Terrorismo antinegro como política de segurança pública: o assassinato da jovem Ana Luísa Silva dos Santos, em Salvador

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Por Jorge Augusto*

Nessas duas décadas do século XXI, a ideia de terrorismo se espalhou pelo mundo, filtrada pela dimensão imperialista e xenofóbica de países como Estados Unidos, Inglaterra e França, sendo alicerçada em uma narrativa de proteção interna dessas nações. Esse cenário, que veio a intensificar a onda de repulsa aos imigrantes no mundo, pode ser facilmente explicada pela proposição de Achille Mbembe em seu “Políticas da Inimizade”, quando nos diz que um inimigo externo é o elemento coesivo determinante no pertencimento nacional.

A definição de terrorismo é ampla e complexa, mas a circulação da noção tem sido exposta massivamente após o onze de setembro e atentados posteriores em países europeus, comumente reduzida a um de seus aspectos, o “ato terrorista”, impedindo, assim, que relacionemos o termo ao cotidiano brasileiro e, mais especificamente, ao dia a dia da população negra no Brasil. Nesse sentido, é necessário esclarecer que, grosso modo, terrorismo não se restringe a ação de ameaçar matar um indivíduo ou grupo de pessoas arbitrariamente ou intencionalmente escolhidas, ele se caracteriza, também, e de forma decisiva, pelo efeito posterior a essa ação. Assim, terrorismo, pode ser compreendido como a produção ininterrupta e intensa de um pavor coletivo, que submete um grupo social ou comunidade étnica ao convívio ordinário com a iminência da morte e todas as consequências a isso concernentes, em diversas dimensões, psíquicas, políticas, culturais, afetivas.

Não é preciso muito esforço teórico para compreender que a ideia de terrorismo se aplica com pertinência à condição da população negra no Brasil, particularmente na Bahia, que tem na última década progressivamente assumido o protagonismo da letalidade de jovens negros e negras, dando números e materializando, em plena luz do dia, o que Abdias do Nascimento chamou de Genocídio negro. O termo terrorismo e seu funcionamento está implícito em obras literárias baianas como “Tombos e Tosses do Revolucionário Yuri Babacof”, de Sílvio Roberto Oliveira, em “Salvador Cidade Túmulo”, de Hamilton Borges e “Salvador Negro Rancor”, de Fábio Mandigo, entre outras.

A Bahia assombra a população negra, que compõe 80% do total de habitantes do Estado, segundo o IBGE, imprimindo na rotina dessas pessoas a morte como dispositivo de controle político, psíquico e econômico. Os números que atestam essa afirmação são incontáveis, e também incontestáveis no sentido de ratificar que a política de segurança pública da Bahia é baseada no Terrorismo antinegro. Citaremos um dos dados mais recentes: segundo a Rede de Observatório de Segurança, em 2023, mais de 94% dos jovens assassinados na Bahia eram negros. Isso deve ser lido considerando que a Bahia tem a polícia militar mais letal do Brasil, segundo a mesma pesquisa.

Para compreender o terrorismo antinegro como modulador da vida da população negra e periférica é necessário diferenciá-lo do chamado Terrorismo de Estado, pois este se constitui a partir da legitimidade do uso da violência, dando dimensões pseudo constitucionais a seu uso, sobretudo quando o corpo vítima dessa violência é o de uma pessoa negra. No terrorismo antinegro, todos estão previamente autorizados a exercer a violência contra a pessoa negra, desde que seja uma pessoa branca, ou o que Frantz Fanon chamou de um “intermediario do poder”, normalmente aqueles que encarnam as formas militares, mas também qualquer outro que haja sob ordem e em nome da branquitude. É por isso que uma patroa branca pode deixar uma criança de cinco anos sozinha em um elevador sem ser penalizada por sua posterior morte, por isso que homens brancos podem abusar sexualmente de funcionárias de suas empresas ou estuprá-las sem serem penalizados e homens negros podem ser arbitrariamente espancados, humilhados ou mortos, publicamente, sem que tenham feito nada contra a lei.

No Terrorismo antinegro a violência é arbitrária, como apontam teóricos afropessimistas como Frank B. Wilderson III. Ela não precisa de justificativa política ou jurídica. Mas ela não prescinde de sentido: ela é aquilo que demarca a posse do território, dos bens materiais produzidos nele e em seu entorno, reafirmam o poder de distribuição da riqueza e afirmam a desumanidade do outro, no caso do negro brasileiro. Nessa estrutura, portanto, o genocídio negro existe porque as pessoas negras são desumanizadas, e o Terrorismo negro é aquilo que mantém funcionando freneticamente sua estrutura de desumanização, é o que impede sua reontologizacão após os processos de abolição da escravatura e republicanismo pelo qual passou a nação brasileira . Ambos dispositivos se conectam e se completam.

O Terrorismo antinegro não é dependente do número de mortes. Por exemplo, ele trabalha nas camadas noturnas da vida negra, adoecendo os que ficam vivos, apodrecendo suas relações familiares, laborais, afetivas, assombrando e apavorando a psique negra, minando sua estima e autoconfiança, com todos os fantasmas de morte, perda e submissão, impedindo que a vida tenha uma mínima experiência de liberdade. Esse é mais um processo pelo qual se constitui o que Osmundo Pinho chamou de “Subjetividade Carcerária” denominando processos de produção subjetiva das pessoas negras.

O assassinato de Ana Luísa Silva dos Santos, no bairro da Engomadeira, em Salvador, pelo braço armado do Estado da Bahia, não entra para as estatísticas apenas como mais uma morte de mulher negra; além disso, amplia, ratifica e ameaça nosso desejo de mobilidade, nossa esperança de liberdade, nosso anseio de futuro, nossa vontade de passear, nossa disposição para rir. Cada morte negra instaura o terror como fundamento da vida negra, acentuando o terrorismo como dispositivo de regulação da vida negra e periférica e o medo como afeto mobilizador de nossa interação social com nós mesmos e com o mundo. Disso derivam efeitos psíquicos e subjetivos ainda não mensurados. Além do genocídio de um grupo social e étnico, inscrito novamente na morte de Ana Luísa, há o terrorismo antinegro que se reafirma como mecanismo cotidiano de ameaça à vida negra e como páthos comunitário na iminência da perda.


Jorge Augusto é poeta e doutor em Literatura, autor de “Modernismo negro”, “O Mapa de Casa” e “Muvuca”. Atua como docente do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA.

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