Daniel da Rocha Leite (Pará, 1966) é licenciado pleno em Letras e doutor em Estudos Comparatistas pela Universidade de Lisboa. Recebeu, em 2007, o Prêmio Carlos Drummond de Andrade / SESC-DF. No mesmo ano, também pelo SESC-DF, foi finalista do Prêmio Machado de Assis. Com o romance Girândolas, em 2009, recebeu o Prêmio Samuel Wallace Mac-Dowell – Academia Paraense de Letras. Em 2018, recebeu o Prêmio Amazônia de Literatura (categoria Poesia). Em 2019, recebeu o selo Acervo Básico da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ. Em 2021, esteve entre os escritores finalistas do Prêmio Literário Barco a Vapor. Em 2022, recebeu o Prêmio Nelly Novaes Coelho – UBE / USP. Entre contos, romance, poesia, crônicas e literatura infantojuvenil, possui dezoito livros publicados.
SIRENE
o som persegue o gesto de uma língua íntima
dissolve o abraço, suspende o ser, sabe do ser a areia
o escoamento do tempo
essa nossa linguagem tardia
o muro
o amanhã
a tinta de uma memória
estilhaços de uma escrita a se dissipar nas paredes
miragem de um ser mútuo que sem saber sangrava o antes
o amor
gritando na rua
dentro da gente
silenciosamente
a violência de uma palavra.
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MORTO
ao rés da fala
ao rés da palavra
um dos reis segue insepulto pela casa
quanto tempo ainda
a arrancar o seu perfume das paredes, da água, do leite e das lágrimas
quanto tempo ainda a arrancar o seu perfume dos talheres de todas as fomes
quanto tempo ainda além do chorume que já arde eterno no futuro da memória
velamos os dias
amedrontados velamos o silêncio que nos sepulta
que das rosas decapitadas não nos roubem a língua
que a resina da queima das velas nos queime lentamente as mãos
e exaustos de sofrer
alguém de nós acenda uma outra vela, uma outra queima, uma outra luz
e por esse um todos
queimem a queima da vida a velar um pelo outro, sendo vela, sendo luz,
chama e calor
sendo mão e irmã, sendo irmão e ímã,
sendo a vida urgente, agora acesa, ardente
_________antes que o morto nos morra a casa.
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DESERTOS
quando as palavras eram a parede áspera e quente dentro da noite
esse teu fêmeo silêncio sextavado em minha língua perfurava o branco
o teu vestido negro, o gosto do cigarro em tua boca, a limalha da saliva
aquilo oculto na linguagem diante do corpo que vestíamos e gritávamos
dentro do silêncio a memória das mãos
dentro do beijo o saber agridoce do sangue
dois bichos farejavam
o sexo e a língua um do outro
dois bichos em busca de um silêncio
à erosiva hora
aprender a andar pela margem árida
a pele, o corpo magro, o tempo
a fome, o nervo, o amor, o minério
a terra ausente em que dois corpos se escavam
lavoura turva que sabemos de um livro invisível
tudo era a miragem da fome que alimentava o fogo
esse precipício sobreposto à palavra entre os dentes
quilha de um corpo feito dos meus e dos teus pedaços
na memória da queda tu eras a água antes de ser o nome
à erosiva hora
margem mútua
dois corpos queimam todas as línguas
existimos
o carvão dos corpos, a linguagem que falta, floresta fúnebre, este silêncio escrito.
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À ESPERA
havia aquele lugar entre as nossas vértebras
a pele, a pressa, o medo, o cansaço das palavras
ali onde a areia dos teus silêncios pousou um gesto
o tempo preso a saber do sopro, essa linguagem viva
o abraço, a passagem transcendente do outro ao outro
havia o milagre do corpo mútuo, uma música
a fragilidade do corpo, a terra febril, o abandono
entre a asa da ausência essa língua que te ofereço
o afeto, uma transfusão, a casa de uma nova palavra
o abraço, o amor por um instante, a nossa interdição
entre as moedas do mundo os demônios, o ar, a agonia
aos mercadores da morte as nossas trincheiras, o agora
o despertar do tempo em um novo instinto, a vida sem ágio
a palavra que pesa ao pensamento, aquilo que não se vende
o corpo de um outro silêncio, semente do sangue, uma árvore
essa memória do mal que outra vez reconhecemos, a história
desce comigo ao fundo da palavra, à casa, à terra, ao presente
lá estão os filhos que ainda teremos, a insurreição dos abraços
dentro daquele lugar entre as nossas vértebras, habitamos a casa.
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AINDA
sinto teus olhos no escuro
tuas gengivas vinho
teu relógio de águas
o cheiro da tua respiração
floresta erguida ardendo a palavra impossível
hera
ainda o tempo
a árvore, o muro
o teu silêncio
esse túnel a vazar a luz para longe.