Edson Cruz é poeta, crítico e editor do portal MUSA RARA. Estudou Letras, psicologia e música. Publicou quatro livros de poesia, uma adaptação em prosa do clássico indiano Mahâbhârata e um livro de depoimentos sobre o que seria a poesia, Musa Fugidia — a poesia para os poetas (Editora Moinhos). Seu poemário, Ilhéu (Editora Patuá), foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014. Lançou, em 2016, O canto verde das maritacas (Editora Patuá). Em 2019, lançou Trabucada (Editora Terracota), infantojuvenil para todas as idades.Prepara seu novo livro Cantos para suspender o céu.
ARCANOS
escavar a memória cósmica
dos homens
e fazer a arqueologia
de uma possível eternidade.
recuperar aquela mística cintilação
que se apagou
e desbaratar a teia que enreda
todos os segredos.
despertar a alma que viaja
cega e inconsciente
e torná-la plena anfitriã
deste momento.
DHARANI
palavras são instiladas com a energia
da vida.
jvale mahajvale
uma lei maravilhosa permeia o cosmos
e rege tudo o que pulsa.
uke muke ate atavati
som e sentidos se apossam da conversação
do mundo em eterna hesitação.
nrite nritavati
a vontade de potência se manifesta
na palavra emancipada.
itini vitini chitini
um bom poema é uma catedral de dharanis.
nritini nrityavati
um waka ideograma todo o Japão.
novas palavras criam novas realidades.
a palavralada como flecha lançada
não retorna mais.
myoho renge kyo
o cerne do ser é atingido
no alvo.
(dharani, do sânscrito, frase ou fórmula mística que tem o poder de proteger e beneficiar quem a recita. “Dharani” é interpretado nas escrituras budistas chinesas como “sustentar”, “manter” ou “reter”. Dizem que a pessoa que mantém e recita um dharani é considerada hábil em se lembrar de todos os ensinamentos do Buda e em rechaçar influências maléficas. Nome do capítulo 26 do Sutra do Lótus).
CIDADE IMAGINÁRIA
a busca principia e se finda no coração
na longa jornada, dia a dia, se oficia
e ao final nos brinda com a claridão
no meio do caminho de minha vida
viajante que sou por sendas selváticas
ouço falar de cidade tão querida
com dadivosos tesouros e benefícios enfáticos
sua existência – nutriente da procura
leva-me adiante em ofício tão errático
encontrá-la, amacia o ferro-vida que perdura
habitá-la, ultrapassa o mundo-lida já tão lábil
desposá-la, é a felizcidade em tessitura
se até aqui nada me havia sido fácil
agora verei do que realmente o laço é feito
em nada me adiantou ter sido hábil
tal estrada abriga horrores em seu leito
terríveis desertos, terra inóspita e dardejante
falta-me ar, me dá sede, a derrota arde-me no peito
corpo em espírito antes tão flamejante
arrefece exausto e amedrontado foge
– chega de tempestades e sol escaldante!
queria eu estar nesta hora que consome
a reviver instantes da memória
lugares que vivi e o deleite que me some
porém, o sábio mestre da vitória
com hábeis meios de uma melodia
soa o canto que nos leva à possível glória
aquele que conhece o caminho – o guia
presença que em si é a ênfase do tesouro
disciplina o ser e as almas fugidias
em meio ao sofrimento vislumbro o ouro
a imensidão do desejo em seu oásis
a alegria reluzente, as dores em sumidouro
o cansaço esvanece – um desenho a lápis
os contornos da dor desaparecem na fumaça
tudo esqueço, retornar ou desistir – jamais!
sob meus pés a exuberância se enlaça
revela-se íntegra uma cidade tão fantástica
o paraíso em delícias nos perpassa
o mestre, com sua voz sonora e dramática
diz que não, estávamos no meio da jornada
a cidade é imaginária, pura névoa carmática
CRIPTOGRAFIAS
não há nada que se faça
letra muda.
alfabeto que não possa
ser desnudo.
caractere que em cifra
se transmude.
inscrição seja no Sutra
ou no Talmude.
marcas d´água
que se mostram indeléveis.
garatujas
desenhadas sobre peles.
rasuras
em um livro tuaregue.
união
em uma língua extraterrestre.
Sincronias e dissonâncias afetivas e
coletivas nos transportam
a poesia de Edson Cruz.