por Aristides Oliveira
Estou chegando aos trinta e seis anos em dezembro. Os dias se aproximam e a gente fica fazendo aquelas revisões internas sobre como chegamos até aqui. Esse texto ronda minha cabeça algum tempo. Vou aproveitar essa vibe pré-velhice e organizar minha memória em torno das sonoridades que me acompanham.
A primeira lembrança que vem é de 1990:
Na minha casa tinha um toca disco Philips 133 amarelo. Nessa época, o New Kids on The Block (NKOTB) estava no auge e minha irmã (Marília) empolgada com eles, cortando o cabelo igual ao Jordan Knight. Ela ganhou o disco Step by Step (1990) e queria escutar na vitrola. Fiquei observando a empolgação de encaixar o LP e a súbita frustração: o som estava muito abafado, chiando, quase inaudível. A vitrola não estava funcionando bem.
Não recordo se compramos outra vitrola, mas a gente começou a fazer a conversão de alguns discos para o K7, devido à praticidade no uso do suporte. Os discos do NKOTB ficaram esquecidos após virar fita BASF 60 min. Migramos do Philips 133 para o Sony CFS 3000 cinza. Considerava aquele toca fitas prateado um mini boombox, arrasa quarteirão com ensurdecedores 20 W PMPO!
Ele foi utilizado até 1999, quando minha outra irmã (Marina) comprou um toca CDs, mudando os hábitos dos ouvidos em casa. Resisti ao CD até 2002, quando percebi que era difícil comprar fitas virgens, me adaptando ao novo formato. Então meu ouvido estava situado entre três aparelhos, que atravessaram o vinil, K7 e CD. A partir deles eu vou contar sobre minhas vivências sonoras.
Quem habitou a década de 90 e tem uma faixa etária próxima da que carrego nas costas, presenciou uma fase de transição no campo dos suportes musicais. Lembro quando o disco já era objeto empoeirado, ocupando espaço na sala sem atrair os ouvidos dos mais velhos.
Entre 1990-1992, minha relação com música era dispersa. Tinha oito/nove anos e não levava meu ouvido a sério, o que fazia ouvir som a reboque das minhas irmãs, principalmente da Marília, sintonizada no pop-rock internacional. Foi ali que conheci Roxette e nunca mais parei de escutar…
Já de 1993 em diante, diria que encontrei no rádio um espaço para curtir e vivenciar algumas experiências, que lentamente foram definindo as escolhas musicais daquela época. Apesar de toda garotada ser influenciada pela TV, já que internet nem existia nos lares, o rádio foi um lugar importante na construção da minha personalidade musical.
Ah, lembrei aqui um negócio marcante: mamãe tinha uma caixa grande com LPs e deu “fim” neles (uma história trágica, inclusive), mas restaram algumas fitas num móvel de metal vermelho na sala, que usei para regravar os sons que tocavam na Tropical FM. Marina gostava de ouvir música e sempre atualizava seu acervo de fitas, seja gravando nas rádios ou encomendando em locadoras especializadas, principalmente a que ficava na esquina da nossa casa, a A.A Vídeo.
Voltando. Aí tinha aquela onda de assistir “Os Cavaleiros do Zodíaco” na TV Manchete, às 17h30, mas eu achava o desenho um saco e aproveitava aquele momento para sintonizar o canal 54. A minha casa era rodeada de prédios e tive a sorte de receber na televisão várias interferências de canais a cabo.
Nesse pacote gratuito ganhei a MTV e acompanhei sua melhor fase na metade da década. Foi ali que troquei os desenhos de fim de tarde pelos clipes, principalmente quando eu terminava de lanchar e assistia DISK MTV, espaço dedicado para divulgar os melhores sons que tocavam na semana.
Aquilo serviu de referência, escola e mapa para conhecer o que havia de mais legal na cena pop mundial. Quando a VJ Cuca anunciava a sequência de clipes eu parava tudo. Dali veio Sepultura, Mamonas Assassinas, Raimundos, Alanis Morissette e outras novidades fundamentais.
A partir da MTV comentava com meu amigo/vizinho Daniel – entre uma partida de futebol e outra – sobre música, desenho e as programações de rádio que gostávamos. Foi quando ele me convidou para ir na A.A Vídeo paquerar uns CDs que tinham acabado de chegar. Juntamos uma grana (não sei como arrecadamos) e locamos o CD do Megadeth (Countdown to Extinction, 1992) e Raimundos (1994), o famoso álbum de estreia. Foi a primeira vez que entrei em contato com CD. Minha experiência era tipicamente com K7s usados, quase dilatados por regravar várias vezes.
K7s decentes eram da marca Sony ou TDK, porque eram leves e suportavam longas regravações, mas como a grana não era muita sobravam duas opções: sacrificar uma fita já usada ou juntar grana para comprar uma BASF 46’, mais pesadas e chatas para regravar, porque a fita dilatava rápido.
A gente passou a noite ouvindo aqueles CDs na casa dele e claro: ficamos impressionados com a qualidade e nitidez do som. Aquilo era no mínimo revolucionário para aqueles dois garotos iniciantes, eu com 12 e ele 13 anos de idade.
Olho para trás e vejo o quanto foi interessante saber que nunca me limitei a escutar apenas um gênero musical. Os ouvidos sempre foram curiosos e abertos para todo tipo de sugestão que aparecia. Nossa empolgação era tanta que decidimos gravar mais fitas e compartilhar tudo que encontrávamos.
Daniel veio com uma novidade e me apresentou o rap/funk carioca. A batida eletrônica e as letras davam um diferencial no que já conhecíamos até ali, porque a gente ouvia muita coisa em inglês e com o funk produzido no Rio de Janeiro e em Fortaleza trouxe um campo de identificação mais ampla. Por um tempo trocamos as guitarras pelas pick-ups dos Djs Malboro e Cambota.
Acompanhamos a programação do Super Dance, Agito Jovem e Turma do Circuito, sempre gravando as montagens mais dançantes para ouvir nos encontros de fim de semana. Chegamos ao ponto de arrumar dois toca-fitas para simular nosso programa de rádio. Fazia o papel do apresentador, imitando a voz do cara da Tropical FM e o Daniel era o DJ, comentando o que rolava nos bailes imaginários.
A gente ficava especulando como era frequentar os encontros que rolavam no Gigantão da José Bastos e bancando os entendidos do assunto. Depois que a gente brincava de rádio, nos ouvíamos as fitas e ríamos das diferenças nas vozes de cada um.
Entre funk, rock, e os loves songs que ouvia escondido na programação das 22h, fui criando meu cardápio musical e selecionando os sons que combinavam com minha personalidade em formação. Na migração de Fortaleza para Teresina, me despedi do Daniel e segui meu ano de 1998 com saudade daqueles papos aos domingos na varanda da minha casa, na rua José Marrocos, 436-A.
A sorte foi conhecer o Rafael. Estudei com ele no Objetivo e por feliz coincidência, ele era um recém-chegado de Fortaleza e também apaixonado por funk carioca. Nossa amizade foi marcada pelo desafio de garimpar esse som numa cidade que não era curtia o gênero. Ele me emprestava o que tinha e eu adorava ouvir batidas que desconhecia.
Como gesto de confiança, emprestei minhas quatro fitas-sequência do Super Dance e fizemos um escambo muito proveitoso, sem falar no CD da Furacão 2000 que ele me deu de presente! Que amigo! Após um ano de intensa troca sonora, mudei de escola e nunca mais o vi…
Essa distância me levou a pesquisar reggae e logo mergulhei nas discotecagens do Dread Douglas, apresentador do Reggae Lions. Entre 1998-2000 gravei dezenas de fitas do programa dele. Nesse barco conheci Wailers e Eric Donaldson. Os pôsteres de rock tiveram que dividir espaço com as imagens do Bob Marley…
Em dois mil, passei as férias de julho em Fortaleza na casa do Daniel. Meus olhos brilhavam com a possibilidade de rever os amigos. Quando cheguei lá, ainda contaminado pelo funk carioca, Daniel nem queria mais saber… A onda era ouvir rock, principalmente Red Hot Chilli Peppers. Super Dance era coisa do passado e ele mostrou o clipe Californication.
Daniel estava fascinado com body-surf e aquele CD do Red Hot era a trilha perfeita. Eu lá sabia que universo era esse… Morava em Teresina e praia não estava nos meus planos. Lembro que fomos ao Icaraí (ou era Praia do Futuro?) e Daniel estava todo empolgado para mostrar suas novas habilidades no mar. Não vi graça nenhuma, era um universo completamente distante da minha realidade, mas a música foi um atrativo, mesmo não seguindo a pegada do Anthony Kiedis.
Eu dizia que ainda estava ligado ao funk e rap (um ano após me afastar do Rafael, já escutava Racionais, Dj Jamaica e Facção Central no programa Vozes da Periferia, fazendo a transição para músicas politizadas, lentamente me desfazendo das batidas e montagens), mas sentia que Daniel estava procurando outros sons e pedi para conhecer o que rolava nas suas caixas de som.
Numa tarde qualquer, ele colocou um VHS pra tocar e de cara achei que aquilo me agradava: era uma performance do Green Day, no show Jaded In Chicago (1994). Adorei e quis saber mais. Curti a mistura do pop com os riffs de punk, apesar da banda não ser ligada a essa trajetória, mas influenciada pelo gênero.
Voltei de viagem com o álbum 1,039/Smoothed Out Slappy Hours (1991) na cabeça. A partir daí, minha adolescência foi toda ocupada pela irreverência do Green Day. Era difícil ouvir programas de rádio dedicados ao rock em Teresina. Um dos poucos lugares que ainda tive chance de pedir algumas canções da banda foi no Enchendo o Saco, sempre aos domingos.
Aqui e acolá conseguia ouvir uma música do Warning (2000). Era uma pequena felicidade poder garantir um hit na gravação para minhas fitas e apreciar a mesma música ao longo dos dias, na expectativa de que na semana seguinte poderia somar outra no set.
Novos amigos que se tornam referências foram surgindo na minha vida. Eis que aparecem duas criaturas que posso afirmar sem drama: definiram meu caráter musical. Cardoso e Demetrios foram dois caras-alicerces na… digamos… fase adulta dos ouvidos. O começo da nova década representa os momentos decisivos para que minha estrada fique pavimentada e possa seguir minhas tendências com autonomia, mas isso só foi possível quando tive contato direto com os shows que Demetrios me levava.
Ainda estava na sétima série do ensino fundamental e comecei a frequentar as apresentações de punk-rock em Teresina, sendo que o primeiro rolou no espaço Belas Artes, a poucos quarteirões de casa. Lembro que perguntei: “onde nós vamos tem cadeira pra sentar?” “Todo mundo fica em pé o tempo todo?” E assim conheci o Diagnose, de Fortaleza. Os berros e confronto que rolava naquele pequeno campo de batalha foram reveladores para mergulhar no ritmo do punk de verdade, com agressão sonora genuína.
Demetrios chegava com fitas e CDs e me apresentou ao Sin Dios, Neurastenia, Ramones, Detrito Humano e uma infinidade de sons que ele recebia por cartas de todo país. Me sentia privilegiado em ter acesso a tanto material e grato por ter uma vaga no carro para frequentar os shows que rolavam pela cidade. Deixei de ser um ouvinte passivo e me tornei um espectador ativo no Boemia, Club dos Diários, Noé Mendes, Palmares…
A última influência a organizar meu repertório veio do Cardoso. Um cara fora do próprio tempo, que me proporcionou muitas reflexões que ultrapassavam os lugares comuns naquela fase de profundas descobertas existenciais. Enquanto estava num momento que o hard core ecoava pelas paredes do meu quarto, fortalecendo a heresia que levo até hoje, o cara chega com um sorriso leve e me acalma, com This Charming Man, The Boy With the Thorn in His Side e Girlfriend in a Coma, na voz inconfundível do Morissey, bem como as belas Friday I’m In Love, Inbetween Days e A Forest, do Cure.
Com muita tranquilidade e humor, Cardoso serviu como lugar de equilíbrio, compensando a influência das sonoridades furiosas trazidas por Demetrios. Foi o caos do som anarcopunk que abriu meus olhos para pensar a geopolítica do mundo, aliado a crueza nas letras do rap, mixado com a necessidade de não levar a vida com tanto peso, no qual as batidas do pós-punk e synth pop formaram uma paisagem com novas expectativas para construir minha maturidade musical.
A junção dessas pessoas e todo o universo que tive a oportunidade de desbravar demarcou um lugar firme na elaboração das minhas escolhas. Tudo que escuto de 2003 até hoje é reflexo dessa breve trajetória que compartilho com vocês. É importante cuidar do ouvido e influenciar positivamente quem nos cerca, zelando pela música de qualidade, sem perder o espírito da alegria e juventude.
Afinal, como a música que escutamos chegaram aos nossos ouvidos?