Philippe Wollney, é poeta, editor, pesquisador e produtor cultural. Nasceu em 1987 na cidade de Goiana-PE. Os seus livros Ruinosas Ruminâncias, e “O livro dos sussurros” receberem o Prêmio Pernambuco de Literatura em 2017 e 2022, respectivamente. Publicou os livros Aquele que tudo devora (2023); Amor librorum nos unit (2022); Trago é guerra dentro de mim (2019); Poemas para desastres sentimentais (2016), Caosnavial : ou o sabor sujo (2015), Mais esse ano eu não morro (2015), entre outros.
I.
continuo incapaz de contar uma história
de contar uma história que não seja dessa forma
nessa fôrma
costelas à vista expondo o tutano tectônico
como um estilete leitoso sulcando
os lábios das rochas, a língua no osso
rastros rupestres de onças na caatinga
cantigas aos sons maracás, plumas de anacãs
líricas efusões pintadas com gordura e saliva
xamã de sumé no sertão da escrita
aboio de gestos — continum constrito
— agora que aprendi o seu idioma
posso amaldiçoa-lo
continuo incapaz
inconcluso persisto
porque a poesia não está para a perfeição
e sim pra o delito, e eu insisto
no erro de contar qualquer história que seja
fazendo elipse, chiste, luz curvada e atraída
pelo buraco oculto que é todo poema
uma vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo
inabilidade pelo tédio de descrever quem é fulano
ou que beltrano sorria como se olhasse para a morte
ou que sicrano tinha cheiro de pelo de cachorro molhado
ou sobre um ninguém que não esperava ganhar vintém
de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e naco e necas
de pessoa sequer
um texto dobrando a esquina
dando as costas, cerrando as cortinas
rede de embalar na alegórica voz do oculto
nesse vulto esquivo drenado pelos olhos
hipermetrópicos, vertiginosos, miopíticos
que tantos chamam de mal olhado
e outros acreditam em malassombro
fantasmagoria
acesso ao passado
que insiste em não calar
salvarei meu corpo dos livros
salvarei minha vida das letras e gavetas?
II.
e eu incapaz de fugir de toda essa trama
rastejando trêmulo entre linhas tensas
fio de traça, foz de trança
talvez o ato de escrever esteja ligado à escuridão
ao desejo de penetrar nas celas de averno
e com sorte, com algum estratagema
iluminá-la e trazer à luz alguma coisa dali de dentro
seguir as setas do sereno, aguardar a barra do dia
assistir emergir um zumbi haitiano
dopado de tetrodoxina, por um feiticeiro bokor
— que bem pode fazer parte
de algum complô de ulissiana picaretagem
de como mergulhar no abismo
para rever os ossos do filho perdido no açude da memória
descer para encontrar as joias do afogado casamento
ou de como forjar documentos para divórcio
e divisão de bens
mas há também o silencioso, o secreto e o sagrado
— oricuri, como uma ostra que digere a pérola
se forçada a abrir as vísceras
destruindo o tesouro e expondo apenas o sulco das tripas
há sempre alguma pitonisa leitora de búzios
sibila iniciada no ifá, que oriente para além do oriente
que saiba sonhar e ensinar como sondar os matos
guiar-se pelas trilhas desse sertão — voragem e viração
entrar e sair da biblioteca borgeana no érebos
com sua atmosfera que o sol nunca a afogueia
onde é sempre noite lúgubre – silêncio no quarup
e o poeta como odisseu — zé pelintra sisifiano, navalha na cinta
ofertando farofas, cachaça e mel
evocando inquices fazendo citações, epígrafes
derramando sangue — dedicatórias na areia
escorrendo na sede poema
libações espargindo vinho de jurema
— eu imolei uma cabra na clareira
na encantaria dos icós de rubras rutilâncias
esconjurando assim o povo morto-fosco
coração na boca, peito aberto, sangrando
— toda ordem traz uma semente de desordem
a clareza, uma semente de obscuridade
não é por outro motivo que falo como falo
III.
não deves olhar através dos olhos dos mortos
nem se alimentar dos espectros nos livros
que das estantes saltaram, com seus sinos e surrões, os eguns
muitos caídos pela peste, tuberculose, febre tifoide
que deram um tiro no próprio peito
que fecharam as portas e ligaram o gás
sem saudade e sem saldo
se jogaram por janelas e altos umbrais
a turba ao redor da fossa, guajupiás, em inumeráveis récitas invernais
que vinham em cortejo com lanças, flechas e punhais
— o poeta não inventa, ele ouve e dança no baque da viração
— o poeta põe é o encruzo no coração
— a poesia é fogo no mato é ponto riscado na criação
— o primeiro verso é facilitado pelo orum, o restante é trabalho de vodum
— a indignação faz versos, e ficar de butuca faz mais
— poesia é a pedra miúda que mais alumeia e que na calada do absurdo clareia
degolei mais um bode e três galinhas
em frente ao cemitério das bringas
porque a operação poética não é diversa do conjuro
do feitiço e de outros procedimentos da magia
e sacando a peixeira escusa, sentei-me na encruza
e afastei as sombras dos folgazões de beberem o sangue
enquanto eu não ouvisse seu zé tirésias viramundo
e de repente ele veio, com seu báculo-de-ouro
a turva-psiquê do tebano
de apito e colar de conta de cascavel, e me reconheceu, e disse
em mumunha de velho cumba mandingueiro:
— poeta sem-ventura, porque viestes aos mortos y à sua atroz esquina?
e respondi — a má sorte desviou-me de minha rota e me trouxe aqui
— então dai-me chama e fumo, deixa o sangue agasalhar o friagem de meu peito
e com as veredas de sua barba molhada, debulhou os enigmas:
— abandonemos esse pensamento que não para de falar do humano
ao mesmo tempo que o massacra onde quer que o encontre
que o sonega em todos os cantos de suas ruas limpas
e os esfola em todos os cantos do mundo
e eu não sei
que diabos significa noigandres
poesia daquelas que são assentamento / prece / tempestade
poética que é encruzilhada da ética com a promessa
de que a linguagem pode revirar essa ordem que tudo esmaga / tudo sufoca / tudo mata
saravá caboclo! os orixás te concedam longa vida & farta inspiração.