6 Poemas de Leonardo Almeida Filho

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Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou, em 2008, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB), O livro de Loraine (romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia, contos), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Editora Patuá, 2019) e Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019).


OUTRO POEMA EM LINHA RETA

Para Luna, flor do algodoal

Podia sim fazer com que parassem
todos os passos.
Daí, talvez,
cada fibra se libertasse das costuras,
se esfiapassem os tecidos,
se esgarçariam as bandeiras,
tudo se decantaria,
nervo a nervo,
tendão a tendão,
gota a gota,
como a forma que, aguda,
pende do teto da caverna,
sal, calcário, água e tempo,
estancados, perceberíamos então,
na lentidão absoluta,
a marcha inexorável das coisas
fazendo-se e desfazendo-se,
sempre, sempre e sempre.
Cada ruga, riso ou cicatriz,
marcando nossa face estupefata,
apreenderia todo o sentido
da efêmera caminhada
de nossos passos
automáticos,
em linha reta.


O ANJO LIBERTADO

Dentro em mim um anjo bom vive no inferno,
um mortal que anseia o dom de ser eterno.
Eu sou eus e, às vezes, posso ser bem mais.

Cada raro acerto traz, em si, o engano;
O sagrado, em mim, tem um matiz profano
cor de desengano, gris, terrosa, azul, ciano.

Parca paleta em mãos sem talento, avaras,
como quem, em desalento, segue e lavra,
arando áridos areais e em seu tormento

espera a chuva e seus mananciais.
Como se dentro houvesse o que há lá fora
E, em sendo vário, fosse, em tudo, mais

que mera carne a desejar o espírito.
E ao desejá-lo, tê-lo; e, tendo, sê-lo;
e, sendo, vê-lo além do fora ou dentro.

Como um mortal que, ansiando ser eterno,
libertasse o anjo bom de seu inferno,
que se vai pra muito longe e nunca mais.


CONVERSA COM DRUMMOND

Não havia pedra
no meio
do caminho, Carlos.

Havia, sim, o caminho,
o medo,
(suas possibilidades)
e a terrível sensação
da pedra
ali no meio.

E de repente, meu poeta,
percebemos,
fatigados,
por trás das retinas,
que
a pedra
sempre fomos nós.


O POETA FALA

Em seu apartamento de Higienópolis,
o poeta sisudo e hermético,
tem grana, fama e o amor das mulheres,
e escreve mais um poema
onde fala do seu coração
e do coração alheio;
da dor de ser homem, de ser mulher,
de ser do meio, de não sê-lo,
de Deus, do Diabo, da morte,
do desespero.
O poeta fala da luta de classes,
das revoluções sonhadas pelos sem sorte,
do olhar da amada, do último consorte,
do cu do mundo,
dos cus e dos mundos.
Fala das fomes dos homens,
da injustiça e da revolta.
Inflama-se e, inflado, se acha.

Batem à porta, incomodando sua sisudez hermética.
É o entregador da Uber eats
que nunca leu um poema, não sabe quem é o poeta,
não pensou em revolução, mas tem medo da morte,
e que veio de bicicleta, de um cu de mundo,
sob a chuva fria de Higienópolis,
trazer-lhe o spaguetti ao sugo.


A SERPENTE

Eu era pequeno,
menor que a esperança que trago,
quando, numa tarde de sábado,
meu pai acelerou o carro
e avançou contra o animal indefeso.
Partiu a vértebra da serpente,
mas toda serpente, eu sei,
é uma inteira vértebra
formada por muitas pequenas vértebras
que a fazem deslizar.
Partiu-se, pois, a serpente
diante de meus espantados olhos,
sob os pneus do meu pai.

Agora, não mais peçonha
ou sinuosidade,
nem escama ou guizo ou presas.
Nunca mais a bífida lambida,
o olhar gelado,
os ovos abandonados no matagal.
Nenhuma ameaça, nem medo.
Sem veneno, sem antídoto .
Sem serpente, sem pecado,
e o dia deslizando entediado
sobre o corpo flácido da serpente
no asfalto.

Mas o sorriso do meu pai naquela tarde,
os dentes, o veneno,
o medo, a sinuosidade,
as mil vértebras do meu pai
e o meu olhar de espanto,
nenhum pneu partirá.


POEMA PARA GANHAR GRANDES PRÊMIOS

Estava esperando atendimento na
emergência
do Daher Hospital, em Brasília,
quando
pensei na possibilidade de
escrever
um poema.

No monitor, à minha frente, as senhas alter
navam-se: Clínica Médica 23 Nuno Guarnieri
consultório 1.
Clínica Médica 24 Marília Ferraz consultório
13
e eu pensando em um poema
não qualquer poema
um que ganhasse prêmios importantes
poema moderno, quase fala, sem
penduricalhos, nada de
metáforas
simbologia, analogia, métrica, rima, cheiro e cor
lego da linguagem, balela, nenhum gia
queria versos
num tônus despojado de poema avant garde
não confessional, porém
absolutamente
pessoal. Num modo meu
uma estética minha
minha cara
um poema descolado.

E o monitor de senhas:
Clínica Médica 27 Nuno Guarnieri consultório 100
A mulher ao lado tossia e o menino
chorava
sentia dor
e eu queria tanto escrever um soneto
caretinha, quadradinho,
mas sonetos estão fora de moda
e não ganham prêmios importantes
lembrei da voz de um grande amigo:
“sonetagem é sacanagem” e percebi que
a poesia traz pó de chão pisado
na nervura de sua orfandade
Minha dor não impede que eu escreva
mesmo
se
o barulho da emergência preencha meus dois ouvidos da mesma orelha
Clínica Médica 37 Wanda Garcia Brandão consultório 2
As senhas são poemas no monitor
Clínica Médica 44 Alberto Cagiano consultório 14
Logo serei chamado
e essa dor se acabará
mas meu poema
– esse que ganhará grandes prêmios –
não.

2 comentários em “6 Poemas de Leonardo Almeida Filho”

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