André Piñero (Pará, 1987) é professor por formação, poeta por tentativa e teve inúmeras outras ocupações por sobrevivência. Lançou seu primeiro livro, Copo americano, pela Editora Urutau em 2021. Alguns de seus poemas também podem ser encontrados em revistas digitais como Aboio, Torquato, Margem, etc. Porém, cabe não se iludir com o etecetera. Nasceu em 1987 em Belém do Pará. Atualmente reside na capital do Amazonas, Manaus.
GODZILLA VS MOTHRA
hoje recebo as palavras sem peso algum
algumas viverão aqui por muito tempo
depois de um dos sete mares ter escoado
e não é a visita que vai fazer eu me esconder
a inflação destrói as cidades como
um animal pré-histórico
que esteve dormindo com um olho aberto
por milênios
mas o rei dos monstros é você
tão pesada quanto a bola de futebol
das crianças pobres
um personagem de conotações capitalistas
que vai destruindo todas as casas de madeira
junto com a vontade de comer
deixando um rastro de malícia e
brinquedos de R$ 1,99
é uma agressão às minhas paredes
é só o que eu permito pela porta entreaberta
na casa que eu construí com o melhor versículo do
apocalipse
um eufemismo para destroços
uma piada empoeirada
guardada para os espaços de constrangimento
que alguns chamam de área de serviço
é menos burocrático não ter medo da lua
quando já não existe nenhum edifício
e falar com os mortos
mesmo com tua respiração embaçando meus óculos
e as linhas dos contratos
eu aceito a fumaça dos escapamentos
como os ventos problemáticos
saídos das asas de mariposas
e que transformam as crianças em pólen
MAIO SENTA NA BEIRA DA CAMA
o conceito de verticalização nada tem a ver
com me arrastar pelas paredes por horas
o frio das tintas versus a paixão
são o contraponto entre a tua herança
e a parcela do cartão que não foi paga
porque tinhas certeza que o tempo estava passando
de uma forma subnotificada
eu abro a carteira e as paredes estão lá
o meu espelho é feito de tijolos também
a janela não abre
não corre
nem range
ela é estática como coluna de uma casa
que sustentaria uma família inteira
bem mais que os auxílios governamentais
ela é estática como coluna de uma casa
que te abriga enquanto me olhas
sem dizer uma palavra
contando mentalmente o tempo
e voltando os olhos aos rodapés
mas isso já tem dois meses
e esclarece o estranhamento dos homens
sobre acabamento
e a solidão insistente
pois de outra forma
não teria arquitetado a cidade que nos divide
a exatidão do delivery
e a seleção natural que ocorre intensamente
mediada pelo balcão da cozinha americana
o tempo é concreto e a timidez é suficiente
para não ter perguntado as horas
quando isso era possível
TUTORIAIS DE MAQUIAGEM
a grande ruptura no meu caráter
é apenas procurar beleza em todas as mulheres
e homens que cruzam o meu caminho
descontraidamente
o semáforo perde suas cores
e eu sinto muito por todos os significados
da palavra apenas
dizerem tão pouco
isso corrói as estruturas de algumas famílias
e ergue outras
e mesmo que minha mãe diga que eu poderia ser qualquer coisa
as propagandas do youtube dizem também
mas a beleza acaba e
talvez por isso exista todo esse
problema
um cheiro característico de cupim
e de vídeos de maquiagem
a beleza é frágil bem como a memória
pensa na cor amarela do semáforo
pensa na madeira desmoronando por dentro
ambas mentem pra ti como os amantes
que não esperam o momento certo
isso corrói as estruturas de algumas famílias
e ergue outras
a memória é a herança que não paga nossas contas
e os homens só ofertam sentimentos
nessa feira de fragilidades
nas ruas fechadas pelo governo municipal
porque meu pai disse que homens são fortes
e que aguentam aquelas estruturas
e regras
já as mulheres fortes
estão solitárias
o que dirá das mulheres feias
e que também têm regras
a culpa deve ser do meu pai
ou da prefeitura
e não minha
TRAP OU ARMADILHA
o som da rádio internacional abafa
a Amazônia inteira pela manhã
uma música sobre sexo and bitches
quando ninguém está realmente disposto
o café mal passa pelo coador antigo
impede que eu pense em meus antepassados
e o dia desistiu porque a fumaça que saía
pela tua boca se confundia com nuvem dizendo
essas músicas são todas iguais
nuvens só conversam sobre chover
e é o inverno que define o sentimento de equidade
das manhãs proletárias
mas tem um sentimento afinal
de quando eu bebia pela manhã
de quando eu sabia que era manhã
mas não sabia o que era proletário
na verdade sons iguais não são um problema
você me diz te amo da mesma forma
toda vez que nos despedimos
empurrar meu corpo pra fora com um beijo
faz parte do processo de amadurecimento
de répteis e frutas tropicais
e homens quase jovens
o problema realmente é o dia anterior
e o anterior a ele
até chegar o dia que tu disseste
eu gostaria de te machucar, também
ou eu acho que vai chover
atrapalhando o pensamento contínuo
de derrubar todas as árvores do meu quintal
não acimentado
pra ecoar sexo and bitches and whatever
e minha respiração de porta em porta
o aterro é gratuito e sentimental
é a prestação que você recebe por ceder
a minha referência é
uma imagem indígena empobrecida nos catálogos de bijuterias
e o grafite que o pai do meu pai acharia de mau gosto
mas aí tu surgiste sentada na beira da cama
enquanto eu me vestia
e os trabalhadores
faziam seu trabalho de demolição
o pai do meu pai era operário e analfabeto
mas eu consegui ler a constelação de
asteriscos que delimitavam tua silhueta
mesmo tremida pela antítese sonora
das construções da cidade
teus cabelos estavam dormentes assim como
alguns de meus membros
desistindo também de cobrir muitas partes do
teu corpo que contava
toda uma história de ancestralidade
mas que me fez pensar em gerações futuras
e nas vítimas
e em todas as sementes que eu acabei
desperdiçando naquele quintal
por trás de todo o audiovisual
sobram teus pelos
e das ervas o cheiro
quando despreza perfume
e ataca todos os meus músculos
tu disseste que eu não tinha câmeras então
de onde surgiu esse retrato?
é verdade, mas os olhos são todos iguais
o homem é uma máquina que também pode ser
fotográfica
eu sou uma retroescavadeira
que procura corpos em terrenos públicos e enterra
os últimos rios que restam
é a prestação que você recebe por ceder
a sua imagem
o segredo da tua foto está bem guardado
nunca vou contar
como as parteiras da beira
dos últimos rios que restam
todo mundo sabe o que elas fazem
mas ninguém sabe o que elas fazem
não precisa contar
vou passar da minha boca para
a tua
deslizando como a escama abandonada
do réptil fluvial
e também porque não sei traduzir
as expressões idiomáticas do pop internacional
as rugas precoces da tua insatisfação
a linguagem das nuvens também é difícil de traduzir
quando tu colocas uma música do Caetano
que eu também mal entenderia
muito menos os rios
O SMARTPHONE QUE ME AMAVA
o truque da eternidade é
sempre parecer que foi ontem
o choro baixinho é nada mais
que um conceito virtual
e até os joguinhos de celulares
têm te derrotado
um a um
filhos e maridos registrados como amor
e a hesitação ao digitar uma expressão de poucas sílabas
a identidade quase apagada entre tintas e batom
a sinfonia de mensagens dos grupos
que falam sobre tudo
menos sobre como se esconder
o vale-transporte repassado para trás
e para trás
e para sempre
todas as vezes que seja necessário para
se constituir uma família
teu sotaque chama-se nó na garganta
fale comigo, abandone
TAURINA
para quem uma vez disse que o amor morreu
acordamos bem-dispostos
mesmo com as palavras de ontem penduradas
na beira da cama
mesmo com o sol rasgando
discretamente a cortina
o odor fala sobre o mundo inteiro que abandonamos
e a água da geladeira não esquecerá de nós
A PARTE DO LIVRO EM QUE O POETA FALA SOBRE POESIA
o mal do poeta é escrever sobre poesia
é o processo de não querer fazer novos amigos
lembra nossos colegas de escola que
não saíam pro recreio
como se todo mundo assinasse a mesma newsletter
desde a invenção dos correios
e você liga pra sua mãe e pede a receita do feijão
lembra do seu pai cozinhando drogas
com isqueiro e colher
mas isso não engaja no instagram
então conversa com sua última transa
sobre os problemas do país
e ela lhe fala da dificuldade de pagar uma escola
se vocês tiverem filhos e você
lembra dos colegas de escola que não saíam pro recreio
e sobre a decadência do teu grupo de amigos da faculdade
no momento em que o volume da caixinha de som
distorce a necessidade do matrimônio
os mesmos amigos falam de sexo como se fosse brincadeira
e suas amigas reclamam disso
você é um homem sem língua
por isso que está solteiro
e escreve poesia
algumas pessoas estão dispostas a ser românticas
eu fui para escolas públicas
universidades públicas
postos de saúde
seccionais
regionais
e não aprendi o que deveria sobre isso
essas mesmas pessoas parecem ter medo do sol
mas não da beleza dos flashes
que por sinal é assustadora
como uma reunião de condomínio
os estacionamentos são tão escuros
e quase nunca aparecem nos comerciais de automóveis
a minha dificuldade é de me enturmar
com os autores da minha estante
queria escrever uns trechos maneiros
em inglês
mas em escola pública
nunca ultrapassamos o verbo to be
no máximo a gente bebe e
fala de cigarros tipo
cowboys
talvez isso ainda venda
com alguma moeda que não seja do século XX
já pensou que legal
usar as palavras “pictórica”
e “tessituras”
uns troços bonitos de revista de literatura
como se eu ainda estivesse na faculdade
lendo Ana Cristina Cesar
e não enfurnado na minha quitinete
que aliás é a única vivência
presente neste poema
porta, cama
cama, porta
balcão de cozinha
ônibus
balcão de serviço
ônibus
e alguma mulher
que quando não balbucio traumas familiares
me diz
“por que você não fala sobre seus traumas familiares”
minha filha
ou eu pago a terapia
ou eu pago o aluguel
e ela diz que eu trabalho demais
e estou sofrendo de burnout
se burnout tiver a ver com fogo
eu quero incendiar
a porcentagem mínima da cidade que
lê poesia
em seus apartamentos