Mas é interessante. Se olhassem para a minha história pessoal, lá quando eu era pequenininha, ninguém sabia que eu estaria aqui hoje. E a minha vida foi se constituindo até eu chegar aqui. A vida de vocês também foi uma construção de estar aqui hoje nesse lugar.
Quem pensou estar aqui hoje entre nós? Quem pensou de nós hoje estarmos na Universidade Federal falando sobre isso? Ou encerrando uma jornada de luta antimanicomial, saúde mental, 120 anos de uma mulher que para nós é uma referência?

Que bom que Nise teve aquela equipe que alguém um dia chegou para ela e disse: “vamos usar a pintura… vamos deixar que eles se expressem nisso daqui”. Então a Nise também é uma mulher aberta a escutar. E quem está no Casulo também deve estar aberto a escutar. Porque nós fazemos isso. É lá que escutamos os estudantes, que já está compreendendo como é esse universo do inconsciente.




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