Ylo Barroso Fraga é poeta, autor de Tris (2008, Corsário) e Quando Onda (2019, Moinhos). Colheu menções honrosas, participou de coletâneas, publicou em revistas literárias. Ido de si, escreve, segue.
CRIANCÓ
quando passeamos pelo Criancó
é esse vento que ouço gritando
aquilo a que chamam silêncio?
eu vejo o sono que brota
dos olhos fartos de azul
e a cada dia que passa
algo em nós que não se modifica
saber a partida breve
sabendo a vento manso
o pétreo Criancó
rachando, sob o luar
não se move no mundo
mas o engendra
um é sono profundo
lenda
o outro o promove
metamorfose
CANÇÃO PARA GERARDO E MUSA
mar de Gerardo, famigerado
mar carmim,
mártir domado,
marcado em mim
desde quando lancei os dados
e de sangue embebido, gerado
de tuas próprias mãos, Gerardo
dizendo delenda Carthago
dono desta vida
sem debrum
dixit Mourão: ego poeta
poeta sum – pois nasci quando
a mão celeste ordenhava estrelas
mas admito palavras faltam
nestes espaços novos
onde plantamos fé
e colhemos óbice
palavras restam
destas tardes
de cântico
e gesta
e doido digo
vou
espera, vou e estou
já aí
pois para ti
já sou
tanto
e vário
e doido digo
e doido vou
espera
…
que anjo moreno habitou a noite do dia e divã
de perfume e passamanes?
que passamanaria esta pássara
e franjas e borlas e vincos
e nos vincos e rincões a sopétala o tesouro
em repouso absoluto o tesouro a rosa
só pétala a flor sopesada repousada em beleza
ia assombrando ia tecendo
vida e morte
e pássara passará
em franjas e borlas e vincos
e nos vincos e rincões
de tules tristes de sedas alvas
passamanarão
tua tez tua
messe em passamanes
da madrugada em ti dormindo:
essa aragem que escorrega
vai te cantar mais longe
e mais longe
como trama
e tessitura
tumefaz-se meu canto para ti.
A LEI REBELDE
antonio nasceu pessoa.
quando moço, foi arbusto.
agora, mineral.
é bom ver o velho antonio enrubescendo,
o segredo em suas maçãs antigas
que gravitam, grávidas
de tanino, sal.
ferrugem que mama
e regenera
no colostro das eras.
gosto de pensar que antonio
é uma pedra andarilha
suas falanges provocam abalos sísmicos enquanto
acaricia uma rosa
e que antonio,
e que antonio
embora gasta a palavra pedra:
é uma pedra andarilha
e porventura ilha de bem-aventurança
pois bem ou mal chegou
e sendo ventura de viv’alma
abrolha a pedra à ventura
e ao vento venturoso
seu tributo paga.
AURORA BOREAL
um velho alquimista em seu barco,
ele nunca pescou.
olhos postos no céu,
traz n’alma em espelho
a libélula, ela, esse elo
iriado e boreal. real
aqui, lá ela
é sal da intempérie magnética
em pleno mar abismal
e vai, nos vaus celestes,
nas hermas d’estelas, Hermes
prestes
a alar-se
tudo movendo-se
e senda
sendo
deste extâse –
redigia o sempre velho,
equilibrando-se, ponto,
no pequeno bote.
mariposa-psique pungente e penugenta,
larva do ovo cósmico
cá embaixo, refletindo
no lago onde se anima,
como em cima
scribit tabula smaragdina
e o filósofo persigna-se
enquanto pensa:
quando a ninfa abandona a exúvia,
eis a aurora boreal. um dia
também meu tegumento
ao lodo será fermento, a alma
libérrima, ela, esse elo,
ao céu, afinal.
e escreve mais uma vez
the scientist writes a letter:
juntasse milhões de vagalumes
em um domo, afugentado o mal,
jamais alcançaria o gume
que transparece n’aurora boreal
jamais atingiria o nume
da bruta flor em límpido fanal.
jamais a mariposa hirsuta,
o cândido e vago lume, a tal
tênue flâmula, jamais.
O COMPORTAMENTO DO FOGO
um animal que adormece
em prestações febris
o élan mineral entre espírito
e matéria
o mistério apascentado
no elo perdido
o entre que adere
desde o princípio
os olhos amarelos da coruja
quando extintos
a ver na delicada chama
a própria adolescência do sol
IR-SE
ir-se de si, sonhado
em lenta ventania,
sempre à ilharga, ao lado, ao leste
de quase tudo, passo ante
passo, esmerado no riso
sem siso
reductio ad absurdum:
rir-se de si,
ruir.