“Nunca devemos esquecer que cultura é, queiram ou não os canalhas, resistência e esperança” – Entrevista com Wellington Soares

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por Demetrios Galvão e Thiago E

O cenário cultural de qualquer lugar é feito por pessoas criativas e corajosas. São cidadãos que conhecem a força libertadora das artes e da educação numa sociedade. Sabem que é necessário investir em atividades culturais para ampliar as perspectivas dos povos, para haver humor e ciência, para movimentar a economia, para existir um país.

Wellington Soares é um desses piauienses que lutam pela educação. Natural de Teresina, nasceu em 15 de dezembro de 1958: um dos nove filhos da queridíssima dona Raimunda. Cresceu nos movimentos estudantis da Universidade Federal do Piauí e se tornou escritor, produtor cultural e reconhecido professor de literatura na sua cidade.

É difícil falar da cena literária de Teresina e não ver Wellington em meio aos acontecimentos. Foi um dos idealizadores do Salão do Livro do Piauí (SaLiPi) e vive metido na organização de feiras literárias pelo Estado. Na Livraria Anchieta, realiza mensalmente o sarau Café Literário, que se encontra suspenso devido à pandemia da Covid-19. É um dos editores da importante revista Revestrés, atualmente na 48ª edição. Também coordena o Pré-Enem Seduc (projeto de inclusão universitária do governo estadual) e é curador da Balada Literária do Piauí, evento que ocorre anualmente. Lançou os livros Linguagem dos sentidos (1992/Conto), Maçã profanada (2003/Conto), Por um triz (2007/Crônica), Um beijo na bunda (2011/Crônica), O dia em que quase namorei a Xuxa (2013/Crônica), Cu é lindo & outras histórias (2016/Crônicas e contos), Desenredo (2018/Conto) e Tesão na geladeira (2020/Conto).

Neste período em que o Brasil vem sendo destruído pelo bolsonarismo, e chegamos a mais de 565.000 mortos pelo descaso do governo federal com a pandemia, tem muita gente contra essa política da morte e trabalhando por um país da vida. Wellington Soares está nesse time. Conversamos com ele virtualmente e seguimos aprendendo com seu inconformismo.

Como você se tornou leitor? E o que te fez escolher ser professor?

O hábito nasceu ainda na meninice, devorando revistas em quadrinhos do Tarzan e Zorro, meus heróis na época. Comprava-as na banca do Liceu, perto de onde morava, centro norte da cidade. Depois, cheguei às obras literárias ao descobrir o vasto mundo, como diria Drummond, das bibliotecas de Teresina: Cromwell de Carvalho, Abdias Neves, do Ministério da Fazenda e do Sesc, próximo ao Troca Troca. Aí não parei mais, de tão apaixonado por tais histórias. Quanto a ser professor, penso que foi o magistério que me escolheu, talvez por ter duas irmãs professoras, gostar de ler e, com o aprendizado do teatro, dominar a arte da comunicação. Sem falar ainda, claro, de querer socializar conhecimentos e sonhos.  

Welington Soares no lançamento do livro ” Cu é Lindo e
& Outras Histórias” na livraria Anchieta

Com uma longa experiência em sala de aula, como você observa o ensino de literatura nas escolas?

De forma lamentável, por estar voltado unicamente ao vestibular. Isso torna a disciplina, cujo objetivo é ampliar os horizontes dos alunos, do ponto de vista existencial e estético, em algo esquematizado, preso a cronologias e estilos rígidos. O que era pra ser prazeroso acaba virando uma chatice – alunos emparedados diante de cinco alternativas –, afastando-os de vez da inigualável viagem com e através das palavras. Quando o desejável é levar essa galera a usufruir, durante a vida toda, um bom romance, uma excelente obra poética, um livro de conto/crônica de tirar o fôlego e, não pode faltar, uma peça teatral que provoque uma profunda catarse em sua existência. Aliás, por que se lê tão pouco textos do gênero dramático no Brasil? Felizmente, a chegada do Enem tem, ao valorizar a interdisciplinaridade, provocado um suspiro no ensino da literatura, pondo abaixo a triste decoreba de outrora.  

Se o ENEM não cobra literatura piauiense, o que fazer para melhorar a formação dos leitores do nosso estado?  

Essa é uma grave lacuna do Enem, entre outras, que precisa ser corrigida urgentemente. Como as escolas vivem em função desse exame, elas também não adotam ou relaxam na exigência da leitura. O que já era ruim, com os alunos lendo quase nada, ficou ainda pior. Basta olhar o vergonhoso resultado na redação do ano passado: somente 28 estudantes tiraram a nota máxima de mil pontos, ao passo que 87.567 mil zeraram a prova. Caso a adoção de autores piauienses fosse implementada nas escolas públicas e particulares, conforme determina lei aprovada na Alepi, de iniciativa do deputado Merlong Solano (PT), já seria um auspicioso começo.  

Nos seus livros, Maçã ProfanadaUm beijo na bundaCu é lindo & outras históriasTesão na geladeira, o sexo é tema recorrente. O sexo tem um papel na sua narrativa? 

Claro, pois sou de uma geração que encara o sexo com naturalidade, sem o sentimento de pecado trazido ao Brasil pelos jesuítas. Igual aos nossos índios, vejo o sexo como uma brincadeira gostosa, sinônimo de prazer e felicidade. Logo, assunto tão importante quanto os demais presentes na minha obra, a exemplo das traquinagens da infância, dos problemas sociais, das incertezas da vida, dos conflitos amorosos, da inevitável chegada da morte. Daí ter sempre próximo das mãos Amor natural (Carlos Drummond), A casa dos budas ditosos (João Ubaldo Ribeiro) e Cartas de um sedutor (Hilda Hilst), livros que inspiram essa faceta libidinosa. E guardo sempre na mente a sábia lição nos deixada por Roberto Freire, criador da somaterapia: “Sem tesão não há solução”, significando algo que desperte prazer, beleza e alegria. 

Devido a alguns títulos desavergonhados, você já sofreu críticas, ataques?  

Estranho seria não ter recebido críticas, penso eu. Afinal, vivemos num estado provinciano, moralmente hipócrita e ignorante sob o aspecto artístico. De todos, Cu é lindo & outras histórias foi e continua sendo o mais atacado. Não só pelo título, mas, sobretudo, pela capa do livro. Sequer levaram em conta que o cu desenhado, feito pelo Gabriel Archanjo, é obra de arte da melhor qualidade. Mas autor que receia desagradar os leitores está na atividade errada, preferível seria procurar outra, uma vez que a arte em geral, incluindo a literatura, tem por objetivo causar estranhamento e torpor. Imagino como reagiriam essas pessoas ao ler “Objeto de amor”, de Adélia Prado, poema do qual extraí esse verso polêmico. E por que não se indignam com o mesmo fervor, pergunto aos distintos senhores e senhoras, ao encontrar pichação em muros afirmando que o Piauí é o cu do mundo? 

Seu trabalho como escritor é marcado pela exploração do conto. Por que enveredar preferencialmente por esse gênero? Quais seus parceiros de ofício? 

Engraçado é que comecei rabiscando poemas, tendo publicado um livreto, em mimeógrafo, junto com o Luiz Otávio, amigo de Biologia, no Rio de Janeiro. Sem talento ao exercício poético, fui encontrar minha praia no conto, a tal de narrativa curta, que termina mal começa a história, impactando o leitor de forma irremediável. Para tanto, a leitura de Dalton Trevisan, mestre de textos minimalistas, foi de suma importância. A estreia no gênero ocorreu em 1992, com Linguagem dos sentidos, reunindo 30 contos. Ao constatar Maçã profanada, meu segundo livro, ter sido adotado na UFPI, logo pelo Airton Sampaio, professor e crítico rigoroso, tive a certeza de estar produzindo algo diferente na contística piauiense. Em artigo publicado na imprensa local, intitulado “Enfim, contos!”, ele sentenciou: “Wellington Soares, com Maçã profanada, aparece, surpreendentemente, contista. E emerge contista porque, ao que parece, aprendeu a lição de que conto é faísca, conto é meteoro no céu”. Além de Dalton, outros parceiros fundamentais nessa travessia são Machado de Assis, Rubem Fonseca, Luiz Vilela e, mais recentemente, Marcelino Freire. Mas adoro escrever crônica também, narrativa leve e centrada em flashes do cotidiano, já tendo publicado três títulos nesse gênero, inclusive o mais vendido de todos: O dia em que quase namorei a Xuxa, com tiragem de cinco mil exemplares. 

O Salão do Livro do Piauí (SaLiPi) está na 17ª edição, um evento que marca o calendário de atividades culturais em Teresina. Ao lado de outros professores, você foi um dos criadores do Salão. Mesmo não estando mais na organização do SaLiPi há anos, conte sobre seu início. O que considera mais marcante? 

O embrião foi o Língua Viva, organizado pelo Cineas Santos, seminário voltado aos professores de língua portuguesa, qualificando-os com a vinda de renomados gramáticos, linguistas e literatos. Em 2003, levamos a ideia – eu, Luiz Romero e Nilson Ferreira – de realizar algo maior, que ele topou de imediato. Tratava-se de uma feira literária nos moldes das Bienais de São Paulo e Rio, menor devido à pobreza financeira do estado, mas, em compensação, a ser realizada anualmente. Sob o descrédito de alguns, o Salipi já nasceu grande e abraçado pelos piauienses, sobretudo, crianças e jovens. No início, ocorreu no Centro de Convenções; depois, Praça Pedro II; e, hoje, acontece dentro da Universidade Federal do Piauí. Chamados de sonhadores, batizamos nossa entidade de Fundação Quixote – presidida atualmente pelo professor Kássio Gomes –, a fim de captar recursos para bancar as despesas do megaevento. Sem o apoio do Governo do Estado e da Prefeitura de Teresina, tendo à frente Wellington Dias e Firmino Filho, dificilmente o projeto teria vingado. Sem dúvida que despertar o gosto pela leitura é o aspecto mais relevante do Salipi, bem como ouvir grandes nomes da cultura nacional.  

Quixotes do Salipi: Cineas Santos, Luiz Romero, Nilson Ferreira e Welington Soares (2004).

Qual a importância do SaLiPi na propagação da literatura feita no Piauí? Como o evento contribui para formar leitores? 

Outro objetivo estabelecido por nós, desde o início, foi a valorização da literatura piauiense. Para tanto, criamos o Bate-Papo Literário, mediado pelo professor Luiz Romero, espaço onde nossos escritores lançam obras e trocam ideias com o público. Já na primeira edição do Salipi, estabelecemos também uma parceria com a Academia Piauiense de Letras (APL), que tem um estande dedicado à produção local, incluindo títulos raros da nossa literatura. Pensando no futuro, lançamos também, sob a coordenação da professora Jasmine Malta, o “Jovens Escritores”, concurso para revelar novos talentos nas letras daqui. Quanto a formar leitores, todas as ações do evento, sem exceção, estão focadas nesse sentido: contação de histórias, Salipinho, palestras, distribuição de livros, oficinas literárias, trazer alunos das escolas públicas municipais (Semec) e estaduais (Seduc) e presença dos próprios autores durante a feira. 

Você também organizou diversos Salões do Livro pelo interior, como nas cidades de Altos (SaliAltos), Campo Maior (SaliCam), José de Freitas (SaliJo), Parnaíba (SaliPa), Pedro II (SaliP2) e Grande Dirceu (SaliCeu). Que paralelo existe entre os eventos na capital e no interior? 

Os objetivos são praticamente os mesmos: despertar o hábito pela leitura e formar novos leitores, sobretudo, entre crianças e a galera jovem. Gosto não só pela literatura, mas pela arte em geral: música, cinema, fotografia, teatro, pintura etc. Assim, teremos uma geração mais participativa nos destinos do país, ligada à democracia e aos direitos humanos. Que, tocada na alma, diga não aos preconceitos e a toda forma de autoritarismo. Pena ocorrerem ainda em tão poucos locais, não atingindo sequer 10% dos 224 municípios do Piauí. Única e exclusivamente por falta de sensibilidade cultural dos prefeitos e políticos das cidades que podiam, através de orçamentos e emendas, destinar recursos para tal finalidade. Ignoram assim, infelizmente, o poder transformador do livro na vida das pessoas.  

Salões de livro pelo Piauí com participação de Wellington Soares na organização

Em 2012, você e André Gonçalves criaram a revista Revestrés, hoje na 48ª edição. Com reconhecimento fora do Piauí, se tornou referência para o jornalismo cultural local. Quais as dores e alegrias de editar uma revista do porte da Revestrés num Estado “fora do eixo”? 

As alegrias suplantam, de longe, todas as dores no meio do caminho. Quem trabalha cultura no Brasil está acostumado, particularmente no aspecto financeiro, com essas dificuldades. Mas ouvir pessoas daqui e de fora, maravilhadas, indagarem se a Revestrés é feita no Piauí, não há felicidade maior. O espanto significa que a nossa revista rompeu estereótipos e limites geográficos, atingindo padrão de qualidade nacional. Em termos de conteúdo e projeto gráfico. E pensar que tudo começou, pois não tínhamos sede ainda, no mezanino da Livraria Anchieta, ali na Dom Severino, com a gente batendo cabeça em definir o nome, a linha editorial, seções e, não podia faltar, a razão social da empresa. Para o êxito do projeto, temos uma equipe bem afinada, sob a batuta da Samária Andrade, reunindo gerações distintas de profissionais do jornalismo cultural. E fizemos questão de iniciar a jornada com Assis Brasil, nosso autor mais profícuo, que abriu o jogo (vida/obra) na entrevista de estreia. Revestrés deixa claro também, ao longo desses quase dez anos, que sabemos fabricar, como queria Oswald de Andrade, o biscoito fino para a massa comer.  

A Balada Literária é um evento organizado em São Paulo há 15 anos pelo escritor e agitado cultural Marcelino Freire. Em 2017, homenageando o escritor Torquato Neto, o evento passou a ter, também, uma versão em Teresina. Como a Balada ganhou uma edição aqui? Que parceria é essa com Marcelino e demais cúmplices? 

Naquele ano, a Balada resolveu homenagear Torquato Neto, poeta nascido em Teresina e celebrado nacionalmente. Presente ao evento em São Paulo, fui convidado a ler uma nota publicada no Estadão, dando conta da boa-nova. Não bastasse isso, Marcelino Freire foi além: queria começar pela terra natal do nosso Anjo Torto. De pronto, coloquei-me à disposição para ajudar no que fosse necessário. A plateia reagiu com entusiasmo e aplausos. Organizada com muito carinho, a edição superou todas as expectativas nas três capitais, incluindo Salvador, sob a direção do poeta Nelson Maca. A repercussão na mídia foi grande, com matérias resgatando a genialidade de Torquato, que andava um pouco esquecido, e a importância de sua obra na cultura brasileira. O show com Jards Macalé, parceiro e amigo de Torquato, marcou indelevelmente essa edição da Balada Literária. Sem falar também da exibição de “Torquato Neto: Todas as Horas do Fim”, documentário dirigido por Marcus Fernandes, ganhador de vários prêmios Brasil afora. De lá para cá, já estamos no quinto ano de Balada, tendo eu aceito o desafio, feito pelo Marcelino, de tocar os trabalhos neste piauizão querido.  

Galera reunida na Balada Literária, edição de Teresina, em 2017, quando Torquato Neto foi o homenageado da edição.

Devido à pandemia e ao pandemônio, a Balada Literária foi realizada de forma on-line. Que lições você tira do surgimento de diversos eventos com transmissão pelas plataformas digitais? 

Esse formato foi o que nos restou fazer, tendo aspectos positivos e negativos. Atingir um número maior de pessoas, inclusive de outros países, e economizar em despesas com passagem e hospedagem são de uma importância sem tamanho. Se já realizávamos a Balada com poucos recursos, imagina agora na versão on-line. Este ano é a segunda vez que organizamos assim. De negativo, a falta do contato físico, olho no olho, do bate-papo próximo com o escritor/artista e, claro, da esticada ao barzinho para tomar umas e saborear um bom tira-gosto. O importante é não deixar de fazer, ainda mais nestes tempos de ódio e de ameaça fascista. Aliás, nunca devemos esquecer que cultura é, queiram ou não os canalhas, resistência e esperança. Sem falar que, ao interromper, mesmo por um ano, jogamos um balde d’água no evento.   

Durante o período da pandemia o que andou inventando, tem algum projeto novo por vir? 

Aproveitei para atualizar as leituras e ver muitos filmes. Verdade tropical, do Caetano Veloso, A república das milícias, do Bruno Paes Manso, Ninguém pode com Nara Leão, do Tom Cardoso, e Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, são alguns dos livros saboreados. Na sétima arte, revisitei quase tudo de Glauber Rocha, Kléber Mendonça Filho, Tarantino e Scorsese. Quanto à música, curti muito as paixões de sempre (Elis, Chico César, Janis Joplin, Bob Marley, Dylan, Céu, Belchior, U2, entre outros) e uma cantora que descobri recentemente: Bárbara Eugênia, que retoma os grandes sucessos do gênero “brega”. Quem sabe tenha ficado, queira Deus, um pouco mais sabido nesse período. Além de produtivo também, uma vez que lancei Tesão na geladeira, livro de contos, com quase mil exemplares vendidos; realizei uma série de entrevistas com autores piauienses, a sair em volume brevemente; e, mais importante, prossegui com o Pré-Enem Seduc, por meio de aulas remotas, projeto que garante o acesso de estudantes das escolas públicas ao ensino superior. Projeto futuro? O lançamento da Feira da Literatura Piauiense (Felipi), focada na produção literária local. Simbora! 

Welington Soares em aula no Pré-ENEM da SEDUC

2 comentários em ““Nunca devemos esquecer que cultura é, queiram ou não os canalhas, resistência e esperança” – Entrevista com Wellington Soares”

    • Ah, que delícia perceber o quanto o Piauí ganhou e tem a ganhar com eventos como o Salipi, a Balada literária, o café literária; não só pela oportunidade do surgimento de novos talentos mas por representarem uma trégua agradável e de grande valor humanitária nessa vida corrida e desumana que coisifica as pessoas. A arte nos humaniza e nos acalenta em tempos difíceis. Parabéns prof Demétrios pela maestria ao conduzir a entrevista; parabéns professor Wellington Soares por tantos valiosos projetos. O Piauí agradece.

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