Erotismo e Afirmação de Vida em Pedro Páramo de Juan Rulfo

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Por Nuno Brito*

Comecemos pela natureza do espaço. O que representa o lugar onde ocorre esta narrativa? Quais são suas cargas de significados? De que forma esse lugar se manifesta como um espaço múltiplo que cruza distintas dimensões vitais?

De Comala nos diz o próprio Juan Rulfo: “um povo morto onde não vivem mais que almas, onde todos os personagens estão mortos e até quem narra está morto”. Por outro lado, Fabienne Bradu nos afirma: “Se em Comala o ar não circula, a asfixia circunda toda voz viva, e a falta de ar afoga a voz em vida, que ainda está em relação com as demais vozes, com os demais seres humanos” (Bradu 28).

Se esse é um cenário de morte, cabe-nos perguntar: qual é o poder simbólico que a morte adquire nesse romance, qual é seu poder de sugestão? Se por um lado o personagem Abundio nos afirma no início do relato: “Aqui não vive ninguém” (Rulfo 13), Juan Preciado diz pouco depois: “Senti que o povo vivia” (Rulfo 13).

Essa vitalidade paradoxal entre a vida e morte é aquilo que Georges Bataille nos aponta como a sua principal definição do erotismo: “aprovação da vida até na morte” (Bataille 8). Sob essa luz, Comala manifesta-se como um lugar de cruzamento, de contato, de interseção: um cruzamento de caminhos, de passagem e de deslocados. Por Comala as pessoas passam rumo (ou sem rumo) a destinos outros e a caminhos outros. E como começo Comala é um ponto de partida mas também um cruzamento em que a vida e a morte se confundem e as formas se diluem e desvanecem perdendo os seus limites definidos e possibilitam um encontro.

Aquilo que em Comala parece estar estagnado logo à primeira vista (a descida de Abundio até à aldeia) é tomado por uma onda de movimento e vida gerador de um espaço amplamente habitado. Em Pedro Páramo, a morte representa o nascimento de uma transmutação, uma aprovação da vida, a possibilidade mesma de dissolução das formas – elemento central que Georges Bataille atribui como motor do erotismo: o erotismo enquanto dissolução, encontro e abertura de possibilidade. A morte como uma aprovação da vida pela presença de uma continuidade, de um estado aberto do ser.

O espaço físico de Comala afirma-se como um espaço de vida, povoado, habitado e intensificado pela memória. A concretização de um espaço interior. As vozes espectrais que povoam Comala não são apenas as vozes dos mortos, mas também as vozes das memórias e das histórias coletivas que se cruzam criando um sentido de comunidade atemporal, a memória, tal como a morte, representa em Pedro Páramo a grande possibilidade de transmutação, o espaço de uma mudança contínua e de um habitar físico. É na memória que o espaço de Comala se manifesta, como concretização de uma transformação permanente dos estados internos: “minha cabeça estava cheia de ruídos e de vozes” (Rulfo 13), ou “Este povo está cheio de ecos” (Rulfo, 1955, 53). As vozes são por isso inteirores e Comala é mais que tudo um espaço interior e mais verdadeiro enquanto cruzamento de caminhos em que espaço e memória se confundem. A memória habita, transfigura e erotiza este espaço: as lembranças que Pedro Páramo tem de Susana, as lembranças que Susana tem de Florencio (o banho no rio e o banho no mar); são as memórias que intensificam o espaço vivo de Comala e que o tornam um fluxo permanentemente mutável e vivo.

O espaço é povoado enquanto experiência interna, por isso mesmo Juan Preciado afirma: “Senti que o povo vivia”. Os seres que habitam Comala estão em  caminho, e é a morte que abre esse caminho, essa continuidade, como quando Eduviges diz a Juan Preciado: “Alcançarei sua mãe em algum dos caminhos da eternidade” (Rulfo, 1955, 17).

Podemos afirmar que, em Pedro Páramo, a morte é erotizada; por meio dela se torna possível um erotismo do sagrado enquanto visão de uma união mística. Em Pedro Páramo a morte rompe definitivamente com o abismo da individualidade, com uma descontinuidade. Para Georges Bataille, esse rompimento, sempre feito com violência, possibilita uma transgressão e rompe com a descontinuidade do indivíduo, gera uma mutabilidade e possibilita um movimento nascente. Dessa forma a mutabilidade e o movimento são os principais núcleos e redes pelos quais o erotismo se manifesta em Juan Rulfo. Assim como o espaço interno da memória, o espaço externo é tomado pelo movimento.

“Ali, onde o ar muda a cor das coisas; onde se ventila a vida como se fosse um puro murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida…” (Rulfo 74).

Manifestações de vida em que a própria natureza é erotizada em toda sua plenitude:

“A chuva amortece os ruídos. Continua-se ouvindo mesmo depois de tudo, granizando suas gotas, alinhavando o fio da vida.” (Rulfo 110).

Trata-se de observar uma ruptura, uma transgressão (morte, espaço e memória) erotizados enquanto elementos de uma pulsão vital, lugar de coexistência de paradoxos, presença contínua do sagrado ou, sublinhando Bataille: todo erotismo é sagrado; todo ele implica uma transgressão, o rompimento de um estado fechado de individualidade, um desequilíbrio instaurado, uma tensão que permite aceder a um estado de totalidade e completude pela Revitalização do mundo natural pela  possibilidade de um movimento e uma continuidade.

Reforcemos aqui as três principais manifestações que Bataille atribui ao erotismo: o erotismo do corpo, o erotismo dos corações e o erotismo do sagrado. Sendo Pedro Páramo um romance que nos fala essencialmente de espectros, de vozes e ecos, é importante ressaltar a importância vital que o corpo assume nesta narrativa. Podemos dizer que é pelo corpo e à sua escala que tudo se mede nesta obra.

O corpo afirma-se na narrativa como uma experiência reforçada, com maior poder de concretização visual por seu contraste com a realidade espectral. Pedro Páramo transmite-nos uma experiência corpórea, hipersensível, na qual o corpo se manifesta na sua conexão com a terra e na seu exercício de simbiose com o espaço terreno.

É um corpo que expressa um vínculo: “O céu para mim, Juan Preciado, está aqui onde estou agora” (Rulfo 84), vínculo com uma condição de materialidade que rompe com a idealização de uma transcendência artificialmente distante. Vínculo que, desde o começo, propõe a condição de uma ligação ao chão que é indissociável de uma conexão mais profunda e verdadeira com a fluidez da vida. Essas são as memórias de Susana enquanto ela recorda a figura de Florencio:

“Que comprido era aquele homem! Que alto! E sua voz era dura. Seca como a terra mais seca. E sua figura era borrosa, ou se tornou borrosa depois? como se entre ela e ele se interpusesse a chuva. […] Mas o que eu quero dele é seu corpo. Nu e quente de amor; fervendo de desejos; apertando o tremor dos meus seios e dos meus braços. Meu corpo transparente suspenso do seu. Meu corpo leve sustentado e solto em suas forças.” (Rulfo 126)

No início dessa descrição, temos a sugestão de um perfil pouco nítido que nos aponta para a dissolução das formas humanas com a água em queda da chuva, e nisso, para a sedução do ilimitado, da totalidade. Mas na perceção de Suzana a figura de Florencio vai ganhando contornos e consistência física, concretização de  um corpo erotizado e desejado, afirmado também na sua vitalidade, finitude e fragilidade física, indissociável de um primeiro erotismo.

É pelo corpo que se pede proteção e se sente segurança e é por ele que se reivindica um espaço. Trata-se da apologia do corpo, das suas formas e da sua vitalidade

Os mesmos elementos de sedução que nos remetem à apologia do sensorial, do sensível e do concreto encontramos também nas memórias de Suzana, as memórias do banho no mar. É na figura de Susana e em suas memórias que se concretizam as principais manifestações de um “erotismo dos corpos” nesse romance:

“Meu corpo sentia-se à vontade sobre o calor da areia. Tinha os olhos fechados, os braços abertos, as pernas desdobradas à brisa do mar. E o mar ali em frente, distante, deixando apenas restos de espuma nos meus pés ao subir da maré… […] O mar molha meus tornozelos e vai; molha meus joelhos, minhas coxas; rodeia minha cintura com seu braço suave, de volta sobre meus seios; abraça meu pescoço; aperta meus ombros. Então me afundo nele, inteira. Entrego-me a ele em seu forte bater, em seu suave possuir, sem deixar pedaço.” (Rulfo 120)

A sugestão de um mar erotizado é apresentada em contato com um corpo descrito em toda sua potência e sugestão. Trata-se de registrar um contato e um instante de totalidade, de celebração daquilo que Freud considera como sentimento oceânico, instante de plenitude e de expansão. Tal como o movimento das marés o encontro dos corpos celebra um ritmo que é ancestral e mágico.

Em Pedro Páramo o corpo é figurado repetidamente na sua analogia com a terra, por exemplo, na oração que o padre Rentería faz Susana repetir:

“Tenho a boca cheia de terra (…) – Engulo saliva espumosa; mastigo torrões cheios de vermes que se aninham na garganta e arranham a parede do paladar…” (Rulfo 143)

De forma semelhante, a condição de espectros não é tão sugerida como a condição do corpo morto. Por essa ideia, os corpos são descritos enterrados, mas mantendo seus atributos vitais – eles falam, sonham, suam, tal como Juan Preciado, Damiana ou Susana.

Foquemo-nos nessa descrição inicial de Eduviges feita por Juan Preciado:

“Percebi que sua voz era feita de fibras humanas, que sua boca tinha dentes e uma língua que se atrapalhava ao falar, e que seus olhos eram como todos os olhos das pessoas que vivem sobre a terra.” (Rulfo 13)

Tudo nessa descrição remete mais à evidência de uma concreção física e vital do que a um espectro; tudo sugere vida. Essa é a ideia ou a ilusão que Juan Preciado sente em Comala.

Tudo remete a uma corporeidade, a um sentir que o povo vive em plenitude de suas manifestações físicas e não espectrais. Nessa sugestão se manifesta todo o erotismo presente na obra.

De outra forma, poderíamos dizer que não há fantasmas em Pedro Páramo; há sim a dissolução e o encontro entre um mundo interior e um mundo exterior, um mundo interno, de memórias (também espacial), e um mundo físico celebrado na sua, finitude, materialidade e perecibilidade.

O erotismo em Pedro Páramo manifesta-se, assim, como uma força que atravessa os corpos, , os espaços, as vozes, as memórias e as histórias de Comala, mas mais amplamente um sentido humano e colectivo. Diríamos que Comala será sempre maior do que o espaço de uma comunidade humna e geográfica, ele é também uma reflexão sobre a experiência humana do desejo, da vida, da morte e do medo. Uma força que não busca resolver as dicotomias entre vida e morte, entre corpo e espírito, entre passado e presente, mas sim tensioná-las, superpô-las e cruzá-las. É nesse cruzamento que esta narrativa é mais vital, na coexistência paradoxal dos opostos que gera amplitude e verdade.

Essa tensão erótica  expressa também na linguagem, na forma narrativa de Juan Rulfo. Na ausência de uma linearidade cronológica, na fragmentação, justaposição de vozes e tempos, na intensidade das imagens poéticas que satura a linguagem de sentidos e surpresas várias, no inesperado da sucessão dos eventos e na consciência das personagens, numa estrutura que reflete o próprio entrelaçamento de vidas e mortes, de lembranças e esquecimentos.

Como afirma Octavio Paz, a prosa de Juan Rulfo é feita de silêncios, de pausas, de ausências que dizem tanto quanto as palavras, nesse sentido esta é a obra de um  “um murmúrio do México profundo”, onde o erotismo não é grito, mas sussurro – uma presença tênue, persistente, difusa, como o ar quente de Comala.

O erotismo afirma-se assim em Pedro Páramo como uma forma de resistência. Frente à esterilidade do poder patriarcal de Pedro Páramo, à violência estrutural que domina o povoado, o erotismo manifesta-se como uma forma de retorno à sensibilidade, à experiência, à comunhão.

Pedro Páramo é também o símbolo da seriedade que há na apropriação, do poder reprodutor da morte. Em contrapartida, as figuras femininas – especialmente Susana San Juan – encarnam a força transgressora do desejo, da loucura e da dissolução das formas racionais.

Susana não é apenas objeto do desejo de Pedro Páramo; ela representa, antes, a afirmação de uma lógica que escapa ao domínio masculino, à lógica do controle. Sua loucura é um espaço de liberdade e potência, uma recusa radical à objetificação. Sua entrega ao mar é uma entrega ao corpo, à fusão e à morte como êxtase.

Podemos afirmar assim que o erotismo em Pedro Páramo não se limita à sexualidade. Ele é uma força que atravessa toda a narrativa como um princípio vital e subversivo. Um princípio que torna possível habitar o espaço da morte com desejo, povoar o vazio com ecos e vozes, fazer do silêncio uma afirmação da vida.

Comala, então, é um território do impossível tornado real: um espaço de morte sim mas onde tudo pulsa e está carregado de sentidos, direções: um campo de ecos onde tudo fala; uma terra árida onde as memórias e as histórias são férteis. É nesse paradoxo que reside a beleza e singularidade de Pedro Páramo, e também sua força política: afirmar que, mesmo no deserto mais seco, é possível escutar a chuva. Em Comala todos os caminhos se cruzam e é por isso que a sua complexidade é atemporal intensa e profundamente necessária aos dias de hoje. A humanidade e a vitalidade que as personagens de Comala atingem faz desta uma novela uma das mais complexas, vitais e sugestivas da novela hispano-americana do século XX.

BIBLIOGRAFÍA:

Bataille, Georges. El Erotismo. Tusquets. 2008.
Bradu, Fabienne. Ecos de Páramo. Fondo de Cultura Económica, 1989.
Deleuze, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Editora 34, 1992.
Paz, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Siciliano, 1994.
Rulfo, Juan. Pedro Páramo. Fondo de Cultura Económica, 1955.


Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É autor dos livros de poesia e conto: Delírio Húngaro (Porto 2009), Duplo-Poço (Lisboa, 2012), Estação de serviço em Mercúrio (Lisboa, 2015) e Ode menina (2021). É doutorado em Literaturas Brasileiras e Portuguesas pela Universidade da Califórnia. Atualmente é Professor no Departamento de Línguas e Literaturas Românicas da Universidade de Búfalo em Nova York onde vive com a sua família desde 2023.

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