A Cena Musical Alternativa após o Momento Crítico da Pandemia

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Foto do compositor Eristhal, por Filipe Franco

Por Juli Manzi*

Bem menos privilegiada financeiramente do que o mainstream, a cena musical alternativa foi alvo fácil para a onda avassaladora da pandemia. Casas de shows fecharam, estúdios de ensaio e gravação faliram, programações foram suspensas e os editais públicos e privados que fomentam a cultura demoraram até adequar-se a novos formatos. Os músicos tiveram que recorrer às mais variadas estratégias para sobreviver e, quando possível, manter a carreira, embora longe do calor do público.

Produtores de shows ficaram inseguros sobre quais produtos oferecer, enquanto os produtores de estúdio se estringiram ao trabalho remoto. A evolução dos home studios permite aos músicos gravar em casa e compartilhar seu material direto com o público, ou com colegas, em parcerias e gravações coletivas. Para desfrutar dessa praticidade, artistas se dedicaram ao aprendizado, aquisição e atualização de equipamentos e programas. Quanto aos ensaios online, a internet ainda não permite uma comunicação sem atrasos e com boa qualidade de som, embora o uso de programas recentes possibilite correções.

Diante desse cenário, a dúvida sobre como será a reconfiguração da cena musical alternativa paira, intrigante. Profissionais que atuam em diferentes funções na cena, sobretudo na cidade de São Paulo, relatam a seguir suas experiências e expõem suas expectativas, partindo do pressuposto que o momento mais crítico da pandemia já passou, o que ainda é incerto.

Oriundo da dupla Os Mulheres Negras, o compositor Mauricio Pereira seguiu em carreira solo por conta própria até tornar-se um estandarte da música alternativa. Compõe, concebe e produz seus álbuns, além de criar e dirigir seus shows, entre outras atividades em torno da sua carreira. Na opinião dele, “a cena alternativa se desenrola muito na estrada, nos festivais, nas casas, nos encontros. A energia do encontro é o motor da cena, gera muita química, tem muita gente interessante, o público, os artistas, os produtores.” A ausência desse “motor” causou um prejuízo irreparável para São Paulo: “há muitos anos a cidade vive da cena cultural, da balada, da noite, da aglomeração, do congraçamento, da mistura de gente, dos grandes eventos de cultura e entretenimento. A gente perdeu muito, e não foi só grana.”

Aulas particulares, oficinas e workshops online, redução drástica nas despesas pessoais, auxílios familiares, auxílios emergenciais do governo, venda e rifa de instrumentos e equipamentos musicais, venda de CDs e LPs, de pertences pessoais, lives remuneradas, enfim, foram inúmeras opções às quais os músicos recorreram para se manterem financeiramente durante a pandemia. Mesmo que o isolamento social tenha aumentado o consumo de música nas plataformas digitais, essa ainda é uma fonte de renda precária para a maioria deles.

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Eristhal é multi-instrumentista, cantor, compositor e produtor. Apostou na capacidade de reinventar-se para se adequar às condições: “antes da pandemia, minha renda provinha de apresentações ao vivo e gravações em estúdio. Com o fechamento das casas, toda a agenda de shows também caiu, junto com meu faturamento. Entendi que o momento era de me reinventar. Adquiri equipamentos para montar um estúdio em casa, comecei a estudar produção musical e investir em gravações.” Assim, criou um novo projeto que o ajudou a manter-se: “sensibilizado com pessoas próximas que estavam com saudade de entes queridos mas não podiam ter contato físico, resolvi criar o
projeto Música Por Encomenda, onde o cliente faz uma homenagem para alguém através de uma canção autoral.”

Consagrada na cena alternativa há anos, a Trupe Chá de Boldo não interrompeu suas atividades por muito tempo durante a pandemia. Logo começaram a lançar vídeos, gravações de shows, música inédita, novas versões e um show transmitido ao vivo pelo Sesc. Ciça Góes, vocalista da Trupe, lembra que os danos causados pela pandemia foram também da ordem artísticocriativa: “em paralelo à queda na receita individual, há também uma perda na experimentação. Sem encontro, a criação não se consolida mais coletivamente. Não tem teste, a experiência foi amputada. Essa parte da investigação artística se perdeu. O calor do processo sumiu. Ficamos sem a mediação da presença, sem o retorno do encontro (ensaios, shows, experiências de som ao vivo) que dava estofo para a criação.”

O tempo dedicado à criação também sofreu mudanças com a pandemia. Mauricio Pereira descreve sua rotina no isolamento: “fiquei quieto, tava muito angustiado. Resolvi escrever – muito – pra desafogar. A intenção era só me aliviar, mas acabei, meio sem querer, compondo algumas coisas.” Eristhal observa que, além da criação ser fonte de renda, “compor também se tornou uma válvula de escape e abstração para não surtar com os lamentáveis acontecimentos.”

O compositor e produtor Rafael Castro é proprietário do bar Picles, um reduto underground de Pinheiros muito frequentado por artistas. Para ele, “a cena musical alternativa já estava em vias de acabar. Vínhamos acompanhando pouquíssimos lugares onde restava a cultura de ver show de alguém não-famoso. Temos que aproveitar esse choque e levantar a causa, criar cultura e reerguer a cena, ou vamos acabar indo pro mesmo buraco para onde estávamos nos dirigindo. Já vínhamos competindo e perdendo feio das atividades individuais, do Spotify, do Netflix, do conforto guardado na solidão de cada um.”

Proprietária do Teatro de Bolso do IV Mundo, Malu Maria lastima as ausências nos palcos: “enquanto musicista, sinto uma necessidade vital em fazer shows presenciais e, enquanto público, uma saudade enorme de assistir. Porém, mais vital é aguardamos as condições estarem de fato seguras para isso.” Ela acredita no surgimento de muitos espaços novos, “apesar dos outros tantos que perdemos.” O Teatro de Bolso foi contemplado com recursos da lei Aldir Blanc, que injetou uma verba considerável no setor no segundo semestre do ano passado, e existe a expectativa de que isso volte a ocorrer neste ano. O problema é que o grande número de contemplados pela lei no ano passado multiplicou as inscrições nos editais deste ano, prova de que os que sobreviveram estão atentos às vias que se oferecem para a retomada das atividades.

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O produtor Juka Tavares observa o aumento na procura pelo serviço de elaboração de projetos culturais para inscrição em editais: “aumentou demais, tive que negar algumas propostas por não estar mais dando conta. O programa de editais culturais de SP teve aumento de 338% nas inscrições deste ano. É muito difícil avaliar tantos projetos de maneira justa. Escrever um projeto não é uma tarefa simples, exige conhecimentos específicos que dificultam muitos grupos artísticos a terem sucesso.”

Outro espaço contemplado pela lei Aldir Blanc foi a Casa Gramo, que vinha enfrentando dificuldades financeiras antes da pandemia. Segundo Beto Antunes, produtor e proprietário, “o encerramento das atividades ou a falência do negócio é a consequência mais drástica que pode ocorrer a um empreendedor cultural. O endividamento bancário, imobiliário e trabalhista também podem ser consequências graves. É triste ouvir que diversos espaços culturais consagrados da noite paulistana, com décadas de prestação de serviço à classe artística e à comunidade, fecharam ou estão em risco de fechamento.”

Além dos espaços para shows, os músicos dependem também do funcionamento dos estúdios de ensaio e gravação. Bruno Buarque é músico e proprietário do estúdio Minduca, no bairro Butantã. Ele diz que, no ano passado, o Minduca chegou a parar: “o choque e a incerteza gerados pela pandemia fizeram com que os trabalhos, mesmo que remotos, parassem completamente. Acabei aproveitando o estúdio para estudar e fazer a manutenção dos equipamentos. Este ano, vários trabalhos voltaram aos poucos, e também fizemos algumas lives e gravações presenciais. Sempre, obviamente, testando antes e observando todos os protocolos possíveis.”

Vendedor de shows, Juka Tavares conta que, no começo da pandemia, teve contratos cancelados e recorreu a um empréstimo bancário: “investi parte do dinheiro em formação, com cursos relacionados à divulgação virtual, me adaptei ao formato e encontrei oportunidades de trabalho.” Segundo ele, “a pior consequência para um produtor é não poder cair na estrada com os artistas e levar alegria para as pessoas, ver um artista deixando o palco e a plateia enlouquecida, pedindo mais. Isso não tem preço.”

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Moisés Moita, guitarrista da banda Porcas Borboletas, acredita que “os artistas vão continuar produzindo, mesmo que tenham que se manter por outros meios, o que é muito triste, pois a dedicação exclusiva à linguagem é o que permite seu desenvolvimento. Espero que, com o tempo, as casas de shows se recomponham e os Sescs e centros culturais contemplem uma vasta gama de artistas e técnicos que estão desempregados.” Os profissionais que atuam na retaguarda dos shows foram, sem dúvida, os mais atingidos pelos reflexos da pandemia. As equipes técnicas, de produção, o pessoal das casas noturnas, dos festivais e os que trabalham na infraestrutura, ficaram sem opções para seguir atuando, pois seu ofício depende da aglomeração de pessoas.

O compositor, DJ e produtor musical Tatá Aeroplano, figura-chave do underground paulistano, vê a retomada das atividades presenciais como “uma movimentação coletiva unindo espaços culturais, festivais, feiras de música, casas noturnas, jornalistas, selos, artistas, rádios comunitárias e bandas. Acredito muito na coletividade pra gente reestruturar a cena”. Juka Tavares faz coro à esse sentimento: “é necessário nos enxergarmos como classe artística e nos mantermos unidos, trocando informações sobre oportunidades, passando contatos e fazendo pontes. Essa experiência mostrou quem está junto na caminhada.”

Na ativa desde os anos 1970, o guitarrista Tonho Penhasco desconfia que, com a pandemia, “pode ter ocorrido até de uma porcentagem da moçada já ter trocado de ramo, ou então a gente vai assistir a um bando de criadores ávidos para ocupar espaços.” Mas receia que “apesar da quantidade de lives, postagens etc., possa ter ocorrido uma relativa perda de ‘embocadura’ dos músicos de se apresentar frente ao público.”

Frequentador assíduo da boemia paulistana há três décadas, o poeta e letrista Daniel Perroni Ratto também contabiliza os prejuízos: “a música precisa de aglomeração, do presencial. Sinto muito a ausência dessa troca ‘ao vivo e a cores’, do contato humano, da experiência do encontro, de conhecer bandas e cantores novos, fazer amizades e conhecer novos parceiros na música. Sinto falta da efervescência de ideias, de criatividade, das possibilidades e do calor das amizades que a vida noturna descortina.”


Juli Manzi é jornalista e compositor. Doutor em Artes pela UNICAMP e professor do
Centro Universitário UNIFAAT

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