Marcus Groza é escritor, dramaturgo, performer e pesquisador. Autor, entre outros, dos livros “Uma pedra em cima disso” (no prelo), “Milésima demão nas paredes de estar perdido” (Ed. Urutau – 2019) e dos textos dramatúrgicos “Não Urine no Chão”, “Tambor de Couro Vivo”, “Maré Morta”. Participou com oralização de poemas no programa “Manos e Minas” da TV Cultura (São Paulo-SP), no “Eco Performances Poéticas” (Juiz de Fora-MG), no “Inverno Cultural” da UFSJ (São João del Rey-MG), no “Tercer Jueves” (Buenos Aires) etc. O seu ensaio “Para uma poética do esquecimento” foi traduzido para o espanhol e saiu no livro Olvidar – Brumaria Works #9 (Madrid, 2018).
Vulto
como a escultura
que diz leveza mas
é feita de chumbo
sua boca sussurra
só usa palavras
adormece além delas
qual furor mais bruto
forja a devoção
em um rastro sereno
seu ditado é corpo
faiscando dínamo
invisível víbora
Aquarela Azeda
I
escrever a lápis
encorajar a água
que vem dissolvendo
o mapa rançoso
a vingança enrustida
desenhar a lápis
encorajar a água
que vem afastando
a couraça elefante
a crosta pontiaguda
desenhar a lápis
encorajar o sangue
que vem arrancando
seborreias e cistos
escrever a lápis
encorajar a névoa
que vem manando
mansa da terra
II
hoje aquarela azeda
desejo a você o fogo
a corrosão a fuga
o fogo digestivo
a corrosão dos traumas
a fuga do ressentimento
você diz ainda é cedo
pra me ocupar disso
terei também a tarde
a ferida parece nova
a casca ainda verde
quem vê céu não vê coração
quem vê grito e rebeldia
não vê cobiça e inveja
aguerridas até na garganta
de quem clama por justiça
ontem por você eu daria a vida
hoje aquarela azeda
desenho o seu nome a lápis
a chuva devasta fundo e figura
e quer saber
faça suas lamúrias cantarem
não confunda podre e amargo
tente fagocitar essas larvas
que as moscam desovulam
alimente da sua própria carne
como a um filho o berne futuro
porque o rancor é isso
um berne
uma larva que se alastra
debaixo da pele
e se não cuida
sobe nódulo pra cabeça
nascemos e morremos peitos
que são odres mal fermentados
onde o coalho se fez de morto
remastigando os azedumes
mas agrura e bílis nunca
fizeram vinho bom
(e patriotismo
é só uma espécie
de amargura cívica)
a mosca pousa e desova
o beiço se abre barriga de aluguel
desatentos gestamos tantos ranços
que não darão conta de tragá-los
as vinte e uma gerações futuras
com a farinha do desprezo tanto faz
se você não cozinha pra fora
a contaminação é sempre cruzada
o mundo não passará ileso do rancor
com que você envenena a si mesmo
você não passará ileso do rancor
que nos outros nem sabe que inocula
III
desenhar a água
encorajar a névoa
pisar de leve a terra
escrever a água
encorajar a névoa
pisar de leve a terra
desenver a água
encorajar a névoa
pisar de leve a terra
Plantio
tenho duas frutas nas mãos
a mais madura arremesso contra o muro
o estrondo a mancha o despojo
no chão aonde bichos virão lamber
tenho duas frutas nas mãos
trago-as das ruínas de ontem
como uma ave que vem de longe
arrasta no bucho ou no bico
sementes e ervas daninhas
arremesso uma contra o muro
a outra ainda está verdolenga
nenhuma ideia de comê-la com sal
tenho duas frutas nas mãos
as duas estão marcadas de morcegos
minha mãe me ensina a distinguir
a rasura a maldição o batismo
Viço
deixo o mel e ordenho o cacto:
cresço a favor da manhã.
Olga Savary
demoramos dias a tirar o lixo
semanas a sacudir as migalhas
acumuladas a num canto da bancada
enquanto o chorume escorre pelo chão
a poeira encobre nossos vestígios
o mistério imorredouro do que impregna
não é tão corpo como a própria pele?
e o alicerce não é imensa crosta?
e também a casa não seria outra?
sem a proliferação dos dejetos
tão nossos aderidos ao encanamento?
sem a demão de gordura nas baixelas
nunca usadas sobre o aparador?
no quintal bem poderíamos passar
vinte eras refugiados nas árvores
disputando as nêsperas com os morcegos
ou minerando o silêncio lenhoso
das buganvílias a brotar como nós mesmos