5 Poemas de Vladimir Queiroz

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Vladimir Queiroz nasceu em Feira de Santana, Bahia, Brasil em 09/12/1962. Publicou no Brasil os livros: Seres & Dizeres (1996), Terracota (2001), Infantilis (2003), ABCdito e outros ditos mais (2003), Apokálupsis do Sertão (2006), Luminescência (2008), Instinto (2010), Alcatruz (2011), Nuances (2012), Muxarabis (2015), Brasileirança (2016), Kairós (2020).

Teve o livro Nuances publicado em Portugal e Romênia (2015), Colômbia e Itália (2019). Teve o livro Luminescência publicado na Itália em 2017. Participou de eventos literários internacionais em Portugal, Moçambique e Colômbia. Membro Correspondente da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana – Bahia – Brasil. Membro do Centro de Literaturas e Culturas Losófonas e Européias (CLEPUL) – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro da AIP – Associação Internacional de Paremiologia – Tavira (Portugal).


TRAJETO

O incerto trajeto que avistas pelas névoas
são encantamentos que só os que sabem espiar
os sinais que emanam do belo assenhoram-se
do passo e caminham com sede e fome de andar.

Só os que vivem às margens por onde borbulham as águas
sabem molhar os pés, criar crostas nas lamas ribeirinhas,
remar pelos igarapés as canoas construindo ritos
desgovernando as passagens por onde vociferam gritos.

Só os que levitam com as borboletas ao entorno das rosas
desconstroem os perfumes e entorpecem a alma de odores
para afinar os ouvidos nas melodias canoras esvoaçar
pelos cafezais as dores renegar o amargor desvanecido.

Só os que do pó constroem pelo deserto os rumos
sabem enfrentar os hunos no insurreto desejo das vias
para nas encruzilhadas vadias alimentarem das tetas
o almejo das crias por um destino reto por curvas alheias.


PASSARINHO AZUL

Um passarinho azul veio contar-me
sobre as peripécias do seu voo
furtivo.
Como um mágico a tirar da cartola segredos,
traz um pouco de lá, de onde não sei,
todos os dias.

Acostumei-me com a sua chegada
repentina,
a ensinar-me o efêmero das horas.

Como um piscar de retinas parte sem rumores,
sem receios do mundo lá fora.

Em pedaços deixa seu rastro
em outras varandas que anseiam também
relatos de sua vida vadia.

Oh! esperança de Pandora,
afaste as vozes atônitas e dores
traga de volta o passarinho azul,
todos os dias.


MARCHA

As formigas caminham
uma após a outra
em fila indiana
divinizando o futuro
                               próximo,
ainda sem conhecer
a Índia
nem os elefantes que lá habitam
comungam
da mesma forma de caminhar.
Mas como compreendem o que pode
vir amanhã?
Baudelaire se pudesse
traria uma explicação metafísica;
Proust uma outra mais avançada.
Os arautos perpassariam
pelo umbigo um piercing e trariam à tona
as entranhas
                            estranhas.
Os pescadores, talvez, enfiariam um fino anzol
pela língua
e trariam à tona a fala,
enfileirada por um rabicho de pipa
aos pensamentos mais profundos
e se jogariam ao mar.
E gritariam um afogamento mudo
por não saber nadar.
Perpetuariam, assim, a ladainha ouvida
pelo deserto por anos a fio.
E conduziriam os rebanhos pelos penhascos,
pelas vielas
e retornariam sempre ao ponto de partida,
com uma lamparina
de um azul intenso
derramado da chama
de parafina.
Poderiam ver o infinito
oblíquo
oblongo
e tão longo
e tortuoso
que soltariam o lodo
do outro lado das pradarias
e campos relvados,
para ruminar a matéria mastigada
como uma fibra indigesta,
gestada por nove meses
num ventre impuro
por sobre um monturo de germes,
e o gemido farto
se refestelasse
por sobre a planície oval
translúcida
e acompanhasse o grito
da rapinante voz que ecoa
                                                      e voa.
Plaina e vê todo o ângulo oculto
e diminuto,
escondendo o detalhe revelador
da vergonha.
E reza a cada hora incerta
a certeza da fé do profeta.
Vai a seta com a cicuta
atingir a garganta que traz
à mostra as faíscas dos neurônios
que entraram em curto-circuito,
e cegaram a vista daquele que passa e caminha,
que nem formiga uma atrás da outra
em fila indiana.
E não saberia talvez soprar o argueiro,
desenrolar o novelo
e novinho em pelo
galopar pelos vales relvados,
sentindo a brisa sobre o dorso,
as ventas ofegantes,
selvagens e etéreas,
passando por sobre as pedras do caminho
e desgarrando-se da trilha,
traçada pelas formigas em marcha.


HAKUNA MATATA

Mesmo que me roubem os pés,
e não possa explodir as ogivas que em mim resguardam
os encantos e perfumes que despetalam do meu epitélio.
Mesmo que adentre pelo mar num mergulho profundo como as tartarugas
para um dia voltar ao berço reluzente que me eclodiu,
darei guarida e sustentáculo ao que possa vir sobre o pedúnculo.

Mesmo que me deixem sem ar,
como uma bolha opaca repleta de vácuo e sangue
resgatarei o anima num grande jogo de braços
para sentir do amplexo a volta da plenitude da pele.
Mesmo que me deixem sem voz e perplexo,
sem força para reunir todos os encaixes e pedaços.

Mesmo que me joguem num quarto escuro sem a luz
que alumia o dia ou o rastro das estrelas inauditas
esticarei o pescoço e farei criar antenas a girar
em busca do ser e de um pouco de atenção.
Mesmo que esbugalhe os olhos para renegar a cegueira
estarei atento ao afeto que na escuridão se perde.

Mesmo que me tirem o palco e me veja privado do
espetáculo, ecoarão os tambores no meu peito
em ritmo e cadência para anunciar as bençãos…
Oxalá! possa vir o clarão da madrugada sobre o caminho
para orientar a manada ante a poeira das patas.
No pergaminho estampar os dizeres: HAKUNA MATATA


MUSTANG

O galope mestiço encontrou o ar quente
e o relincho emudeceu.
Cabisbaixo sem voz
como uma poeira que se desgarrou do chão
foi-se solitário, sem dono
encontrar o lajedo duro,
o espinho
a coroa.
Ver escorrer o sangue pela face,
a lágrima a rolar derradeira
e única aos pés da candeia:
chama e luz em prece!

É chegada a hora diurna
noturna
soturna
que nem o grito da Acauã
diz que nem chuva tem:
só lágrima,
que molha as mãos
calejadas que foram apertar
a montaria,
e ouvir em romaria as odes
a Maria.

O galope mesteño,
puro sangue,
Mustang
vem anunciar que as preces vingaram
e seu vigário
desfez o rosário de nós trançados:
as chuvas chegaram!

Um Malbec na taça
na missa:
um francês outra vez,
ou quem sabe um sopro bendito
de Québec ou Toronto
que despejou o Ontário
num mata-borrão:
lake,
mistake,
sem medo de errar.
Um despojo de fartura
e luxúria.
Quem te disse angústia
que o Orós só vive de secar?
e as alparcatas de couro só vivem de andar?
se a paz que passa traz de volta
a onda que se foi sem o galope a beira mar?

Um grito de aboio veio dos gravetos
retorcidos anunciar que a rês desgarrada
foi encontrada.
E o homem de couro
sobre o galope mesteño,
um puro sangue Mustang,
arremessou-se sobre o lajedo,
cumprindo um degredo
de cordas ao dedo
de rédeas ungidas ao peito,
sagradas na seca: Ooooooo boi!

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