Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben). Publicou: “Borboletas e Abacates” [Argos, 2000]; “Mas é isso, um acontecimento” [Editora da Casa, 2008, poemas]; “15’39”” [Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas]; “Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé” [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio]; “Crônica para um defunto” [dengo-dengo cartoneiro, 2013, poemas]; “O assassinato seguido de La bodeguita” [Butecanis Editora Cabocla, 2014, contos]; “Poema da Maria 3D”[Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book, conto]; “Ares-Condicionados” [Nave Editora, 2015, contos]; “A de Antônia” [Miríade, ” 2016, infantil]; “No Puteiro” [Butecanis Editora Cabocla, 2016, poemas]; ‘Café com Boceta'[Butecanis Editora Cabocla, 2017, poemas]; ‘Blasfêmia ‘[Butecanis Editora Cabocla, 2018, poemas]; “18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto” [Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas], “Tratamento da Imagem” [Patifaria, 2018, conto]; “Arquipélago”[Patifaria, 2018, infantil], “Lotação” [Medusa, 2018, poemas]; Vozes e Versos [Martelo Casa Editorial, 2019, poemas, com Ana Elisa Ribeiro e Marcelo Lotufo]. Responsável, ainda, pela Organização de: Livres Somos Versos, em parceria com Arlyse Ditter [ACB, 2018, poemas] e Cartaze, em parceria com Arlyse Ditter [ACB, 2019, poemas]; Cerzindo e Cozendo [Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas] mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis-SC, Brasil”.
Ainda Há Vida na Ambulância
não te abales, disse o homem da ambulância;
a bala do milico acertou o olho, o coração não
como assim, perguntei, de que coração e de que
olho tu falas e qual deles tu não consideras poesia?
nem eu sei bem sei de qual belicismo tenho
mais medo quando me sinto afoito, cismo
outras tantas balas haviam acertado a paisagem plena
plana em que me encontrava como cenário
em tese, a bala não era de borracha ou de morango?
voltei a perguntar — era não, disse ele, era não
era, e logo entendi, daquelas que estoura dentro do
corpo pra se fazer machucadura ainda mais profunda
não havia pano fralda flanela que estancasse
e o vermelho (tomate) que corria já era meia vida mole
senti os estilhaços pela segunda vez na freada
quando a ambulância pulou o quebra-molas
gritei pensando em ouvir o eco vida da minha voz
mas o barulho da sirene sabatinou o improviso
o segundo ato morto foi enfrentar a espera num hospital
numa maca num corredor numa solidão dos deuses
o terceiro, foi o cemitério fui
daí ou daqui em diante
mesmo que quisesse
já não era mais o narrador.
Cinema
traveling
não sei quem dança com a imagem
quando ela trepa com o poema
em uma rua escura
sob a luz mal-assombrada
— do poste —
que pisca e
muda a cena
corpo não
zenital
não sei quem aqui já fez amor
escorado em um muro e apoiado
em um corpo sem rosto
mais quente que a noite fria
sob uma neblina densa
líquida em que o gozo
forja balões
sempre impronunciáveis
de uma história em quadrinhos
Contra-plongée
não sei quem já esqueceu
a língua úmida
porosa muda
em um umbigo assimétrico
que foi o centro sentido
do tempo
e que no dia seguinte
sentiu vergonha de busca-la
ao precisar controlar os olhos
magnetizados pelo imponderável
Plongée
não sei quem já se despiu
e se despediu
tantas vezes tantas
imaginando que seria a última
que não foi e talvez não será
e a cada retorno
um semblante de desespero
diante do apocalipse
provocado pelo corpo
pele pêlo porra
câmera na mão
não sei quem
em momentos póstumos
se recorda mais do trâmite
do que do coito
mais do trâmite do que do coito
sem perceber que
não se precisa
montar um teorema
pra explicar a vida
simplesmente
nada mais que
matéria de poesia
Senhorita K
Grito do lado de cá da rua para ver se eu mesmo escutarei quando estiver do outro lado. Atravesso para responder a mim mesmo que não estou e que não mais estarei no lugar que havíamos combinado. Só aí percebo que mudou o mote da vida e que um outro eu assumiu o comando. Permaneço inquieto.
meu coração não
meu coração não
escutem, por favor
meu coração, sim,
[Era para ser uma elipse.]
Regurgitado no mundo visito o fluxo de vida que ficou preso numa figura de linguagem. Entro — o eu antigo sabe o motivo, porém o atual, não — num café bar antiquário e reencontro a pessoa que deixei sentada na mesma cadeira há alguns meses. Ao me ver brilhando no olho dela, numa euforia juvenil, reconecto os mundos. Tomamos vinho, atualizamos o futuro e, despreocupadamente, saímos para dançar.
Concurso de
o olho fura o
poema, cauteriza o
mote
o
poema retruca
tão feroz quanto:
come a bílis do olhar
refogada
[cebola alho alecrim e coentro]
brutíssimo, peró buono,
diz lambendo os
beiços toma fôlego e ainda
defende o
hálito enxaguando o
bigode numa limonada suíça
:
sorriso de dois dentes de alho
céu da boca puxado na manteiga
maçã do rosto murcha
jabuticabas que não cabem nos buracos das ventas
cabelo pouco suado frito
e sobrancelha romana:
ajeita o corpo sem
conferir a concordância
dos pormenores
e se prepara para o
concurso de poesia
concurso de que?
No Amor é Assim…
a gente possui
e é possuído
a gente quer
sem ser querido
a gente nem sempre percebe
que é percebido
a gente consome
e é consumido
a gente é fera
e é ferido
a gente torce
e é distorcido
a gente quase nunca vence
mas parece vencido
a gente cheira
e é enxerido
a gente convence
e passa por convencido
a gente prevê
e é prevenido
a gente solfeja
bemol e sustenido
a gente soma
e é dividido
a gente perverte
dos pés a cabeça pervertido
a gente abstrai
e é abstraído
a gente adoça
e fica ardido
a gente da bafo
bem esbaforido
a gente fode
e é fodido
a gente permite
pra ser permitido
a gente soma de novo
e é subtraído
a gente procura
quando está sumido
a gente trai
e é atraído
a gente band aid
sendo bandido
a gente distrai
mesmo quando distraído
a gente cu
pensando em cupido
a gente abana (o rabo)
e é banido
a gente geme
e parece grunhido
a gente hálito
daí fica inibido
a gente embuste
e é embutido
a gente lambe
até ficar polido
a gente renasce
parecendo o falecido
a gente alardeia
provavelmente alarido
a gente mete
e é submetido
a gente coração
sim carcomido
a gente ouve
até com fone de ouvido
a gente bebe
e é embebido
a gente envelhece
também envelhecido
a gente não deve temer
ao ser destemido
a gente medo
e parece medido
a gente sente
até sem sentido
a gente ama
e é amado
às vezes amido.
poemaços
um axébraço
jorge amancio