“O poema é minha jangada para o sonho”, Salma Soria entre os fios e as palavras…

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Conversei com Salma Soria porque gostei muito de ler Muitas Roupas Aqui, lançado em 2021, através do selo Penalux. Meu primeiro contato com a escrita dela foi no conto Ai dos meus xises, vixe!, publicado no site. Daí, quis saber mais sobre ela e me debrucei neste trabalho para entender melhor o universo que Salma explora. Cada conto é mundo feminino a desbravar, com histórias marcantes em torno do cotidiano das personagens pelos seus modos de vestir. Salma nos ensina que as roupas e a forma como operamos nossa performance sobre ela diz muito sobre nós.

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Ela nasceu em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro em 1986. Estilista, mãe e escritora publicou o primeiro livro Vestindo a roupa ouvindo a máquina (Penalux) em que explora o universo do vestir através de contos. Nas entrelinhas que se movem entre o imaginário e o real, habitam as roupas, personagens e cidadãs desses dois mundos. É nesse cruzamento que Salma escreve, tendo a roupa e a moda como temas centrais de sua ficção (texto extraído da Editora Penalux).

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Após ler o conto “Ai dos meus xises, vixe!”, me perguntei: como era a Salma na escola e sua relação com a literatura?

Tímida na comunicação com os outros, mas muito inquieta em meus pensamentos. Sempre tive a curiosidade em entender o mundo além de mim, além do que estava em volta dos outros e quem me dava isso na infância, era a literatura. Falava pouco no colégio, mas na hora do intervalo, gostava mesmo era de estar na biblioteca. Ali me sentia existindo, sendo entendida porque magicamente algum livro que iria gostar vinha de encontro aos meus olhos.

Em casa, o hábito de leitura sempre foi algo muito forte, embora literariamente nada canônicos. Tenho dois registros da minha família: minha mãe e avó narrando diversas parábolas da igreja adventista, fé que elas professam até hoje, e do meu pai, um alfaiate que nasceu no Paraguai e esporadicamente aparecia em casa. Sempre com um jornal do dia embaixo do braço e algum pedaço de tecido enrolado numa sacola. Lembro bem que após fazer um serviço de feitura de roupa ele sempre pegava o jornal e lia em voz a alta, em português arrastado, todas as notícias do dia.

Quando percebeu que sua poesia poderia compor a cena carioca-brasileira, inserindo-se no mercado editorial?

Não sei bem, isso não foi premeditado. Há anos escrevo. Mas nunca sentia que devia publicar. Veio um momento que meu coração disse que era a hora. E fui. E cá estou.

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Que análise você faz dos seus primeiros trabalhos na área do estilismo e o resultado das suas produções atualmente?

Minhas primeiras criações de roupas eram muito ingênuas na vontade. Achava que devia apenas criar o que queria e que surgiriam pessoas que entenderiam. A realidade se mostrou muito mais dura do que a vontade e talvez seja por isso que em momentos mais tensos onde tudo dói, preciso me encontrar com o poema e lá ficar. O poema é minha jangada para o sonho. E a criação da roupa, ainda que com suas tensões causadas pelo comércio, é meu atestado de sanidade nesse mundo. Por isso preciso escrever para me permitir transitar entre esses dois mundos.

Na obra “Muitas Roupas Aqui” (Penalux, 2021), apreciamos um rico painel de histórias de personagens e suas relações com suas roupas e afetos. De onde vem essas mulheres que você se inspirou? São reais, versões de Salma Soria ou mulheres imaginárias?

Não há nenhuma experiência pessoal. Sou devota do texto e muitas das vezes ele se impõe e apenas retransmito sua mensagem. Em diversos momentos me inspirei em algumas personagens reais do mundo da moda, como a influencer Verena Figueiredo, que acompanho há anos, por exemplo.

Pensei nela arrumando o armário enquanto uma manifestação política acontece debaixo da janela dela, por exemplo. Também tem uma história envolvendo uma costureira que trabalhou para mim e depois virou minha amiga, imaginei ela tendo algum dilema em relação ao botão da máquina de costura, esse botão existe e se chama retrocesso.

Curiosamente sem retroceder na costura, a roupa não acontece. Há ainda diversos recortes e experimentações com a linguagem, minha maior vontade nessa obra foi de descolar o sentido da roupa como uma vontade de cobrir corpo ou uma “frescura de moda”. No livro, a roupa sai do armário, cobre e descobre histórias. Tanto no primeiro quanto no segundo livro todas as protagonistas são mulheres porque o labor da roupa é majoritariamente feminino e de alguma maneira isso também se converte para as histórias.

Crédito da imagem: Editora Penalux.

A partir do seu livro me lembrei dos rolezinhos, onde os jovens iam para os shoppings passear, para o susto da classe média branca. No livro “Amanhã vai ser maior”, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado conta a história de um garoto “que usava as melhores roupas para ir ao shopping e ser visto como gente”. Levando em consideração a fala desse rapaz e percebendo a literatura como chave de leitura do mundo contemporâneo, o que representou para você a ocupação da juventude da periferia e suas “roupas de marca” nesses lugares?

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De alguma forma escrevo sobre isso no mini conto “Saia Godê” com uma riminha irritante que envolve a saia godê, degradê, buquê e gola rolê. A roupa é um incrível marcador de mundos e muitas das vezes esses mundos não são compatíveis com as realidades sociais. E as roupas de marca no final são isto: os mais humildes que compram um tênis, t-shirt, boné e calça que somam mil ou dois mil reais, parcelam em várias vezes e se sentem bem felizes como se tivessem adquirido um passaporte para a aceitação social, mas aí voltam para a casa e a realidade se impõe. Não há saneamento básico, recolhimento de lixo, posto de saúde fechado, escola de ensino fundamental em greve e o que fazer?

Maquiar os sentidos em mais uma ida ao shopping? Todas as empresas de moda sabem disso, por isso estimulam, através de seu desejo de consumo o imediatismo do “grito da última moda” e quando me refiro ao grito, digo literalmente um grito na cara do consumidor como se isso fosse a coisa mais urgente do universo até ele ficar tonteado e não pensar em nada, apenas passar o cartão de crédito na maquininha.

Sou crítica ao dress code e “boa aparência”, tenho profundo horror às aulas de etiquetas e boas maneiras, são maneiras perversas de apagamento de gestos em nome das tais boas maneiras. E se você saqueia o gesto de uma pessoa, com suas profundezas pessoais, você retira as miudezas de sua existência. E se essa pessoa é capaz de camuflar miudezas em nome da sobreposição das boas maneiras dos ricos e esnobes, você não está habilitando um ser humano. Você está condenando aquela pessoa a não ser ela mesma. É terrível.

Que mulheres devem ser lidas com urgência e qual o impacto delas na sua trajetória?

Mulheres brasileiras, vivas e com produção recente espetaculares: o livro de contos da Carina Bacelar “As despedidas” que é um encontro lírico com questões do feminino muito tocantes, “O diálogo” de Luizza Milczanowski, romance de estreia que me surpreendeu pela desenvoltura que a autora sustenta a narração de maneira muito interessante e “Mainá”, da Karina Buhr que acabei de ler e ainda estou meio delirante por conta da experiência estética que me causou. Essas autoras vivas me impactaram porque aprendo com minhas contemporâneas, sem nunca deixar de olhar para as clássicas do nosso idioma: Clarice, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Cecília Meirelles.

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Para quem não leu “Vestindo a roupa ouvindo a máquina”, que diferencial narrativo podemos encontrar na construção de “Muitas Roupas Aqui”, em relação ao processo criativo?

Absolutamente tudo. “Vestindo”, são apenas sete contos num cruzamento de idas e vindas com o mundo da moda e a busca pela estética da moda, essa máquina que deve ser ouvida a cada fim e início de estação. “Muitas roupas aqui” é uma experimentação sem economias da forma. São 51 narrações entre contos e micro contos. É mais abstrata que o primeiro e menos preocupada com a moda. É muito mais sobre roupa do que moda – o que de alguma maneira é sobre a vida.

Crédito da imagem: Editora Penalux.

Sua escrita está atravessada no universo da moda. Como é sua rotina literária? Escreve todo dia? Tem uma organização própria que pode revelar para nós?

Tento escrever todos os dias. Nem que seja um parágrafo. O dia que não escrevo alguma coisa parece que um pedaço da minha existência se perde por aí. Escrevo desde meus oito anos. Mas, profissionalmente, desde os 13. Sem a escrita minha existência seria murcha, manca. E eu não gosto de regras, tenho as minhas próprias e elas não são negociáveis, podem ser incorporadas por outras coisas, mas nunca domadas.

Como ficou sua relação com a literatura na pandemia? Devorou livros ou mergulhou no isolamento?

Li muitas poesias, assisti filmes e desenhava freneticamente rostos de gente desconhecida porque não encontrava ninguém. Foi muito louco. 

O que temos de novidade para os anos que seguem? Livros novos estão chegando?

Meu romance de estreia será publicado em 2023. E quem sabe o livro de poesia também, mas ainda não sei. Não tenho medo do desconhecido. É muito bem-vindo.

Para ler Salma Soria compre seus livros no site da Editora Penalux:

https://www.editorapenalux.com.br/

Crédito imagem Salma Soria: Divulgação.

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