Maria Giulia Chiozzini: conexões entre psicanálise e literatura

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por Aristides Oliveira

Troquei uma ideia com Maria Giulia Chiozzini sobre as relações envolvendo a literatura e psicanálise. Ela é integrante da C l a r e i r a escola de Psicanálise, professora e pesquisadora vinculada ao G.E.Di (Grupo de Estudos do Discurso – IFSP Sertãozinho), além de mestranda no programa de Estudos Literários da UNESP/FCLAr, com pesquisa nas áreas de Psicanálise, Literatura Brasileira Oral e Análise de Discurso.  Publicou poemas nas revistas Aboio e Frentes Versos. Publica semanalmente conteúdos de Psicanálise e Literatura em sua página no instagram, @escrituraclinica

Você tem dedicado suas pesquisas aos estudos literários, de Guimarães Rosa até a produção afro-brasileira. Atualmente, quais são as chaves de leitura que estão ampliando seu olhar, na pós-graduação, sobre a arte da ficção e que, poderia compartilhar conosco?

Lendo essa pergunta, é impossível não pensar uma retrospectiva da minha trajetória de pesquisa e não me impressionar com o quanto ela mudou, ao mesmo tempo que, de certa forma, alguns interesses e ligações especiais com certos temas estiveram ali desde o começo. O que sempre guiou o meu olhar (e digo olhar porque acabei descobrindo que, na leitura, eu sou não só ouvinte como uma grande observadora) foram as narrativas orais e sua dimensão visual, com suas marcas para além dos limites das páginas dos livros e, por vezes, propositalmente fora delas. As marcas de oralidade em Guimarães não são poucas, e mesmo quando me dediquei a esse escritor, minha preocupação de pesquisa era pensar a narrativa em paralelo à obra de arte, a palavra que emoldura, que pinta uma cena, um quadro. Na literatura chamada afro-brasileira e na literatura negra (Cuti tem uma diferenciação muito importante sobre essas terminologias, e já fica aqui uma referência indispensável da minha pesquisa atual) o rito e o corpo também formam imagens que traduzem epistemologias de mundo e de vida. As indumentárias, comidas e espaços ocupados pela chamada literatura do terreiro, que hoje estudo, necessitam de uma sensibilidade atenta para serem lidas. Mais sensibilidade que outra coisa, eu diria. Na clínica psicanalítica também é assim, trazendo um pouco para jogo o ofício de psicanalista ao qual também me dedico. Antes de tudo, o ouvido e os olhos do analista precisam ser sensíveis. Nada passa despercebido. Nesse sentido, a pesquisa tem contribuído para ampliar minha sensibilidade.

Do ponto de vista teórico, além do já citado Cuti, cuja obra Literatura Negro-Brasileira tem me acompanhado desde os primeiros dias, tenho tido grande contribuição das produções de Leda Maria Martins, Conceição Evaristo, Edimilson de Almeida Pereira (Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira foi a primeira obra que comprei, assim que iniciei a pesquisa), Reginaldo Prandi e muitos outros que se dedicam às leituras decoloniais e afrodiaspóricas da literatura brasileira.

Como foi que a Psicanálise chegou até você e o que te levou a seguir um estudo de formação na área?

A Psicanálise chegou pela Literatura e pelos professores que, estudando Literatura, estudavam também possibilidades de leitura vinculadas à psicanálise. Eu tinha um contato embrionário com a teoria psicanalítica, mas o que me levou a fazer análise pessoal foram colegas que, também da Literatura, não se cansavam de falar em Freud nas mesas dos bares e em círculos de conversa acadêmicos. Eu era uma curiosa e uma necessitada (por análise pessoal). Uma grande amiga fazia análise meio sem saber que fazia, – descobriu na ocasião que lhe perguntei sobre a formação de sua terapeuta que, então, a pessoa que lhe ouvia semanalmente era psicanalista – me indicou a profissional e lá fui eu marcar um horário com ela. Foi uma experiência primária, mas muito importante para que eu ampliasse os interesses pela Psicanálise. Comecei a participar de grupos de estudo, mas encontrava muita dificuldade com conceitos básicos, pois, desavisada e solitária em busca de grupos nessa trajetória, os primeiros grupos que participei eram voltados para pesquisadores que já trabalhavam na área. Conheci o núcleo Vassouras do Corpo Freudiano nessa ocasião, buscando um novo espaço mais possível de formação, e iniciei por lá meus estudos teóricos. Nessa mesma época também troquei de analista e iniciei um tratamento com a profissional com a qual sigo até hoje. Meu desejo em relação à análise pessoal e o desejo de analista foram crescendo substancialmente. Além da escola, eu participei de grupos de estudos paralelos, eventos, estudei Psicanálise atrelada à Literatura na universidade – de forma que meu orientador, hoje, também é professor e psicanalista – até o momento que, depois de alguns anos de formação, iniciei a prática clínica e a supervisão. Neste ano, fazendo circular por outros espaços meu desejo, vinculei-me à Clareira escola e clínica de psicanálise, uma escola dedicada à educação freiriana para psicanalistas em formação. Até hoje muito do que me move é a curiosidade diante do inconsciente (do meu, sobretudo), do humano, do Real inominável. A necessidade da palavra, muito. Da coragem frente ao sofrimento. Do desejo de viver frente à morte. Da necessidade de amar, de entender o que é o amor. É por essa e por outras que sigo neste ofício, e que sustento suas dores, que não são poucas.

Que cruzamentos você articula entre a Literatura e Psicanálise? Que caminhos as duas podem construir juntas para aprofundar nossa compreensão da complexidade humana?

Freud não se privou da literatura e, ao contrário, foi perspicaz em perceber que muitas descobertas da psicanálise já estavam enunciadas, representadas por ela. O escritor tenta bordear o Real, aposta na palavra ciente da sua insuficiência. Ainda assim testa seus limites para dar conta de algo que só a linguagem, ainda que falha e capenga, pode minimamente desenhar. Muitas são as aproximações entre o fazer literário e os processos psíquicos os quais a psicanálise conceitualizou, como a sublimação da pulsão, o fantasiar e o próprio brincar winnicottiano. Sem a arte perdemos nossa humanidade. Não poucas vezes a Literatura representou essa humanidade, suas dualidades e paradoxos, paixões, excessos e faltas. Lembrou-nos disso. Contestou as estruturas perversas da sociedade e deu voz a personagens marginalizados, subjugados, invisibilizados por um discurso histórico hegemônico ao qual as literaturas resistiram.

É através das literaturas que podemos ampliar nosso arsenal de significantes e nossa capacidade de elaboração, pois dizer de si é realizar um trabalho primordial que é, no limite, sentir e nomear. É ler algo de si. Quando nos faltam palavras, choros e risos, a Literatura nos oferece. E diante disso nos sentimos menos desamparados.

Quais contribuições você destacaria na obra de Clarice Lispector e Júlio Cortázar no mergulho rumo ao nosso íntimo e às profundezas do mistério humano.

Não sou uma pesquisadora desses autores, e muito menos uma grande conhecedora da sua estética em termos de estudo. Sou leitora, e como leitora direi que Clarice não teve medo da exposição de sua alma diante do não-saber radical que instaura a existência. Um dos meus livros preferidos dessa autora, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, reflete as angústias de uma mulher que se permite caminhar o desconhecido no tempo de sua aprendizagem, mas sem a ilusão – embora muitas vezes tenha a sede – de tudo saber, tudo compreender. Pois logo descobre-se que não se sabe, e não se compreende. E talvez por isso se viva, permita-se abrir aos prazeres que são soterrados caso houvesse uma resposta única diante das angústias da vida. O que permite a aprendizagem é a abertura diante da indagação do que é ser humano, e isso, na arte da palavra, Clarice levou ao limite. E o que fazemos numa análise, se não um pouco da proposta à qual se lança Clarice? Por isso a amamos tanto.

Casa tomada foi o primeiro escrito que li de Cortázar, estava na faculdade. Lembro-me vivamente do terror que me assombrou e eu “não entendi” nada do conto. Na verdade, não consegui racionalizar o quão estranhamente familiar (já diria Freud), ele era. Muitos anos depois, assistindo a uma entrevista que Cortázar deu sobre o conto, o escritor revelou que sonhou com a narrativa de cabo a rabo, cabendo-lhe apenas passá-la ao papel. Um prato cheio para leituras sobre o inconsciente, vista a revelação do sonho. Isso que muitas vezes as correntes de estudos literários chamaram de literatura fantástica vai diretamente ao encontro da possibilidade de pensar os processos metafóricos e metonímicos da dinâmica inconsciente, e que, no momento da leitura, nos questionarmos sobre a nossa própria ligação com as imagens montadas pelos escritores.

Atualmente é possível afirmar que a sociedade está cada vez mais adoecida psicologicamente por uma série de motivos que levaria um dia inteiro para relatar aqui, mas nem todo mundo possui condições financeiras de procurar ajuda, seja com psicólogos ou psicanalistas. Como você avalia os desafios para tornar os serviços ligados à saúde mental acessíveis e inseridos nas práticas de cuidado para todas(os)?

A saúde mental precisa ser uma pauta indispensável de saúde pública como um todo, uma responsabilidade social do Estado que, muitas vezes, é negligenciada. Importante dizer que não há saúde mental que se sustente sem acesso a condições básicas de existência, como comida, moradia, educação, emprego, saneamento básico…

Além disso, ainda colhemos as consequências negativas de viver em uma sociedade que vê a saúde mental como algo secundário, de pouca importância e extremamente estigmatizada, com tratamentos que são destinados apenas “para loucos”. Essa resistência e visão preconceituosa gera processos de adoecimento cada vez mais profundos e significativos para todos, pois, como diria Clarice Lispector, tudo que é vivo, por ser vivo, se contrai. Há que se falar sobre isso. Parece-me muito mais delirante a fantasia de onipotência de que não precisamos, todos, de um espaço profissional e ético para elaboração psíquica de nossas questões mais íntimas.

Os órgãos públicos de atendimento psicológico sofrem com infraestrutura precária e os profissionais, esgotados, sofrem conjuntamente aos usuários do sistema os impasses de oferecer e receber os benefícios do tratamento. Muitos são os psicólogos e psicanalistas que oferecem atendimento social e possuem instituições de acolhimento para a população vulnerabilizada, e embora esse tipo de iniciativa seja extremamente necessário e indispensável para o panorama da sociedade brasileira atual, é injusto e cruel responsabilizar os profissionais individualmente por uma questão estrutural que só será, na base, melhorada de maneira expressiva a partir do investimento governamental.

Do ponto de vista da clínica particular do psicanalista, e falando agora de um contexto de muito privilégio, o que também aparece são pessoas que podem pagar pelo tratamento, mas que, pela incerteza diante do percurso, o tempo dilatado do processo e a falta de garantias que a Psicanálise não se priva de afirmar, dentre outras questões sintomáticas de cada sujeito, acabam desistindo de investir num tratamento pouco alinhado a resultados rápidos (seja lá o que estamos chamando de rápido hoje em dia, vista a velocidade das redes sociais, por exemplo) e pouco investimento libidinal, numa sociedade que afirma a todo o tempo que não se pode perder nem abrir mão de nada. A análise exige do analisando, em todos os sentidos. O dinheiro entra como um significante simbólico desse investimento, mas não é o único, e não é o mesmo para todos os sujeitos. Mas essa questão talvez seja pauta para uma outra discussão.

Que leitura técnica/teórica está fazendo nesse momento e como elas estão te auxiliando na sua prática no setting analítico?

Atendendo majoritariamente mulheres, mas para os tratamentos de forma geral, pois a questão é grave e importantíssima, as leituras sobre gênero têm sido indispensáveis. Eu gosto de pensar na formação teórica do analista como proveniente de muitas fontes, e nesse sentido não só a leitura da teoria psicanalítica, mas também os estudos de antropologia, filosofia, literatura, dentre outras áreas afins à Psicanálise, são, para mim, parte fundamental das leituras. Não entendo analista que não lê outros autores, mesmo dentro da própria Psicanálise. Das supervisões que realizo aparecem a maioria das indicações de leitura que faço, o que me deixa feliz, pois vejo um interesse teórico que nasce da prática direta da clínica, algo muito próprio do analista-pesquisador.

Além disso, algo que está neste momento muito latente e tem sido de grande interesse pessoal para a minha prática é pensar o brincar adulto. Pensar um pouco a criança que há no adulto, mas de uma maneira radical, sobretudo a integração do eu, os processos de separação e de autonomia e a arte como estratégia de elaboração e de emergência do self. Pra isso, teóricos do cuidado e do brincar, como Melanie Klein, Sándor Ferenczi e Donald Winnicott têm estado sempre me acompanhando conjuntamente aos estudos sobre não-neurose, muito embora a maior parte de meu arsenal teórico formativo, até hoje, seja de teoria lacaniana.

Recentemente você falou da importância das “conquistas silenciosas”. Perceber-se dentro desse processo é necessário para qualquer pessoa em análise, mas será que estamos conectados a essa transformação? Queria que falasse mais sobre isso. Qual o impacto de encarar essas conquistas quando elas nos atravessam?

Quando citei as conquistas silenciosas em minha página do instagram, @escrituraclinica, falava daquelas conquistas que aparecem “adjacentes” a uma queixa recorrente da análise pessoal de alguém. Muitas vezes, focados numa única questão, esquecemos de observar tudo aquilo que muda “silenciosamente” – melhor dizendo agora, tudo que muda paralelamente à demanda central de uma análise, num determinado momento. Quando o próprio analisando não consegue ainda perceber essas mudanças de maneira consciente, creio que faz parte do processo de análise o próprio analista retomá-las, ressaltando o que o próprio analisando enuncia, mas não escuta. Isso nos ajuda, enquanto analisantes, a dimensionarmos nosso processo num momento em que, talvez, ainda não consigamos fazer isso sozinhos mais recorrentemente. Reconhecer essas conquistas é não só perceber a mudança de posição que temos diante dos discursos e da vida, coisa a qual a análise se propõe, mas é também relembrar que nossos processos de elaboração não são lineares, como muitas vezes tendemos a achar. Gosto de uma expressão que minha analista usou e eu nunca esqueci: “voo de barata”. Pensar as nossas questões é uma coisa um tanto quanto desgovernada, voo de barata. A própria associação livre depende desse soltar de rédeas que o discurso comum, fora do setting analítico, não permite. Mas quem sofre, no início de uma análise, acha que sofre por algo específico. Ou acha que trabalha sobre um único ponto. O processo começa e a coisa se expande. Essa é a magia da análise: ela abre camadas, portas, e podemos nos beneficiar do processo em cada uma dessas partes, não numa única. O problema é quando achamos que o caminho é um só.

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