Onun – Uburu, um Orun Sonoro na Cultura Piauiense

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Feliciano Bezerra, escritor, músico e professor da UESPI.

Ouvindo o álbum Onun–Uburu percebe-se, logo em primeira recepção, a camada sonora resolvida de forma econômica, com precisão e ordenação que deixam equilibrada a gramática rítmico-melódica das canções, todas elas inscritas sob eixo musical de matrizes afro-brasileiras. O movimento do Ijexá, as batidas do afoxé, do samba e do samba-reggae são as dicções perfiladas neste novo produto sonoro do músico e compositor Pedro Ben e de seu parceiro cancionista Joniel Veras.

Chamo a atenção para o alcance performático de execução e interpretação no trabalho, que não segue os arrebatamentos usualmente encontrados em gêneros desta natureza no circuito de consumo. As tensões e distensões sonoras e líricas são emitidas em parcimoniosas evoluções que valorizam a expressão e a audição, deixando as canções soarem por si, sem necessidade de persuasões de efeitos. O anglicismo cool serve como classificação contemporânea à formatação do que se ouve; note-se a voz do intérprete Joniel, cuidando da silabação com emissão pontual e sem extensões vocálicas desnecessárias, que, juntamente com a instrumentação e arranjos, algo minimalistas, favorecem o ambiente sonoro menos volátil e mais centrado.

O título do álbum traz curiosidade linguística, Onun – Uburu é daqueles vocábulos que contêm variedade semântica com algum desvio de sentido, ou apenas um jogo morfológico de troca de letras (urubu por uburu), de acordo com a escolha para o uso. Onun pode referir-se à nomeação de orixás, e em aglutinação com Uburu encontra-se possível tradução do yoruba como sendo “tecido cerebral”. Vê-se que essa movência dos significados só adere ao propósito do trabalho, que possui boa trama sonora e textual na construção de sentidos.

Nas sete canções (há um tema instrumental), entranha-se um lirismo pendular entre um eu corporificado e desejante e outro em busca de transcendência temporal e espiritual. A enunciação verbal segue por momentos de otimismo na projeção do tempo e dos acontecimentos, como se ouve em Oxalá que sim; por sutis erotizações, apontadas em Carnaz e Quero dançar com você; por emanações ritualísticas, como em Ritos de fé; e ainda transfigurações de desejos registradas em Trago.

A canção Urubu-de-baixo destaca-se por trazer outro sujeito enunciador, trata-se de um personagem, um poeta popular, extraído do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. A presença desta voz lírica, forjada por um escritor negro e que neste romance encara uma desencontrada defesa da cultura popular brasileira, vem, em forma de samba, aliar-se ao híbrido festim afro-brasileiro receitado por este álbum.

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No aspecto construtivo das letras, elas se valem de movimentos rítmicos bem acentuados, com ligeiras presenças de rimas, assonâncias e aliterações espertas, como “pode vir do pelo ao pó do pé” (na canção Ritos da fé); “trago notas soltas/entre um trago e outro” (Trago); “eu que sei/sol na cabeça fervendo das 5 às 6” (Corpo). Destaque-se também, neste campo estrutural, a distribuição dos versos, feita de modo geral por meio do recurso da parataxe, em que as ordenações não seguem uma subordinação linear, optando por blocos de imagens, algumas vezes atomizadas em meio às proposições discursivas, como, por exemplo, “primitiva célula pegando fogo” (Trago); “daqui te olhar da cor da pedra em meu olho de faraó” (Quero dançar com você), “caibo no entendimento da terra” (Ritos da fé), “cada molécula negra de corpo” (Corpo). As sucessões de imagens parecem antecipar o plano narrativo, num efeito que valoriza as sensações experimentadas e as que estão por vir.

A faixa instrumental Olodumaré funciona como uma suspenção lírica do elemento verbal em favor da essência musical. Um adensamento sonoro, conduzido pelo sopro da flauta, acentuando teores de hibridização cultural, quando a flauta transversal, de origem alemã, junta-se às congas cubanas e recitam uma saudação ao orixá supremo, o onipotente criador de tudo, na religião Yoruba e afrodescendentes. Olodumaré é a manifestação material e espiritual de tudo que existe. Com esse instante de pendor quase místico-celebrativo, os músicos conduzem os timbres dos instrumentos e reafirmam o contrato transcendente que a música costuma assinar.

Onun-Uburu é material plasmado em valores precisos de estetização cancionista, composto por elementos de invenção musical afro-brasileira e lirismo gestual, em que corpo, som e sentido fundem-se em transe afetivo.

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